Armário de Corno [1/4]

Um conto erótico de Fauno
Categoria: Homossexual
Contém 1270 palavras
Data: 06/08/2014 19:10:43
Última revisão: 17/01/2017 20:36:36

"Madame Bovary sou eu." Gustave Flaubert

PARTE I

A livraria fervilhava com o burburinho das noites de lançamento. O homem de cerca de trinta e cinco anos, em calças e camisa sociais, conversava numa das extremidades do mezanino em L, sentado a uma mesinha redonda cercada de convidados em rodas de bate-papo, entretidos com os comes e bebes ou de olho na cadeira em frente, um ou mais exemplares do livro na mão, à espera de algumas palavras escritas em dedicatória ou ditas frugalmente na pressa do atendimento a todos. Eu já tinha o meu, comprado pelo seu primo, e vigiava acovardado o senta-levanta. Só na quarta ou quinta brecha foi que arrumei a postura e me preparei pro confronto. Num canto, contista entusiasta; no outro, romancista publicado. Embora fosse sua estreia literária e ele não fosse bem um escritor, mas um psicanalista, eu me via numa verdadeira guerra de nervos.

"Boa tarde. Não, boa noite." Puxei a manga da camisa pra consultar o relógio de pulso, que apontava quinze pras seis. Como se isso tivesse importância. "Boa tarde."

"Boa tarde." Abriu um sorriso enquanto eu lhe estendia o livro já na página de rosto. "Dedicado a quem?"

"Nelson, por favor."

De novo o sorriso cheio, sincero, acolhedor. Num segundo escreveu: "Para Nelson. Espero que goste da leitura. Marco".

"Tenho certeza disso. A primeira foi muito gratificante." Muito gratificante? Puta que pariu...

"Está relendo", seu primo me socorreu. "Adora Gozos Secretos."

"Ahn... Se não se importa que eu pergunte..." quase gaguejei. "Onde você está nesse conto?"

"Como assim?" Refletiu por um instante. Pensei em reformular a pergunta esdrúxula, mas ele já tinha a resposta: "Em toda parte.”

"Mas qual dos personagens tem mais coisas suas?"

"Não sei. Acho que tendemos a colocar em cada um deles um pouco das nossas próprias virtudes e defeitos. Meus diálogos são assim, meio esquizofrênicos." Sorriu.

“Legal. Nunca vi os meus por esse lado.” Retribuí o sorriso, sentindo o rosto queimar. Eu tinha corado?

"Ah, um companheiro de ofício!"

"É só um hobby. Não tenho pretensão de seguir a carreira, mas..."

Na esperança de uma aproximação maior e algumas aulas particulares com quem entende do assunto, respirei fundo e repassei mentalmente o convite. Não esperava nenhum milagre, que talento não se empresta; alguns pareceres e dicas, apenas. Marcamos um encontro numa cafeteria pra que desse uma olhada num dos meus contos, o que fez com concentração máxima e expressão inescrutável. Terminada a leitura, me olhou sobre os óculos de armação retangular preta que lhe davam um certo charme intelectual e perguntou casualmente, sem inflexão: "Por que você pontua os diálogos com aspas?"

"Prefiro assim. Por que, existe uma regra?"

"Na verdade existe..." disse com voz arrastada, distraído pela aliança na minha mão esquerda. "Mas isso não quer dizer que regras não possam ser quebradas." Fixando o olhar no meu, deu uma piscadela lenta, lânguida, quase sensual.

O resto do encontro foi acima de qualquer expectativa. Falamos de tudo, principalmente literatura, e principalmente contos. E então vieram os eróticos. Na verdade, 'erótico' é eufemismo. Os contos eram pornografia das mais explícitas, todos sobre mulheres infiéis. Não que Marco tivesse algo contra; embora não escrevesse nada do gênero, afirmava ler de tudo, dos clássicos às bulas de remédio. Acontece que o primeiro pornô que lhe mostrei era justamente um exemplo típico do que ele mesmo apelidava de 'cross-dressing literário', com eu-lírico feminino unidimensional, título hiper-descritivo e linguagem saturada de adjetivos e advérbios de juízo de valor, julgando mais que jornalista e projetando safadeza em tudo, das abelhas no parque à chuva de verão. Isso ele me disse sem malícia, mas também sem dourar a pílula, como uma simples constatação. Era o começo de uma noite de terça-feira e estávamos sozinhos no seu consultório no Jardim Botânico, uma sala aconchegante imersa numa iluminação suave que me parecia o oposto do seu comportamento comigo, incisivo e direto.

