Amor em atos - Todo Azul do Mar (Edição do Benjamin)

Um conto erótico de João Fayol
Categoria: Homossexual
Contém 2345 palavras
Data: 23/04/2023 22:46:35
Última revisão: 25/04/2023 13:16:28

Não me considero uma pessoa medrosa, muito pelo contrário. Desde cedo, me interessei por esportes radicais. Verão no Rio, para mim, durante anos foi sinônimo de saltar de paraquedas ou asa-delta em São Conrado, tendo como vista o bairro, o céu limpo, o sol brilhando e aquele azul lindo do mar, a sensação de ver todo aquele azul do mar é indescritível, fascinante, apaixonante, mas é inegável: a grandeza e imensidão daquele azul também me desperta certo temor.

Mas temor não é sinônimo de medo, significa respeito e admiração, e durante anos, eu estive longe do medo. A vida sempre se mostrou como um grande desafio a ser ultrapassado, até que eu conheci o João, e de repente, éramos dois, caminhando lado a lado, como os melhores amigos que sempre fomos. E aos poucos, me dei conta que ele era o meu lado racional, a figura que sente medo, não o medo que sufoca, mas o que cuida. Era ele a pessoa que se preocupava em saber da segurança e calibragem dos meus equipamentos, que reclamava da qualidade dos meus capacetes e se preocupava em saber se havia ou não aviso de ressaca nos dias em que eu decidia surfar no Arpoador.

Ao longo dos anos, o cuidado do João fez com que pouco a pouco eu passasse a ter medo de perdê-lo. Não da noite para o dia, mas em algum ponto da nossa história, eu passei a ser mais carinhoso com ele, a prestar atenção no que eu falava e como eu falava, porque no fundo, eu tinha medo de perdê-lo e de me ver longe do seu carinho e atenção. Foi somente quando eu entendi que havia temor, que descobri que o amor que eu sentia era muito maior do que amizade, e além do próprio amor.

A primeira vez que eu vi o João depois de entender que o amava, foi na mesma tarde em que eu e a turma nos reunimos para comemorar o meu noivado. No momento em que ele colocou seus pés naquele bar, eu senti que estava contemplando todo o azul do mar, contemplando o quão fascinante e apaixonante ele era. Eu sei que havia outras opções a serem seguidas naquele dia, mas em nenhuma delas havia a possibilidade de eu não mergulhar no amor que eu sentia por ele. Abraçar o amor que eu sentia por ele, também representava abraçar o medo que eu tinha em perdê-lo, e eu estava disposto a fazer todo o possível para não perdê-lo.

Nos últimos meses eu busquei dar conta de tudo, fiz o que pude para fazê-lo feliz e deixá-lo confortável, apesar da excepcionalidade que nos rodeava. Eu sabia tudo o que fazer para deixá-lo bem, e então, eu descobri que poderia fazer tudo, exceto mantê-lo vivo.

Quando a notícia chegou, eu estava na clínica onde ela fazia o pré-natal, em Laranjeiras. Eu, que busco sempre manter as coisas sob controle, caí em um desespero que jamais havia sentido em toda a minha vida. Algo tão intenso e desnorteador, que causou em mim o efeito reverso: me deixou extremamente ligado no 220. As coisas se desenharam muito depressa: eu liguei para ele, e quem atendeu foi um motorista que parou para prestar os primeiros socorros. Ele me explicou muito por cima o que aconteceu, o estado aparente dele, a altura do Aterro em que o acidente ocorreu e que o socorro já estava a caminho.

No meu desespero, somente expliquei para a Carol que o João havia se acidentado e que precisávamos chegar no Aterro. Vendo o meu nível de nervosismo, ela decidiu ir comigo, mas me convenceu a irmos de táxi. Em menos de 10 minutos estávamos no aterro. Eram 12:45 e eu terei esse horário pra sempre marcado comigo, porque eu desci do táxi correndo, deixei a Carol lá dentro com o motorista, e ainda correndo, cheguei até o mutirão de policiais, bombeiros e médicos do SAMU que estavam ao redor da sucata que se tornou o carro, e encontrei o João, o grande amor da minha vida, em uma maca, cercado por socorristas, todo machucado e sem vida.

-

Tudo se tornou difuso e lento a partir dali, eu me lembro de tentar chegar nele, mas fui contido por um policial. Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto um socorrista tentava reanimá-lo manualmente.

Meu João, meu garoto, havia ido embora. Nada fazia sentido. A sensação era de que o chão havia se aberto e eu estava caindo, e de fato, em algum momento, eu caí no chão, de tanta dor. E nesse poço que parecia sem fundo, de repente, eu encontrei um galho de sustentação.

- CONSEGUI PULSAÇÃO. O CORAÇÃO TÁ FRACO, MAS É O SUFICIENTE PRA CHEGARMOS NO HOSPITAL! - um dos socorristas gritou enquanto deslocava o meu amor pra dentro da ambulância. Carol já estava ao meu lado, me segurando e tentando me controlar, apesar de também estar chorando.

