Recomeçar - Capítulo 1 - Gato, Cachorro e uma Tartaruga

Um conto erótico de Allana Prado
Categoria: Homossexual
Contém 2434 palavras
Data: 07/05/2017 12:24:26
Última revisão: 12/08/2017 23:25:16

[Martin]

-Nico?

-Oi amor. – Ele respondeu meio alheio.

-Como você imagina o futuro? O nosso futuro?

Perguntei ao lembrar que passei horas pensando nisso na noite anterior. Nicolas pareceu parar pra pensar um pouco, levantando seus olhos do livro que lia e dando total atenção a mim. Observei por um momento seus lindos e brilhantes olhos negros olhando pra mim, e pensei no quão sortudo eu era por tê-lo e que não podia perdê-lo nunca, tudo que fosse possível eu faria parar ter aquele lindo rapaz pra sempre em minha vida. Antes de me responder, suas mãos começaram a deslizar gentilmente pelos meus cabelos e eu acomodei minha cabeça em seu colo.

-Nossa que pergunta! Bom, eu consigo ver claramente a gente na nossa casinha bem simples e aconchegante, nós vamos ter um cachorro, um gato... Ah, eu quero uma tartaruga também. Você provavelmente vai trabalhar na empresa do seu pai porque, nessa altura, se cansou de fugir e vai chegar em casa todos os dias reclamando do velho. Eu vou dar aulas como sempre sonhei e por isso nós só vamos nos encontrar no final do dia, cheios de saudade e histórias pra contar. Enfim, não vamos ser o casal perfeito de comercial de margarina, mas vamos estar juntos e felizes, e isso é o que importa. E eu te amo!

Era por esses e outros motivos que eu o amava tanto. Ele disse tudo aquilo de uma forma tão doce, mas ao mesmo tempo com uma certeza tão grande, que eu já não tinha mais duvidas que assim seria. As minhas neuras com aquele assunto tinham sido totalmente dissipadas com a confiança que ele conseguia me transmitir. Nada e ninguém conseguiriam acabar com nosso amor, iríamos ficar juntos pra sempre.

-Eu também te amo, Nico! Muito... Muito!

Levantei rapidamente, tomei o livro de suas mãos, jogando-o em cima da cama e envolvi seu rosto com minhas mãos. Ele sorriu pra mim de forma doce, fazendo suas covinhas que eu tanto amava aparecerem e sua pele negra ganhar um tom diferente. Beijei-o lentamente, fazendo com que nossos lábios se selassem e senti-o sorrir com isso, seu beijo era calmo, doce, viciante e sempre tinha o dom de me deixar como se houvesse borboletas no meu estomago. Eu amava isso! Nossas respirações se aceleraram no meio do beijo que começava a ganhar intensidade e eu sabia que estava prestes a perder o controle, então, ele nos obrigou a parar e esperou até que eu voltasse a abrir os olhos pra realidade novamente.

-Tá com fome?

-Um pouquinho desde que acordei. – Respondi meio envergonhado e mentindo sobre a intensidade da minha fome que era enorme.

-Quantas vezes eu já te falei que você pode sair do quarto e pegar alguma coisa pra comer quando estiver com fome!? Minha mãe não morde.

Recebi essa bronca mais que merecida dele, todas as vezes que eu dormia lá era sempre assim, mas eu não conseguia vencer a vergonha e encarar a mãe dele logo pela manhã, ainda mais pra pedir comida. Ele então me puxou pela mão e foi me arrastando pra fora do quarto até a cozinha, onde sua mãe já estava lá mexendo em algo.

-Bom dia, Dona Sônia.

-Bom dia Martin!

Ela respondeu simpática como todas as outras vezes.

-Ei mãe, tem alguma coisa de comer para dar pra esse menino faminto?

Nico proclamou em alto e bom som. Apertei mais sua mão como sinal de alerta e que era pra ele parar imediatamente com aquilo, mas ele só fez rir da minha cara.