"Por que todas as suas personagens femininas são vulgares e adúlteras?" perguntou sem rodeios.

"Todo homem foi, é ou vai ser corno."

Ele pensou por um segundo. "Ser corno é estado de espírito. Tem menos a ver com o que a esposa faz do que com o que o marido gostaria que ela fizesse... Você fantasia sobre isso?"

"Lógico que não. Pensei que tivesse deixado clara minha intenção de criticar."

"O tom crítico eu percebi. O que quero saber é por que você lê e escreve contos pornográficos sobre mulheres infiéis, se odeia pornografia e infidelidade feminina."

"Pra ser um censor eficiente, tenho que pesquisar. E sobre a infidelidade, só estou..."

"Mostrando a vida como ela é?"

"Isso, e também...”

"Tentando entender a psicologia feminina..." murmurou com as reticências próprias dos psicanalistas e um sorriso pretensioso. Eu tinha que sair dali. Pretextando um compromisso, levantei, me despedi e fui até a porta, mas no último segundo minha mão escorregou da maçaneta e meus pés deram meia volta.

"É sério, eu..."

"Acredito em você."

Repetiu a piscadela, acompanhando meus gestos sem o menor sinal de surpresa, como se eu fosse um dos seus personagens. Mudei de assunto: "Mas o que você achou da prosa?"

"Boa. Só que a cena de sexo não me convenceu."

"Porque você não se interessa por contos de infidelidade."

"Nada disso. Não é o que você descreve. É como descreve." Risonho, aproximou-se da estante e puxou pelo topo da lombada um livro de bolso de capa marrom dramaticamente, como se acionasse uma passagem secreta de filme noir. "O erotismo pode estar em qualquer lugar." Subtraiu-o da coleção e folheou algumas páginas dobradas no canto superior até achar a que procurava. Olhando-me sobre os óculos com um quase sorriso, cedeu uma introdução: "Essa passagem é sobre dois alunos de um internato estudando literatura juntos. Posso?"

Dei de ombros e caí de volta no divã. Marco pigarreou e começou, voz grave e entonação de narrador de audiobook:

"Sanches inventou uma análise dos Lusíadas, livro de exame, cuja dificuldade não cessava de encarecer.

"Guiou-me ao canto nono, como a uma rua suspeita. Eu gozava criminosamente o sobressalto dos inesperados. Mentor levou-me por diante das estrofes, rasgando, na face nobre do poema, perspectivas de bordel a fumegar alfazema. Bárbaro! Havia um trajo de modéstia sobre a verdade do vocábulo; ele rasgava as túnicas de alto a baixo, grosseiramente. Fazia do meneio grácil de cada verso uma brutalidade ofensiva. Eu acompanhava-o sem remorso; reputava-me vagamente vítima, e me dava à crueldade, submisso, adormecido na vantagem da passividade. A análise aguilhoava as rimas; as rimas passavam, deixando a lembrança de um requebro imprudente. E o ar severo do Sanches imperturbável."

Fechou o livro e virou a capa para mim. O Ateneu, de Raul Pompéia.

"Linhas com trajos de modéstia podem ser mais excitantes que linhas nuas, sabia?"

Se não sabia, aquela torrente de palavras sugestivas acabara de me ensinar. E que pretexto inocente, o estudo de um clássico! Ah, eu entendia! Na verdade, o estranho era ainda não ter pedido o livro emprestado pra... pesquisa de estilo e tal.

"Está mesmo na minha hora. Valeu pela ajuda."

Minha mão estava estendida, mas seu sorriso me dizia que ainda não tínhamos terminado. Tomei a recusa por grosseria e saí de súbito, como quem foge. Enfim livre, recostei-me na parede espelhada do fundo do elevador e fechei os olhos. Ficar sozinho com ele era uma provação.

A primeira coisa que fiz em casa foi entrar no chuveiro. Durante um minuto ou menos, fantasiei que Marco me rasgava as roupas como Sanches fizera aos versos, e depois de tudo caí de joelhos sob a água quente, vencido como o narrador do livro, querendo poder lavar sobretudo a alma.

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