- ME DEIXA IR COM VOCÊS! POR FAVOR. - me levantei e dirigi o meu discurso a um dos socorristas.

- Você é alguém da família. - ele me rebateu.

- Eu sou o namorado dele. A família dele não tá aqui no Rio, por favor, me deixa acompanhar ele.

- Certo. Vem!

- Carol - antes de me deslocar, olhei para ela. Eu já havia trazido-a da clínica para um acidente, queria que ela fosse para casa, mas não queria que ela fosse sozinha. Tudo estava fora do meu alcance e controle.

- Ben, vai! Eles vão encaminhar ele pra o Miguel Couto, que é a unidade de referência pra esses casos. Eu encontro vocês lá.

Era o que eu precisava para ir com ele sem me sentir culpado. Entrei na ambulância e lá estavam mais 2 socorristas, além dos que estavam na parte frontal da ambulância. Me sentei ao lado do meu amor, os aparelhos de monitoração mostravam que seu coração batia muito devagar, e em diversos momentos eu achei que ele fosse embora, mas eu sabia que, mesmo em estado crítico, ele ainda estava lá e estava lutando para permanecer bem. Não havia nada que eu pudesse fazer, nem mesmo segurar em sua mão, já que ainda não se sabia a dimensão da extensão dos ferimentos. Visualmente, ele estava machucado, mas não havia muito sangue, a equipe médica, então, me alertou que, chegando no hospital, ele iria imediatamente para a tomografia e provavelmente para a cirurgia, já que a ausência de sangue indicava alguma hemorragia interna.

- Meu amor, eu tô aqui com você. - consegui chegar até seu ouvido e sussurrar; seus batimentos cardíacos aceleraram. Foi a última coisa que consegui dizer antes da ambulância parar e ele seguir em direção a área restrita.

O que se seguiu a partir dali foram horas de uma solidão alimentada pelo desespero e mais latente medo de perder o grande amor da minha vida. Meu celular não parava de me notificar sobre as chamadas e mensagens de familiares e amigos, mas eu não era capaz de dar conta de tudo, porque tudo que eu conseguia fazer era me preocupar com o estado do João e, principalmente, se aquela equipe cuidaria do meu menino tão bem como eu cuidaria.

O único momento em que parei para mexer no celular foi para ligar para os pais dele, que não estavam em São Paulo, e sim em Paris, em um congresso internacional da área em que trabalhavam. A ligação foi caótica, a mãe dele chorava copiosamente, enquanto o pai, mesmo nervoso, tentava entender racionalmente o que havia acontecido e onde estávamos. Tudo o que eu não podia dar naquele momento era racionalidade para algo ou alguém. Consegui passar pra ele as informações preliminares que chegaram até mim, e eles, ainda na ligação, me informaram que iriam pegar o primeiro voo em direção ao Brasil.

Findada a ligação, retornei ao ciclo de correr atrás de informações e não ter nenhuma. Ninguém sabia nada. Todos me pediam para ter paciência e aguardar mais notícias. Não aguentei, me sentei na recepção e chorei. Chorei desesperadamente, como se fosse uma criatura indefesa, com medo de tudo e de todos, e isso estava longe de ser apenas uma analogia. Eu estava com medo de tudo, estava com medo de todos, porque era ele que me fazia ser mais forte; sem ele eu não sei se conseguiria, e não queria testar pra descobrir.

Enquanto eu chorava, com os cotovelos apoiados em meu colo e as mãos sob meu rosto, uma mão afagou minhas costas, levantei o meu rosto e vi a Carol, ali sentada ao meu lado.

- Porra, cara. - nos abraçamos e voltei a chorar. Em todos os nossos anos de relacionamento, nunca me permiti tamanho descontrole perto da Carol, nem mesmo quando contei a ela sobre o João. Ela acariciou minha cabeça até eu me acalmar o suficiente para respirar sem chorar. Nos afastamos e reclinei o meu corpo na cadeira.

- Você ama ele, né? - ela também encostou suas costas na cadeira.

- Amo. Amo muito. - olhei para cima, não porque estava fugindo do contato visual com ela, mas porque não havia necessidade.

- No fundo eu sempre soube que vocês dois, eventualmente iriam acontecer. E acho que no último ano eu já sabia de vocês… eu só quis me iludir e acreditar que não.

- Acreditar que eu não iria ser babaca de te trair?

- Não. Acreditar que um dia seus olhos iriam brilhar por mim tanto quanto brilhavam por ele. - o som do hospital se tornou um background para aquela conversa que não tivemos quando terminamos.

- Eu fui um otário com você, Carol, e eu me arrependo todos os dias disso, o João também… ele, acho que mais do que eu, porque vocês tinham aquela coisa, sabe, aquela sintonia que só vocês dois conseguem entender.

- Eu sei, Ben. Mas eu nunca fiz um julgamento moral em cima de vocês dois. Eu nunca fiquei puta por você ter transado com ele, e acho que nunca vou ficar… nós nunca fomos santos, Benjamin. - - Nem eu e nem você. Eu nunca fui a vítima da história.

- O quê que te deixou puta?

