ACRÔNICO. Parte 5.

Um conto erótico de Ralph.
Categoria: Homossexual
Contém 1867 palavras
Data: 02/04/2017 19:25:50

As pessoas mudam e isso é um fato. Mas há quem mude e conserve alguma essência dentro de si. Algo que lembre uma versão antiga. Este era o caso do novo Bernardo. Seu riso era encorpado, barulhento e sinceramente feliz, mas eu ainda estava diante de algo do passado. Algo que era só meu e ambos sabíamos disso.

Ele terminava de passar para dentro o último gole de Coca-Cola que restara na nostálgica garrafinha e pôs as mãos sobre o menu, insinuando que era hora de pedir algo para comermos. Mais rápido que ele, eu tomei o livreto dos dedos ansiosos e sorri um tanto provocativo. Eu sabia o que estava fazendo.

– O que foi agora? Saco vazio não para em pé.

– Não estou te privando de comer. É que...

Eu não precisei concluir o que queria dizer. O garçom se aproximava com uma bandeja sobre o antebraço e deixou sobre a mesa um prato branco e exageradamente largo para porções tão pequenas no seu centro.

Eu não me preocupei com aquela entrada pois já sabia muito bem o que era e em vez disso mantive meus olhos presos aos de Bernardo, que logo miraram os meus, desacreditados.

– É sério isso? – Perguntou apontando para os canapés de creme de salmão entre nós dois.

– O quê? Você nunca comeu canapés? Experimente. – É claro que eu estava sendo irônico.

– Eu sei o que é isso, Ralph. Especialmente esses aqui.

Ele disse já tomando uma daquelas comidinhas entre os dedos. Os olhos que pareciam mais claros ao brilhar e o sorriso escancarado me diziam que ele lembrava com clareza daquelas delícias. Eu, claro, não consegui tirar os olhos dele enquanto devorava as pequenas porções, maravilhado.

*

Há muitas semanas eu e Bernardo nos encontrávamos, quando não no final do dia ao sair de nossas aulas, nos encontrávamos antes delas e antes de partimos para direções diferentes, por não estudarmos na mesma escola.

Nossos encontros eram marcados por olhares que diziam muito e por bocas que queria sentir a do outro. Era sempre a mesma coisa: ele me provocava brincando com seus dedos nos meus e eu lamentava por não poder atacar o garoto de olhos tristes. Não havia um momento juntos em que eu não quisesse tomá-lo em meus braços e fazê-lo perder as forças, como tinha feito algumas vezes. Mas curiosamente era só isso que acontecia. Se eu insistisse em me aprofundar com toques mais ousados, ele me afastava e eu entedia que não precisava forçar nada.

Naquele dia em específico era o casamento de sua irmã. Ele me fez prometer que aparecia na festa de penetra, como era comum fazermos em muitas festas naquela época. A tática é simples: chegue atrasado, muito apressado e terá sua entrada liberada. Ninguém quer barrar a passagem de alguém e impedi-lo de aproveitar uma festa que já pode estar pela metade. E assim eu fiz.

Metido em uma camisa preta de mangas compridas, uma calça igualmente escura e um tênis emprestado do meu pai, que já me servia, tudo que precisei fazer na entrada do salão onde os convidados eram recepcionados foi inventar a desculpa de que minha família já estava lá dentro. A despreocupação dos organizadores que só queriam que aquilo terminasse logo ajudou na minha missão impossível que não passava de um ato superestimado.

Obviamente eu não conhecia nenhum dos convidados, e nem precisava conhecer. Eu só tinha uma única intenção naquele lugar: encontrar os cabelos dourados que preenchiam meus dias de beleza. E se eu já o conhecia bem, não era difícil de imaginar que ele estaria no canto mais isolado e consequentemente menos barulhento.

Para o meu desagrado e até surpresa o encontrei acompanhado, e para a minha raiva a companhia estava tão próxima dele e os ombros se tocavam de forma tão íntima que senti algo queimar no meio do peito antes de subir para a garganta. A proximidade dos dois me fez escutar o que eu não queria.