-Calma, o menino faminto sou eu. – Ele me disse com deboche.

Nos sentamos juntos ali na mesa posta para o café da manhã e ele, como sempre, me serviu de tudo aquilo que ele sabia que eu gostava e começamos a comer como uma família. Não consegui deixar de reparar na paz e harmonia que era estar sentado naquela mesa com os dois, ali sim eu me sentia acolhido de verdade, tão diferente da minha casa e o caos que lá podia se transformar ás vezes. Agora sim eu entendia que ter dinheiro e viver bem nada tinha a ver um com o outro.

-Vocês chegaram tarde ontem à noite? – Perguntou a mãe de Nicolas tomando um gole de seu café.

-Não. Depois da faculdade fomos nos encontrar com um amigo, mas o Martin estava cansado e voltamos logo.

-Cansado e mesmo assim preferiu atravessar a cidade.

Ela disse olhando pra mim de uma forma avaliativa como às vezes fazia e eu sabia o motivo por trás disso, ela não entendia a razão de me ver ali já , ao ver dela, eu pertencia a um ambiente totalmente diferente daquele.

-Eu gosto daqui, Dona Sônia, de verdade. Amo estar com vocês.

Nicolas e a mãe não eram ricos, pelo contrário, eram simples e viviam em uma casinha humilde num bairro afastado e mais pobre da cidade, até onde sabia, se sustentavam com alguns trabalhos da mãe depois que o pai os deixou. Ela era uma mulher guerreira, batalhadora, sempre cuidou muito bem do filho, o incentiva a ter um futuro melhor e nunca o deixou abandonar os estudos nas horas mais difíceis. Eu a admirava muito, especialmente pelo fato dela amar e aceitar o filho do jeitinho que ele era.

Apesar de sermos de mundos muito diferentes, nada disso interferia na relação que tínhamos e pouco nos importávamos com isso. Desde o momento em que nos conhecemos, através de uns amigos em comum, aquele jeito meigo, aquela sua conversa envolvente e seu sorriso fácil, tinham me encantado de uma maneira que foi difícil esquecer.

-Acho que eu preciso ir embora, né!

Falei depois que acabamos nosso café, por mais que minha vontade fosse zero, não teria como adiar ainda mais, eu teria que ir pra casa. Por dentro eu me sentia péssimo por ter esses pensamentos, mas por mais que eles fossem meus pais, só eu sabia o quão atormentador eles poderiam ser perante alguns assuntos. E infelizmente, por mais que tentasse, nada conseguia fazer com que eles abrissem a cabeça.

Passei novamente no quarto do Nicolas e peguei minha costumeira mochila, ali tinha tudo o que eu precisava pra passar a noite fora, incluindo meus materiais para o curso. Ele ainda insistiu para que eu ficasse com ele o dia todo, mas achei melhor não ceder àquela tentação, cada minuto a mais que eu ficasse ali seriam descontados na minha paz lá em casa. Despedi-me da Dona Sônia, dando lhe um abraço e agradeci todo o carinho que ela sempre tinha comigo.

-Eu vou te levar. – Nicolas falou prestativo como sempre.

-Não precisa, Nico, sério. Eu já aprendi como pegar o ônibus, esqueceu? – Disse me lembrando que antes de conhecê-lo, eu não sabia nem ir à padaria sozinho.

-Mas eu quero ficar mais um pouquinho contigo.

Ele rebateu fazendo uma carinha muito fofa e não teve mais como eu recusar sua proposta. Fomos então para o ponto esperar que o ônibus passasse e ficamos conversando sobre nossos assuntos cotidianos. Nicolas iniciava seu curso de Pedagogia e estava bastante ansioso ao ver que seu sonho de dar aulas pra crianças estava a um passo de se realizar, eu não tinha dúvidas de que ele seria um ótimo professor e que conseguiria transformar o mundo através da educação e, se dependesse de mim, eu estaria sempre ali o apoiando no que precisasse. Já eu não podia dizer que compartilhava da mesma empolgação, praticamente obrigado pelo meu pai a seguir seus passos, eu me preparava em Administração pra um dia ser como ele e cuidar dos negócios da família, mesmo que eu não quisesse isso.

