Este é continuação da série Reuniões e você somente o entenderá na íntegra se ler os anterioresREUNIÕES, SOB O LUAR DO SERTÃO - Poeirão
Minha filha já não é mais uma criancinha. Sinto saudades do tempo em que a tinha só para mim...
(Recordações de Manoel)
Nat sai depois de Cíntia e chega antes
22ª Noite
As garotas pareciam um bando de baratas tontas circulando apressadas pela casa.
- Quem pegou meu estojo de maquiagem! – grita irritada Silvia jogando todas suas roupas na cama.
- Flávia! Devolve minha sandália de continhas!
Fico parado observando divertido o corre-corre ensandecido das garotas. Até Cíntia, que não tem o costume de arrumar-se com esmero, aderira ao burburinho das primas num entra e sai dos quartos vestida em uma justinha calça jeans sem camisa. Silvia que conseguira recuperar o precioso estojo estava sentada na cama já vestida lambregando o rosto lindo com cremes e pastas coloridas. Larissa e Isabelle, comedidas como de costume, davam os últimos retoques em seus cabelos. Só Flávia parecia alheia a tudo deitada preguiçosamente na rede em seu quarto.
- E tu Flávia, não vai se arrumar? – pergunto.
- Deixa essas patricinhas terminarem de se lambuzar que me visto num segundo...
Aos poucos elas reúnem na sala aguardando que todos se aprontem.
- Amorzinho!... Ainda estais assim? – reclama Cíntia vendo que eu ainda não trocara de roupa.
- Tu sabes que comigo é ligeiro – respondo. – Mas ainda vou tomar um banho ligeiro.
- Assim tu vais nos arrasar, primo – se lamuria Silvia.
- Vou não pequenina – viro para Cíntia. – Vão indo que o Ataliba já deve ter atrelado as charretes. Aproveita e distribui o pessoal.
Saem conversando com animação. Volto ao quarto grande para buscar roupas. Flávia ainda está deitada.
- Ainda deitada princesa!
- Não estou muito afim de ir nessa festa...
- Assim vais estragar o programa das garotas – me aproximo da rede, ela está nua. – Vamos, te apronta enquanto tomo banho – puxo por seu braço estendido. Entro no banheiro e sinto a água fria escorrer pelo corpo.
Envolvo-me na toalha molhada e saio para o quarto. Flávia não mais está – deve ter metido uma roupa ligeira e ido se encontrar com as outras, imagino. Termino de me enxugar e visto a roupa pretendida e vou ao encontro do pessoal.
As garotas estão em volta de Cíntia discutindo sobre quem vai com quem e os tios aguardavam sentados nas espreguiçadeiras da varanda, com impaciência, suas esposas.
Tanto os carros quanto as charretes estão estacionados no gramado ao lado da casa grande.
- Amorzinho já chegamos ao acordo final – Cíntia se desvencilha das primas e vem ao meu encontro – Larissa com Silvia vão comigo e Flávia com Isabelle contigo.
As tias finalmente saem e são recebidas com assovios e palmas por seus maridos. Nininha, como sempre, a que veste-se com mais sensualidade. Tia Carmem optou por um vestido simples e tia Nadir estava deslumbrante. De longe a mais bonita naquela noite.
- Minha velha! – exclamou boquiaberto tio Julio. – Pareces uma modelo desfilando em Paris...
- Obra da tua cunhada – falou acabrunhada.
Ataliba chega com Marluce, não menos bela que minhas primas.
- Nat! – chama tio Julio – Vamos na frente por causa da poeira, espera sentar e siga.
Entram nos carros e seguem na frente enquanto eu e Cíntia checamos se as charretes estão devidamente seguras e presas. Aguardamos uns cinco minutos antes de partirmos. Cíntia, rindo, açoitou o pobre Alazão e sai gritando na frente. Deixo que ela tome a dianteira, pois tinha um plano que iria espanta-la. Saímos devagar.
- Assim vamos chegar no final da festa, primo! – reclama Isabelle.
- Preocupa não indiazinha. Vamos chegar antes que elas.
- Como se o Alazão corre mais que Sarita? – questiona Flávia.
- Mas Sarita conhece melhor a estrada – respondo sem responder.
- Ora primo! Queres dizer que a Cíntia não conhece essas paragens como a palma da mão? – provoca Isabelle.
Custo a responder, fico pensando nos tempos em que eu e Cíntia brincávamos correndo pelo campo e ainda podia escutar o vovô rindo de mim: - “Essa pestinha conhece cada espinho da fazenda”.