– Você não quer sair daqui, Bêzinho? – O garoto escorregava sua mão curiosa e invasiva pela cintura do meu Bernardo.

Tomado de algo inexplicável e desconhecido, me coloquei entre os dois, fazendo o outro garoto muito maior que o Bernardo recolher seu braço e reclamar de dor na região do cotovelo. Eu não tinha medido a força ao separar os dois.

– Que animal. Qual o seu problema, esquisito? – Ele bufou e eu quis acertar a cara dele com meu punho fechado.

– Posso te mostrar meu problema agora. – Eu bradei e com isso chamei a atenção de dois outros garotos que estavam ali.

– Sabe de uma coisa? – Falou Bernardo enquanto se aproximava de mim, cautelosamente. – Ele não quer saber de nada. Ele quer sair daqui, não é? – Concluiu direcionando suas palavras ao garoto que resmungou qualquer coisa e virou-se, partindo em um caminhar lento e vez ou outra olhando em nossa direção. – Primeiro entra de penetra, depois causa uma confusão, é expulso do lugar e eu fico como? – Ele voltou a falar, mas desta vez na minha frente, me impedindo de manter algum contato visual com o garoto que ainda se direcionava para outra aglomeração.

– Você fica comigo, porque eu não vou causar nada. Só queria mostrar que você é meu.

Naquele momento eu me senti o herói protetor dos inocentes, mas não demoraria em reconhecer que aquele ato tinha sido vergonhoso.

– Eu sou seu? Quem espalhou os boatos? – Bernardo riu diminuindo a aproximação entre nós.

– Eu mesmo os espalhei. Primeiro foi para o garoto lá, depois para a cidade inteira.

– Decidido. – Ele brincou me parando com uma mão em meu peito. – Se alguém nos ver, entraremos numa fria daquelas.

– Já que eu coloquei aquele taradinho pra correr... E comigo? Você quer sair daqui comigo? – Cuspi minha saliência.

– Qualquer coisa com você – ele decretou.

Eu não esperei um minuto para entrelaçar meus dedos aos dele e sair arrastando-o pelos vários ambientes. Eu não sabia onde ia, mas era divertido atravessar a multidão de pessoas que dançavam enquanto nós desviávamos. Um garçom se esquivou de Bernardo e tão esperto o garoto conseguiu arrancar duas comidinhas de sua bandeja. Uma ele colocou inteira dentro da boca e me freou bruscamente para experimentar a outra. Eu reconheci o gosto do salmão e deduzi que aquilo era um canapé.

Entre risos e passos dados em falso, sumimos no meio das pessoas e nos enfiamos no jardim ao lado do grande salão. A área era mais escura e não era o foco dos convidados, então tínhamos aquele ambiente só para nós.

Eu continuava adentrando o jardim quando senti a mão quente de Bernardo largar a minha. Ele me surpreendeu ao sumir tão rápido da minha vista, pois não demorei em olhar para trás e dar falta do meu garoto. Os arbustos mais altos que nós e a pouca iluminação não me ajudaram a achar vestígios dele, mas antes de concluir que ele estivesse me sacaneando seriamente, ouvi sua voz macia e sussurrada atravessar a semi-escuridão e me encontrar, tomando o espaço que a falta dele ocupava em mim.

– O que você quer comigo?

– O que você permitir que eu queira – respondi ao vazio.

– Complexo demais, escritor. Seja direto – ele cobrou talvez do outro lado do arbusto.

Ambos rimos daquela cobrança e eu desencanei de achá-lo quando entendi que Bernardo só conseguiria perguntar aquilo dessa forma: longe do meu cerco. Talvez ele estivesse esperando a oportunidade perfeita para isso, já que na presença dele eu não desgrudava meus olhos das duas luzes acesas que compunham aquele olhar.