Finalmente nosso ônibus chegou e nós embarcamos para uma viagem demorada até o outro lado da cidade, odiava ter que morar tão longe dele e ficar de um lado para outro, mas ainda assim era melhor que nada.

-Porque você tá tão quietinho, o que você tá pensando?

-Queria que tudo fosse um pouquinho mais fácil, sabe, todas as coisas... – Respondi pensativo, olhando pela janela e preso nos meus próprios pensamentos. Ele sabia do que eu estava falando e logo deu um jeito de me afastar desses pensamentos.

-Aah amor, não fica triste por isso, porque, apesar de tudo, estamos bem e juntos, não estamos? Agora vem cá, vamos descer um pouquinho antes...

-Pra que? – Perguntei estranhando quando ele já me arrastava pelo braço e dava sinal que iria descer, ainda faltava um pouco para chegarmos no meu destino.

-Isso aqui é Rio de Janeiro, baby, vamos parar um pouco na praia.

Ri por sua tentativa de me animar ter dado certo e então descemos no ponto mais próximo. Fomos caminhando de mãos dadas pelo calçadão até chegarmos à areia e tirarmos nossos tênis, o sol ainda estava fraco e as pessoas ainda começavam a chegar, por isso, não tivemos dificuldade em acharmos um lugar pra sentar. Ficamos ali em silencio, observando as ondas se quebrarem na areia e sentindo o vento bater nos nossos rostos, tudo estava tão tranquilo que até os pássaros cantavam em sincronia.

-Quem diria, né? – Nicolas começou a falar dando risada. – Quem diria que aquele menininho tímido da Zona Sul, que eu conheci há um tempo, e que teve vergonha no nosso primeiro beijo, estaria hoje aqui comigo!?

-Não começa com essa história de novo!

Sempre que podia, e pra me irritar, ele voltava com essa história de quando nos conhecemos pra aproveitar e zombar de mim, por isso, cortei logo seu barato. Olhei-o e ele permanecia rindo da minha reação, vendo que surtira efeito sua tentativa e com cara de moleque travesso. Por fim, eu desisti da idéia de ficar bravo com ele e tinha quase certeza que aquele sorriso tinha a ver com isso.

-Agora eu preciso ir de verdade. – Falei olhando pro relógio. A essas alturas meu pai já havia saído pra trabalhar, mas minha mãe continuaria em casa, o que não se tornava melhor. – Vou caminhando daqui, tá?

Disse pra ele que não teve outra alternativa a não ser aceitar. Nos despedimos no momento em que passava outro ônibus pra ir pra sua casa e, então, o vi partir. Caminhei distraído e pensativo, por cerca de vinte minutos, olhando as paisagens em volta até chegar a portaria do condomínio onde eu morava. Ali as casas eram identicamente iguais, enormes e exageradas, quanta falta de criatividade desse povo! Cheguei na porta de casa e dei um último suspiro de paz como que me preparando para o que estava por vir. Entrei na grande sala de casa e, de imediato, não consegui avistar ninguém, teria mais alguns segundos.

-Martin!!!

A voz estridente de minha mãe ecoou pela sala quando eu já caminhava vagarosamente e silencioso para o meu quarto. Ela tinha um poder sobrenatural de adivinhar quando eu tentava me esconder, não tinha jeito, mas por um segundo, me deu vontade de dar meia volta e voltar pra casa do Nicolas sem ter que dar nenhuma explicar.

-Oi mãe.