- Ei Nat, a mana fez uma pergunta...
- Não indiazinha, não disso isso. Ela conhece bem mais que eu, pois nasceu e sempre viveu aqui.
- Então que mágica faremos para chegar em sua frente? – pergunta Flávia.
- Simples! Vamos por uma picada que eu abri no mês passado...
Elas não perguntaram mais nada, ficaram caladas sentindo o balouçar da charrete e o som da batida dos cascos de Sarita. Estávamos já viajando há uns bons vinte minutos quando Isabelle pede.
- Para um pouco priminho que estou apertada.
Diminuo a velocidade e ela desce, abaixa a calça e urina.
- Nat tem algum papel aí? – pergunta antes de terminar.
- Tem não prima, vais ter que molhar a calcinha... – dou um sorriso para ela.
Isabelle deu seu jeito e reiniciamos nossa viagem. O céu estrelado e a lua bonita enchia a mata de vida.
- Primo... – falou mansinho Flávia. – Tu não tocou mais no assunto do estuproPorque? Tu ficaste chocado ou decepcionado comigo?
- O que poderia te falar que já houvessem dito ou talvez tenha sido porque não tivemos muita oportunidade de ficarmos sós... Não sei!
- Tu não respondeste minha pergunta: Você ficou chocado ou decepcionado comigo?
- Acho que não tenho que te responder isso...
- Então?Tu te decepcionaste, achas que por eu ser mulher, sou a culpada como todo mundo pensa.
- Não Flavinha eu não acho que és a culpada pelo ato animalesco do teu primo muito menos aceito essa tua acusação infundada de que, por seres mulher, as pessoas te impostam culpa. Simplesmente não consegui encontrar uma maneira de dizer o que tudo isso fez comigo. E se tua mãe não te falou, pergunta a ela sobre a conversa que tivemos sobre você.
- Que mamãe te contou?
- Não contou nada, porque falei que já sabia. Ela se preocupa muito contigo, sobre tua sexualidade, sobre tuas relações com o sexo oposto. Acho que é devido a sua experiência de psicóloga...
- E que tu lhe falou? – atalhou.
- Apenas isso que já falei a você, pois ainda espero encontrar um momento para que conversemos. De alguma maneira quero te ajudar, não sei como, mas acho que posso.
- Tu tens me ajudado como ninguém o fez desde aquele dia – ela se abraçou a mim e tentou me beijar, Isabelle que nada tinha falado, reagiu.
- Êpa! Vamos deixar de sacanagem que aqui não é motel? – falou séria, mas brincando.
- Não é motel, mas bem pode se transformar em matel... – riu Flavia empurrando sua irmã.
- É, pode até ser, mas ele terá que agüentar duas irmãs de uma vez só. – rio e me abraçou também.
- Maninha!!! – Flávia se espanta com a sugestão da irmã – Como duas?
- Ué? Eu e tu...
- Mas, mas tu és virgem!
- E daí? – riu gostoso da cara de espanto da irmã – Um dia vou ter que perder essa película besta e quem melhor indicado que esse pedaço de perdição...
Isabelle continua brincando com Flávia que leva sério o que a irmã falara quando avistamos, ao longe, o clarão do terreiro apinhado de gente. Tínhamos chegado.
- Flávia deixa de besteira que Isabelle apenas brincou contigo – falo firme tentando encerrar a briga das duas. – Chegamos.
- Já? – fala Isabelle – Cadê as meninas!
- Te falei que iríamos chegar na frente. Elas ainda vão demorar um pouco mais.
Deixei a charrete com o Nezinho já melado de cana que veio ao nosso encontro quando nos viu, e saímos em bisca dos tios.
- Garotas – falei enquanto passava os braços sobre seus ombros. – Seria bom se aquele assunto se encerrasse aqui. As duas concordaram, mas Flávia avisou que ainda queria continuar em outra hora.
- Flavinha, nem sempre as palavras que dizemos ou os gestos que praticamos representam aquilo que sentimos – ela me olha sem entender e tenta replicar quando somos chamados pelos tios.
Os tios estavam abancados em uma mesa afastada das caixas de som. Em um palco improvisado o conjunto atacava os forrós da região e o salão improvisado estava apinhado de casais dançando.
- Cadê as outras? – perguntou tio Julio quando não viu a filha.
- A Cíntia saiu antes da gente em disparada...
- Mas ela ainda não chegou... será que aconteceu alguma coisa? – vira-se para mim. – Tu não viu quando passou por elas.