- Eu quero o seu toque – eu comecei, sussurrando. – Eu quero poder tocar você e falar todas as coisas que eu tiver vontade, sem privações. Eu quero te proteger dos ritmos loucos, porque sei que você vive em outro universo. Eu quero estar com você quando a maré subir e carregar o que você construiu, porque a vida também é isso. Além de tudo isso, eu quero um dia poder passar todas as noites enroscado no seu cabelo, porque ele é a coisa que mais bonita que eu já vi na vida.

Um risinho suave denunciou que ele estava mesmo do outro lado do arbusto e tão sutil eu dei a volta e o encontrei de olhos fechados esperando que eu dissesse mais alguma coisa. Eu tomei o meu garoto nos braços e o fiz sentir todo meu corpo e o calor que saía dele naquele momento. Ele gostou, pois logo senti seus braços darem a volta no meu corpo.

– A parte da maré é real? – Perguntou em uma manha que me fazia enlouquecer.

– É natural – respondi segurando a vontade de roubar dele um beijo apaixonado. – Ela sobe e tenta destruir os castelinhos que a gente construiu. Eu quero estar lá para erguê-los novamente e colocar nosso nome na entrada.

Só me contentei em ficar sem resposta, porque em vez disso ele enfiou seu rosto pequeno no meu peito, mesmo não sendo tão baixo, e inspirou algumas vezes o meu cheiro. Ele deixou um beijo ali. Poderia ter deixado mais, mas aquilo era tudo que eu precisava. E queria.

– A maré é lenta. Podemos fugir dela. – Disse por fim.

– Eu prometo que ela não nos encontrará.

E fui surpreendido por um beijo. Aquele beijo diferente de todos os outros. O beijo que permite a aproximação e diz sim aos desejos e anseios do encontro. O beijo que une os gostos, cheiros, texturas e emoções. Naquele momento, no meio do jardim às escuras, Bernardo era tudo que existia para mim. E prometi à mim mesmo que manteria a maré longe de nós, como pedia o olhar único do meu garoto.

*

Bernardo sorriu para o último canapé e depois para mim. Ele percebeu sozinho que tinha comido mais que eu e, talvez consumido pela culpa, o vi pegar o pedaço de pão muito bem montado e tentar parti-lo ao meio.

– Assim você não espalha por aí que eu sou comilão e um tanto egoísta.

– Já espalhei – brinquei. – Hoje as coisas são instantâneas.

– Droga. – Ele murmurou e encenou uma decepção nada convincente.

– Mas ainda assim eu quero essa metade – bradei arrancando dele um riso real.

– Se importa? – Ele queria dividir com uma mordida.

– Nunca!

Olhando nos meus olhos ele abocanhou metade do canapé e me estendeu a outra metade. Evitei sujar meus dedos com a bagunça que aquilo tinha virado e abri minha boca, recebendo a gostosura dos dedos de Bernardo. Naturalmente as pontinhas deles roçaram meus lábios e eu senti seu toque outra vez, como tinha sentido e me apaixonado incontáveis vezes. Ele sorriu desconcertado quando recolheu sua mão e eu fiquei assistindo-o lamber, sem obscenidade, o resto do creme de seus dedos. Os dedos que passaram em meus lábios.

.

.

Meninas, meninos, menines. Ainda estão aí? Muito bem! haha :D

VALTERSÓ, estou propondo uma nova forma de ver os contos (que ousadia) e parece que estou me saindo bem. Obrigado por ser sincero e me motivar com os comentários. Pode criticar quando for necessário. Precisamos disso.

Jonh, pontinho pra você também. haha

guilwinsk, olá, você vem sempre por aqui? :D Você se sentiu com eles, porque é essa minha intenção, afinal, o leitor é parte importante da história. Obrigado pelo elogio. Continue por aí. ;)

Para todos os leitores, meus muitos abraços de sempre.

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MEU AMIGO, MINHAS CRÍTICAS QUASE NUNCA SÃO AO ESCRITOR E SIM AO ESCRITO, AO CONTO OU AO CAPÍTULO. MAS AGRADEÇO SEU RETORNO.

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