- O fato de nenhum dos meus melhores amigos ter me contado o que estava acontecendo. Eu confiava em vocês mais do que tudo, e eu esperava que quando isso acontecesse, vocês fossem me contar, porque… porque Ben, eu sempre soube que nós éramos um amor feito pra acabar, e que você seria o grande amor dos meus vinte e poucos anos, mas não o amor da minha vida, e nem que eu seria o grande amor da sua vida. Eu sempre soube que ele tava no quarto ao lado e que uma hora você iria se dar conta disso… eu só queria participar disso tudo. Eu iria sofrer tanto quanto eu sofri quando a gente terminou, mas eu ia sofrer tendo ao meu lado os meus melhores amigos. Eu nunca ia deixar vocês. Eu nunca ia deixar o João. A gente ia arrumar um jeito de fazer funcionar, não ia?

- A gente ia. Iríamos achar o tom pra esse som. Ele iria. - suspirei.

- Ele vai. - ela segurou a minha mão e, novamente, uma lágrima escorreu.

De alguma forma, naquele que foi o dia mais infeliz da minha vida, Carol, João e eu nos reconciliamos, ainda que ele não estivesse ali para saber que estávamos bem. Antes que eu pudesse terminar de processar tudo o que havia acontecido, a equipe médica se aproximou de nós dois. Com o semblante cansado, uma médica negra e alta, de cabelos encaracolados na altura do ombro, se apresentou como Mariane, chefe da cirurgia-geral. Ela me informou que apesar do choque da batida, os danos externos foram menores do que o esperado, mas que, ainda assim, ele teve uma forte hemorragia no baço, o que ocasionou uma parada cardiorrespiratória ainda no aterro e outras duas durante a cirurgia, mas que ainda assim, apesar de toda a gravidade, ele foi reanimado com sucesso e a hemorragia foi contida pela equipe. Ele ainda precisaria de algumas semanas de internação e de tratamentos complementares, mas o quadro dele estava estável e ele ficaria bem.

Tenho certeza que ela soube que eu estava feliz e aliviado, principalmente quando eu a abracei e rodei nossos corpos enquanto gritava. Soltei o corpo dela e abracei a Carol. O ambiente hospitalar pede silêncio, mas eu não pude conter aquele grito. Meu amor estava vivo e iria se recuperar plenamente.

- Viva o SUS! - exclamei.

Apesar de querer vê-lo imediatamente, a equipe médica me pediu alguns minutos até que ele fosse devidamente acomodado no CTI - era preciso que ele tivesse monitoração constante e somente lá ele teria esse atendimento. Nossos amigos começaram a chegar e o choro de preocupação deu lugar a um choro de alívio e, de certa forma, felicidade. Mesmo fora do horário de visita, os médicos liberaram a minha entrada no CTI. Eu precisava ver ele.

Eu nunca havia estado naquele ambiente, tudo era estranho para mim, até que reconheci meu garoto, deitado na maca, ligado a alguns aparelhos de monitoramento, mas vivo. A equipe médica me alertou que embora o efeito da sedação já tivesse passado, ele ainda estaria um pouco zonzo e talvez não me reconhecesse de imediato. Tudo era possível.

- Meu amor. - segurei em sua mão, e então seus olhos se abriram. Ele me encarou durante alguns segundos, em silêncio, até que sorriu.

- Meu bem, meu Ben. - ele sorriu e, mesmo fraco, pressionou sua mão contra a minha.

- Eu te amo. Você vai ficar bem. - ele assentiu com a cabeça e, ainda sorrindo, adormeceu novamente.

Ele sabia que eu estava lá para cuidar dele. Eu sabia que tudo ficaria bem, porque estar bem, ainda que sob as intempéries da vida, é o estado natural das coisas. Eu estava ali, diante do meu mar. Eu ainda me via no olhar dele, e era como ver o mar pela primeira vez; era como vê-lo pela primeira vez. Eu não tinha a menor intenção de fugir do visgo que me prendeu àquele olhar, porque eu sabia que era amor e vinha pra ficar.

“Quando eu mergulhei

Fundo nesse olhar

Fui dono do mar azul

De todo azul do mar”

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Comentários

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Excepcional este capítulo...

A descrição das emoções de Ben, com essa riqueza de detalhes, a conversa entre João e Carol...

Tudo simplesmente perfeito!!!!

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Que presente lindo. Obrigado e parabéns por descrever tão bem a força do amor. Show.

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Obrigado pelo carinho, querido. A arte existe porque a vida não basta.

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Viva o SUS!

Que viva os fragilizados brasileiros, glsbtqi+, indígenas, negros, mulheres e outros mais...

Que saíamos da CTI o quanto antes.

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Que o futuro que se apresenta seja melhor que o retrocesso que deixamos para trás!

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João, cara, mais um capítulo de uma qualidade assim, tão grande que até quem só veio à cdc atrás de cena de sexo se envolve rs

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Sempre me alegram os seus comentários, Jota. Obrigado pelo carinho, espero que continue acompanhando a história destes dois jovens aprendendo a viver e a amar.

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