Respondi desanimado pra ela que descia as escadas feito um raio e parava bem diante de mim com um olhar mortal. Eu sempre me achei bem parecido com minha mãe, os traços finos e de descendência francesa, os cabelos castanhos claros e os olhos claros, mas naquele momento e olhando pra ela enfurecida, eu diria que era difícil fazer uma comparação.

-Onde você estava Martin? Passou a noite toda fora.

-Não me pergunte se não quiser saber. – Respondi tentando abrir passagem por ela e ir pro meu quarto, mas foi em vão.

-Estava na casa daquele mulatinho, não é mesmo?

Ela disse com uma voz de desprezo.

-O nome dele é Nicolas! E ele é meu namorado.

-Martin, meu amor. O que eu e seu pai fizemos pra você nos decepcionar dessa forma? Você sempre teve tudo do bom e do melhor, estudou nos melhores colégios, fez os melhores cursos... O que aconteceu meu amor?O que aconteceu pra você estar se misturando com esse tipo de gente?

-Mãe, não começa...

-Você não acha que essa fase já passou da hora de terminar? Você é jovem, mas precisa dar um rumo na sua vida, conhecer uma menina bonita e da nossa classe social, se casar e ser um homem de verdade. Ou você acha que aquele neguinho vai te trazer algum futuro?

-CHEGA! – Explodi e ela se assustou um pouco, pois eu nunca havia usado esse tom de voz. – Não é só uma fase, entenda, EU SOU GAY! Sim, eu namoro outro rapaz, e sim, ele é pobre, não tem nossa “etiqueta”, sim ele é negro e mora quase na favela, mas eu AMO ELE. Que se dane tudo, eu só quero ser quem eu sou e ser feliz. Aceita droga, será que é tão difícil?

Terminei de gritar essas palavras pra ela e a tirei da minha frente, saindo dali e indo pro meu quarto, eu não ia dar-lhe o gostinho de me ver chorar. Subi, tranquei as portas e desabei na cama. Era esse o confronto que eu tanto tentava evitar permanecendo o máximo de tempo fora de casa, sempre era assim e eu já estava cansando de ouvir em silencio, talvez por isso explodi daquela forma. Às vezes pensava que nunca conseguiria ter paz e viver bem com meus pais se não fizesse exatamente o que eles queriam, perdi as contas de quantas vezes tive que presenciar discursos como esses, ou até piores, por simplesmente não aceitarem a mim e ao meu namorado. Não era fácil ter que conviver com eles, pra falar a verdade, estava cada vez mais difícil, mas por mais difícil que fosse, eu nunca deixaria de ser quem eu era e, se fosse preciso, eu arrumaria um emprego qualquer e sairia de casa.

Ainda inconformado com tudo aquilo, permaneci no meu quarto pra não ter que ouvir mais nada, nunca fui de perder a cabeça fácil, mas se tivesse que ouvir mais alguma coisa, especialmente depois do começo de dia perfeito que tive, eu não iria aguentar. Distante de tudo aquilo que me fazia ficar mal, eu tentava pensar em outra coisa, mesmo sabendo que não adiantaria ignorar a situação por muito tempo. Foi quando eu ouvi o som do meu celular indicar que havia uma nova mensagem, corri então pra pegá-lo já imaginando quem seria e sorri imediatamente ao ver uma foto nossa tirada esses dias, seguida de uma mensagem de texto:

“Advinha quem já está com saudades?”

Só ele mesmo pra fazer com que eu melhorasse meu humor e tudo ficasse um pouco mais feliz. Era por isso que eu o amava tanto!

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Comentários

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POIS É, UM CONTO REPLETO DE PRECONCEITOS. DE RAÇA DE GÊNERO. MUITO BOM. ISSO DENUNCIA A BURGUESIA PODRE QUE FEDE. PARABÉNS. SE FOR O CAMINHO SAIA DA CASA SIM. MAS TEM UM PREÇO A PAGAR. VC TÁ PREPARADO??? PENSE. SAIA OU FIQUE E LUTE E NÃO SE DEIXE ABATER.

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