Assim que ele se foi a frase apareceu em minha mente: ESTOU SALVO!
No começo gostei, era como um troféu. Como se eu tivesse ganho o prêmio
da sedução perfeita. Sim, a sedução perfeita que muitos dizem ser uma mentira, uma
ficção, era agora um segredo meu, uma conquista e uma satisfação pessoal. Mal
sabia eu que aquelas duas palavras seriam a minha mais perfeita ruína...
Nos dias seguintes a satisfação circulava por todos os poros de meu ser.
Lembro-me de acordar, causar as sandálias e ir verificar se ele tinha morrido,"MORREU" pensei e logo depois vários amigos indo me visitar para dar os pésames da morte de meu "querido". Lembro-me da minha expressão forjada, ao ouvir deles que minha vítima
havia morrido em paz, de morte natural durante o sono. Lembro-me de ter inclusive
lacrimejado! Sem saber, eu era um ator e dos bons, afinal havia conseguido
enganar várias pessoas com minha encenação.
Essas memórias me dão, até hoje, uma sensação de conquista e de superioridade
que estariam completas se não fosse a existência do Demônio da Perversidade.
Engana-se quem pensa que o demônio tem chifres. Está errado quem acredita
que ele anda por aí a espetar as pessoas com o seu tridente. Não sabe nada da
vida quem acha que ele vive embaixo da terra, num inferno de labaredas. É até
engraçado pensar que, para muitos, o “demo” tem pele vermelha e uma cauda
pontiaguda. Sabe por que quem pensa assim está errado? Porque o demônio não
tem aparência nenhuma. Nem corpo, nem nada. Porque o demônio mora dentro
de nós. Dentro de nosso próprio cérebro. Talvez seu sobrenome seja consciência,
talvez seja moral, não sei. Sinceramente, meu espírito acadêmico anda cansado
para tais filosofias. Prefiro chamá-lo apenas de Demônio da Perversidade, a criatura
que me trancafiou nesta cela de condenado.
Durante anos eu vivi em paz e alegria com o meu crime, com a minha riqueza
e com meu parente morto, mas o demônio é ardiloso. Ele sabe esperar, ele
aguarda seu momento de fraqueza e então começa a incomodá-lo. Começou
de leve, aos poucos, com breves insinuações, apenas com lampejos, com a
frase ESTOU SALVO. Mas, com o passar dos dias, das semanas e dos meses, foi
crescendo numa OBSESSÃO perseguidora. Primeiro eram mínimas as vozes, depois seu volume foi aumentando e, por fim, eram várias vozes martelando minha
cabeça repetidamente com o coro:
“ESTOU SALVO”
“ESTOU SALVO”
“ESTOU SALVO”
O meu maior troféu, a minha glória pessoal, a minha grande façanha se tornou
um INCÔMODO sem precedentes. Um demônio perverso que me perseguia
onde quer que eu fosse. Que não me deixava dormir, nem me alimentar, nem
fazer minha higiene. Se eu corresse ele corria atrás, ou melhor, dentro de mim. Se
eu ficasse parado a sensação era de descontrole. Era impossível trabalhar ou me
divertir. Resumindo: era impossível viver!
A cada segundo que passava, o refrão
“ESTOU SALVO”
“ESTOU SALVO”
“ESTOU SALVO”
afundava seus caninos em meu cérebro.
Passei a falar sozinho, para que minha voz me distraísse de minha voz interior.
É óbvio que as pessoas percebiam e se entreolhavam ou me olhavam com
ares críticos. Para não ficar malfalado, passei a cantar, na esperança de que minha
cantoria me trouxesse alívio. Só que nunca fui um bom cantor, além disso tinha
vergonha de cantar na presença de outras pessoas. Minha situação ia piorando a
cada dia. Por isso eu tentava me distrair no campo e na floresta. Lá meus cabelos
e minha barba cresceram, mas depois de algumas semanas a vida campestre não
satisfazia mais o meu ser e não me dava mais paz. Tive que voltar para a cidade.
Era uma tarde quente, estava caminhando pelas ruas do centro, tentando
me distrair das vozes, quando a depravassão dominou minha boca e comecei
primeiro a tirar a roupa no meio da rua e ficar totalmente nú e depois balbuciar lentamente:
— Estou salvo. Estou salvo.
E depois a murmurar baixinho:
— Estou salvo. Estou salvo.
Antes que pudesse reagir eu já estava falando e logo gritando aquelas palavras
curiosas que poderiam pôr em jogo a minha liberdade assim que alguém
me perguntasse:
— Afinal, de que é que você está salvo?
Por isso comecei a correr. Pretendia me esconder novamente com vergonha do que fiz na rua, eu ia me esconder na zona rural da
cidade ou em alguma floresta, onde ninguém me escutasse. Mas o povo ficou curioso e várias pessoas começaram a me seguir em minha gritaria. Alguns otários pensaram
que eu era uma espécie de MESSIAS, algum tipo de líder religioso PREGANDO a
salvação. Sua crença só piorou minha situação, pois ficavam repetindo:
— Ele está salvo!
— Sim, ele encontrou a salvação!
— É isso! Ele diz que está salvo, então ele sabe o caminho!
— Ele é o escolhido!
— Ele é o novo messias...
— Mas não era ele que estava nú um dia na rua?
Essas tolices acabaram atraindo a atenção de mais gente. Algumas pessoas
ficaram revoltadas comigo e também resolveram me perseguir:
— Cala a boca, falso messias!
— Nenhum IMPOSTOR pode tomar o lugar do filho de Deus!
— LINCHEM esse mentiroso — gritavam os que não estavam de acordo com
a falação do primeiro grupo. De minha parte, eu só queria correr e fugir dali. Longe
de ser um enviado de Deus, eu lutava contra meu próprio demônio interior e, após
alguns minutos, contra o cansaço físico. Seria uma situação engraçada, não fosse
tão dramática e perigosa.
É claro que aquela gritaria toda chamou a atenção da polícia. Em pouco
tempo, guardas a pé e a cavalo se infiltravam na multidão. Para um policial, ver
um único homem fugindo de dois grupos numerosos de pessoas só significa uma
coisa: que eu era um malandro que precisava ser detido. A cavalo, um guarda
tomou a dianteira e conseguiu me derrubar. Caí no chão frio e rasguei as calças e
os joelhos. Membros da “minha seita” vieram me socorrer. Gritavam:
— Homens fardados novamente estão maltratando o filho de Deus!
— A história se repete!
— Mas desta vez não vamos permitir que humilhem o filho do Senhor! —
gritavam os novos fanáticos.
Alguns deles partiram para a briga com os policiais. A tropa jogava os cavalos
sobre o povo e a confusão estava armada. Nove outros policiais me cercaram e
algemaram. Com tiros para o alto eles me protegeram do grupo que queria me
adorar e do grupo que queria me linchar. Por alguns instantes, meus “seguidores”
tentaram me libertar da polícia:
Continua...