- O primo pegou um atalho – explica Flávia. – Logo ela ta chegando.
- Porra Nat, porque tu não ensinou pra tua irmã? – reclama tia Nadir.
- Qual é tia, temos que ter algumas cartas escondidas na manga – sorri e fui falar com alguns colegas de sala que me apresentaram suas namoradas.
Cíntia demorou quase dez minutos para chegar e quando nos viu, ficou espantada.
- Como é que vocês chegaram?
- Coisas de profissional, minha cara mana – falei sorrindo.
Uma sanfona, uma zabumba, uma rabeca e um triângulo eram o que compunha o conjunto.
Tio Julio puxou Larissa, que se debateu, para o salão acompanhado por Tio Manoel com Cíntia e Tio João com Isabelle. Convido Flávia que reluta um pouco antes de aceitar.
Entramos no poeirão e dançamos a noite toda sem voltarmos para a mesa.
- Primo, tem coisas na vida da gente que não conseguimos explicar e nem evitar...
- Uma vez li uma frase que te dou de presente: “A arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal”.
- Onde isso se aplica em minha vida?
- Em tudo, não só na tua, mas também na minha e na de todo mundo que procura viver bem. Acho que precisamos ser um pouquinho, só um pouquinho inteligentes para colher as coisas boas e separar as coisas ruins.
- Mas como vou encontrar alguma coisa boa nessa tragédia?
- Aí mesmo! Com tua tragédia muitas pessoas se colocaram para ajuda-la, talvez algumas de quem você jamais esperava um ato bom em teu favor.
Ela não responde de imediato. O conjunto toca Assum Preto e dançamos escutando com bastante atenção a letra.
- Escuta bem: “Também roubaram o meu amor que era a luz dos olhos meus”. – murmuro em seu ouvido.
- Me roubaram muito mais que isso, primo. Meus sonhos, meus planos e parte de minha vida.
Flávia me abraçava forte e chorava baixinho. Seu corpo tremia a cada soluço, sua respiração apesar de tudo era suave. Parecíamos um só corpo ungido por sua dor seguindo o som suave da sanfona.
- Mas tu ganhaste novo horizonte por um caminho difícil e dolorido...
- Mas perdi pessoas que imaginei amigos, pessoas que me viraram a costa no momento em que mais precisei delas...
- E ganhaste outros...
- Mas alguns com intenção de usar meu corpo que já fora fodido... Sabe primo, muita gente pensou que eu iria me tornar menina de programa, prostituta. Essa foi a maior barra que enfrentei: a filha do João foi fodida! – falou com raiva.
- A glória do tempo é acalmar os reis em conflito – repeti a frase de Shakespeare – Permita que o tempo trabalhe em teu coração...
- Tá custando demais... Tem hora que penso que enlouqueço...
- Tudo chega com o tempo, para quem sabe esperar. E precisas saber.
O conjunto para de tocar e os casais saem em busca de suas mesas. Saímos também e nossa mesa estava vazia. Procurei entrar o pessoal sem sucesso. Vi Ataliba.
- Cadê todo mundo?
- Ué! Eles já foram. Que foi, deixaram vocês?
- Como já foram?
- Já foram... Onde vocês estavam?
- Dançando no poeirão?
- Nat! Cadê teu relógio! – perguntou percebendo o que acontecera.
Olho as horas e me espanto.
- Puta merda! – viro para Flávia – Menina tu sabes a quanto tempo estamos dançando?Já passa de uma da madrugada... – pergunto para Ataliba – E a Cíntia? Ela também foi?
- Claro? Saíram todos juntos amontoados dentro dos carros.
- E as charretes?
- Teu tio pediu para eu levar uma, a outra ele disse que tu mesmo levarias...
Nos despedimos do Ataliba e fomos pegar nosso transporte.
- Puxa Flávia, nem notei que demoramos tanto?
- Também não Nat! – falou se aconchegando a mim – O papo tava tão gostoso que não percebemos o tempo passarTem momentos que te acho tolo em se preocupar tanto com os sentimentos das pessoas...
- Aquele que se importa com os sentimentos dos outros não é um tolo. Nem sábio talvez, mas alguém que queira repartir um pouco o seu próprio sentimento.
Ela calou e Sarita tomou o rumo de casa, dessa vez sem pressaPoeirão: Local, geralmente um terreiro com terra batida e molhada, parcamente coberto com palhas onde o povo dança nas festas do interior.
(2) Machado de Assis
(3) Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira