A sua respiração ofegante denuncia o seu nervosismo, ao passo que minha reciprocidade não mostra se eu realmente queria aquilo ou se ainda estava em estado de choque. Bruscamente, sua língua se encontra com a minha me dando arrepios. Sua mão puxa meu pescoço cada vez mais forte ao encontro dele e posso sentir sua língua indo mais fundo... Explorando... Conhecendo... De repente ele começa a acariciar meu rosto com a outra mão. Suas mãos estão trêmulas e geladas, contradizendo o que a sua boca está provocando em mim, algo suave e avassalador ao mesmo tempo. O ritmo vai diminuindo, agora ele está apenas sugando meus lábios. O inferior. Ele puxa. Estou gostando disso. Ele pára. Estou de olhos fechados, ainda em transe. Seus lábios se afastam dos meus e eu tenho medo de ver a realidade. Ouço sua voz:
- Me desculpa... – diz ele, com uma voz rouca.
Abro os olhos. Ele está suando na testa mesmo com ar-condicionado tendo sido desligado há alguns segundos (será que foi há alguns minutos?). Ele volta a fitar a janela com o braço apoiado à sua esquerda. Não sei o que dizer. Minha mente ainda está embaçada e as pernas tremem.
- Tchau... Até segunda! – murmuro corajosamente.
Ele não responde, apenas se vira pra mim e sorri sem vontade. Saio do carro que parte em seguida. Entro em casa ainda não conseguindo assimilar nada a minha volta. Nunca pensei que isso pudesse acontecer... Ainda mais com o Vinícius... Jogo as chaves na mesa... Entro no banheiro. Chuveiro. Agora posso pensar... No que exatamente? Sobre o que eu quero refletir? Meu melhor amigo me beijou de surpresa e eu gostei?! É isso?! Já era, já foi... Estou me chicoteando internamente. De repente uma frase surge como uma placa de motel iluminada: Como vai ser daqui pra frente? Eu respondo... “Não faço a menor ideia”. Nesse momento sinto medo, porém também sinto alegria. Medo de perder a pessoa que mais me compreende. Alegria por talvez poder conhecê-la de outra maneira. Vou pra cama. Nessa noite demoro a cumprir a última etapa do meu dia. Durmo contra a minha vontade. Vinícius está controlando meus pensamentos.
As persianas indicam que o sábado amanheceu frio. O edredom parece ter se “auto-enrolado” em mim na última noite. Não tenho disposição nem para abrir os olhos. Meus braços ainda estão doendo e eu procuro uma posição que não me incomode tanto. Olho o meu smartphone substituto que está do meu lado. São nove da manhã. Até onde sei, não tenho nada pra hoje, já que sábado é o meu dia de folga na livraria. Sinto pena dos condenados que irão trabalhar nesse frio... Frio... Lembro instantaneamente do carro do pai do Vinícius... Lembro-me de Vinícius... De ontem a noite. Ainda não consegui chegar a nenhuma conclusão sobre aquilo. A única coisa que sei é que foi bom... Será que é arriscado pensar que eu faria de novo? Estou pisando em ovos internamente. Vou para a cozinha e vejo minha mãe tomando café.
- Parem as máquinas que a chefa tá em casa! – brinco
- Ha... Ha... Ha... – responde ela, sem graça.
- Não foi trabalhar hoje por quê?
- Tirei o dia livre e dei folga pra Maria – Maria é a diarista – E aí? Como tá a academia? – pergunta ela, analisando meus braços.
- Ah... vai indo. – sinto um calafrio.
- Você já tá ficando mais fortinho, hahaha... Espero que não exagere muito. – diz ela, em seguida tomando um gole de café.
- Hahaha, pode deixar.
- Ah, o Vinícius veio aqui ainda agorinha... - nesse momento sinto um segundo calafrio, mais intenso e mais forte. Porque ele não me ligou? Deve estar envergonhado demais... Mas se está porque quis me ver pessoalmente? A caixa de recados continua – eu disse que você ainda tava dormindo e ele pediu pra dizer que dava um jeito de falar com você mais tarde – termina ela, colocando os óculos pra ler o jornal. Aff, essa formalidade toda não tem nada a ver com o Vinícius, parece até um coleguinha de escola que está indo na sua casa brincar. Respiro fundo.
- Ah tá, obrigado.
- Aconteceu alguma coisa? – pergunta ela levantando os olhos pra mim, já farejando alguma sensação estranha no ar. Passo a mão no cabelo, sinal de mentira que minha mãe já conhece. Mesmo assim, arrisco.
- Não... Nada. – respondo, mordendo o lábio.
- Ah... Você vai comer? Comprei pão e requeijão, tá ali em cima! – diz ela, apontando pro balcão.
- Vou.
Estou com fome mais que o normal. Geralmente, costumo comer alguma coisa depois da academia, coisa que não aconteceu ontem à noite por motivos óbvios. Além de dois pães com requeijão, ainda planejo comer mais um daqueles bolinhos gordurosos de chocolate. Minha mãe atrapalha meus planos:
- Coma um pão com requeijão, depois tome um iogurte e coma uma fruta! – diz ela, tirando o jornal do rosto.
- Eu sei mãe.
Enquanto como, ouço minha mãe dando ordens pelo celular pra, acredito eu, alguma estagiária: “Manda pra Brasília”. “Não é assim Beth, tem que salvar em PDF”. De repente a campainha de casa toca. Minha mãe, com o seu dom paranormal de fazer mais de duas coisas ao mesmo tempo se prontifica a atender. Continuo comendo. Ela se dirige até a porta, aumentando o tom de voz com a “estagiária incompetente”. Mordo uma maçã. Penso em “fruto proibido”. Rio. Minha mãe está falando com um homem. Ouço meu nome. Minha mãe grita:
- Lippo, vem aqui! – estremeço. A estagiária do outro lado da linha deve ter se assustadoCadê esse bandido? – diz minha mãe, trazendo vários olhares sonolentos pra ela. Olho para as várias cadeiras ordenadas à minha frente. Alguns travestis de pernas cruzadas me olham e cochicham em seguida.
- Calma dona Geise, ele tá em outra sala! – responde o paciente policial que bateu em nossa porta.
- E porque não prendem logo ele? Já não tá provado que o celular é do meu filho? – pergunta ela, diminuindo quase nada o seu tom de voz.
- Sim, o celular é do seu filho. Mas ele não abriu queixa e só poderemos fazer o que a senhora quer se o seu filho permitir.
Estou calado desde quando saímos de casa. No caminho, o policial contou em detalhes a história. Ontem à noite, receberam uma denúncia de que estaria havendo a venda de drogas numa “rave” fora da cidade. Resolveram averiguar. Não só estava acontecendo a venda como estavam permitindo a entrada de menores de idade. Entre os que estavam consumindo drogas estava ele, Rafael. Com ele estava o meu celular, que segundo o policial, já admitiu ter roubado. Assim, resolveram entrar em contato comigo para devolverem.
- E o que temos que fazer? – pergunta minha mãe, objetivamente.
- Me acompanhem. Por favor, dona Geise, peço que a senhora se acalme agora, senão não vou permitir que a senhora entre – diz o policial. Minha mãe apenas assente rapidamente com a cabeça, não passando nenhuma confiança.
Andamos por um corredor e entramos numa sala. Pelo vidro da porta posso vê-lo. E minha mãe também.
- Desgraçado! Ladrãozinho de merda! Você vai pra cadeia! – grita minha mãe abrindo a porta e indo em direção dele.
O policial que está dentro da sala intervém e a segura. Um homem que está sentado em frente a ele ordena:
- Contenha ela lá fora, o garoto já é maior de idade e pode resolver isso sozinho.
Na hora estremeço. Estou atrás dele, sentindo aquela mesma intensidade fugaz que senti todas as vezes que estive a pelo menos três metros. Está usando uma calça jeans escura e uma camisa folgada preta, pelo menos nas costas, com um tênis branco largo estilo skatista. Ele não se vira pra olhar pra mim... Nem sei se pode fazer isso. O homem do outro lado da mesa fala:
- Sente-se aqui, Felipe, vamos resolver logo isso! – sinto meu sangue congelar quando ele aponta pra cadeira ao lado dele. Sento. Ele se vira pra mim, me olhando de um jeito estranho, como se não tivesse dormindo a noite toda. – É o seguinte, o garotão aqui, que se chama... Rafael Iva... Ivanov, foi liberado pela acusação de venda de drogas. Ele foi revistado e ficou comprovado que só estava consumindo mesmo. Já ficou a noite na cela e ia ser liberado... Até que encontramos esse celular que ele contou... Não sei por que motivo... Ter roubado... Por isso, precisamos que você diga se quer ou não abrir queixa contra ele.
A ideia do delegado mais parece um pedido de “fala logo, não quero mais perder tempo com isso!”. Rafael me olha. Correspondo durantesegundos. Lembro-me dos telefonemas, do nosso embate, de eu ter ido parar no hospital e ele ter me levado talvez em seus braços. O jeito como ele me olha me comove, fazendo meu peito apertar. Percebo que os seus olhos se enchem de lágrimas de uma maneira que eu não compreendo. Vejo um garoto desordeiro se transformar numa criança que está encurralada. Disfarçadamente ele as enxuga antes que caiam. Tudo o que foi dito volta à tona em minha mente. Eu já sei o que vou fazer e tenho medo do que isso causará.