Aquela, inacreditavelmente, foi uma boa noite, sem pensamentos atribulados e vertiginosos sobre Gelo. Dormi tranquilo e acordei com humor digno de um sol brilhante e pássaros cantando, me arrumei e desci para a mesa de café, só para encontrar minha mãe sentada com o mesmo olhar estranho do dia anterior.
— Bom dia, Zangado — disse sentando-me.
— O nome correto é soneca — respondeu me passando uma caneca — O Pastor está me matando silenciosamente com esse trabalho...
Coloquei café puro e olhei sem levantar a cabeça.
— Esse tal projeto é assim tão importante?
— Sim, muito. — e não disse mais nada.
Dei de ombros e agarrei um bauru com uma mão e a mochila com a outra, já que desde a segunda semana de aulas minha mãe não me levava, e eu andava 1km de casa até a escola aproveitando o caminho para pensar sobre a vida e assuntos aleatórios. Cheguei na esquina e avistei uma figura conhecida parada de costas para mim com a mesma expressão corporal de quem vai para a forca.
— Tigo! — gritei, fazendo-o se virar.
— Ah... — ele parecia abstraído — Bom dia, Lu.
Estranhei o comportamento, qualquer coisa fora animação e drama aparentava estranho no garoto.
— Que houve? — perguntei encostando em seu ombro.
—Em que época do ano estamos?
—Ah... Agosto, por que?
Ele suspirou e me entregou um cartão.
— O que tem o Dia dos pais? — devolvi o papel e começamos a andar em direção ao portão.
— Você sabe... — fez um gesto— Presentes para seu pai...
— Sua mãe também é divorciada? — perguntei, me lembrando da época do divórcio de meus pais, não foi nada bonito.
Ele confirmou com a cabeça. Ficamos um tempo em silêncio, até chegar perto da porta da sala.
— Foi há cinco anos, quando voltaram de uma viagem.
— De onde? — entrei na sala puxando a mochila.
— Irkutsk, Sibéria.
Travei onde estava, me lembrando de um certo recorte de jornal e um certo nome abaixo de uma foto, fiquei curioso para perguntar mais, mas algo me disse que não era uma boa idéia.
— Não vai se sentar? — ouvi-o perguntar de seu lugar.
Abanei a cabeça.
— Não, não — apontei para uma carteira à esquerda superior — Vou conversar com a Lara hoje.
Tiago me olhou de início confuso, mas vi um sorriso de compreensão surgir depois de alguns segundos. Sorri de volta e caminhei até a cadeira, com o olhar da garota caindo sobre mim.
— Veio me fazer companhia, caro senhor? — seu tom era divertido.
— Bela dama — repliquei com uma reverência — Companhia, sim, mas devo lhe advertir de que não sou nenhum "senhor".
Ela riu e sentei-me, sentindo minha espinha arrepiar logo em seguida.
— Bom dia — ouvi uma voz grave e baixa por minhas costas.
Me virei com o olhar de espanto absoluto de Lara sobre mim e repliquei animadamente.
— Bom dia! — a voz soou baixa o suficiente — Como vai você?
— Melhor, obrigado. — e abaixou os olhos para o livro.
Senti um puxão na gola e os olhos vibrantes de curiosidade.
— O que aconteceu? Porque ele está falando com você? — o puxão ficou mais forte — Porque ele falou? O que aconteceu ontem?
Sorri timidamente e me preparei para responder, mas não foi necessário.
— Sim, eu posso falar — a voz de Leo soou baixa — Lara, ele me acompanhou ontem, tivemos tempo de conversar — seus olhos de abismo caíram sobre mim — Estranho seria se eu o ignorasse hoje — e o velho sarcasmo deu suas caras — Mas se estiver com ciúme, Bom dia para você também.
Ela não respondeu, baqueada com a surpresa, o que me fez virar para frente e sorrir discretamente.
As aulas transcorreram traquilas e durante o recreio Gelo desapareceu, fazendo com que Tiago, Danilo e Mariana me pusessem no tribunal da inquisição para descobrir o que aconteceu na tarde anterior, despistei-os dizendo que havia deixado-o no apartamento e voltado para casa, sem nada mais. Engolindo a história ou não, o resto correu tranquilamente e aproveitei um espaço entre a quinta e sexta aulas.
— Leo — chamei me virando por sobre o ombro — Aproveitando que a Lara saiu, você vai almoçar aonde hoje?
Ele levantou os olhos do livro negro e pensou um pouco.
— Em casa - disse após algum tempo — Está pensando em me convidar para outra coisa?
— Na verdade, sim. - passei a mão para afastar os cabelos, que caíam como uma pequena cortina dourada "Está na hora de cortar" pensei — Quer ir almoçar na minha casa?
— Bem... — começou, fechando o tomo — Tem comida, então sim — comecei a esboçar um sorriso — Mas não hoje.
O esboço de alegria desapareceu.
— Por quê?
— Lucas...
Interrompi-o.
— Lu.
Gelo me encarou sem expressão por alguns segundos.
— Certo... — disse levantando uma sobrancelha —Lu, mal nos conhecemos, não posso simplesmente ir na sua... — Foi interrompido pelo sinal, avisando que a aula acabara — Na sua casa.
Olhei-o por alguns minutos e sem dizer palavra, retirei meu celular do bolso e disquei, após algum tempo atenderam.
— Diga, filho. — minha mãe estava de folga essa manhã.
— Mãe, lembra daquele amigo meu de ontem? - a pergunta foi retórica, era óbvio que ela se lembrava — Ele vai almoçar com a gente hoje, tudo bem?
Vi Leo gesticular e balançar a cabeça em negação. Coloquei no Loudspoke.
— Mas é claro que sim! — ela estava animada — Eu adoraria poder conhecer outro amigo seu!
Retirei do Loudspoke e vi um brilho de raiva nos olhos negros.
— Trapaceiro... — e voltou ao livro.
Lara chegou e se sentou, perguntando se tinha perdido alguma coisa.
— Só a aula inteira. - disse com um sorriso.
Ao período terminar, esperei Gelo arrumar suas coisas e consegui pela primeira vez um vislumbre de seu caderno, todo rabiscado e escrito com uma caligrafia elegante, mas não exatamente delicada. Tiago se aproximou enquanto isso e brincou um pouco com meu cabelo.
— Daqui a pouco vão te confundir com uma garota - disse enquanto levantava as pontas — Vai ficar no colégio hoje?
Me preparei para responder, mas a voz grave do meu novo amigo o fez primeiro.
— Vamos antes que eu mude de idéia? — disse jogando a mochila nas costas.
Senti os músculos de Tiago se tencionaram, como se alguém houvesse acabado de socá-lo no estômago e ele me soltou. Me virei e me despedi, deixando-o petrificado com a situação.
— O que diabos aconteceu entre vocês dois? — perguntei quando alcançamos o portão do colégio.
— Ele não aceita muito bem o fim do nosso namoro. — Leo replicou como se fosse a coisa mais normal da terra.
Eu, por outro lado, petrifiquei com o pé no ar, atingido em cheio pela informação, demorou algum tempo até que eu pudesse falar outra vez.
— O que? — perguntei incrédulo — Isso é sério? Vocês realmente...
Ele me encarou e revirou os olhos.
— É claro que não. — disse sério — Acha mesmo que sou o tipo de pessoa que namoraria outro cara?
E ficou esperando. Ri um pouco de nervosismo, mas na verdade aquilo doeu um pouco, e eu nem sabia o motivo "Foi só um comentário idiota, Lucas, isso não aconteceu" pensei.
— Achei que estivéssemos indo comer, não para um show de suas habilidades como estátua.
Acordei e percebi a posição ridícula em que estava, desci o pé que ficara no ar e continuamos andando em direção à minha casa, conversando sobre livros o caminho inteiro. O garoto era incrivelmente viciado em livros, percebi, já havia lido tantos livros que para cada frase que eu falava ele rebatia indicando um título diferente, e me surpreendi ao saber se ele tinha um livro favorito.
— Favorito? — ele pensou um pouco e olhou para cima — Alice no País das Maravilhas.
Ri um pouco e continuamos conversando até em casa. Era tão bom ficar perto dele com esse humor! Brincava, fazia piadas, era gentil e doce como nunca pensei que alguém fosse ser. Quando chegamos, minha mãe nos recebeu com alegria e uma mesa coberta.
— Ahn... Mãe? — apontei para o forro branco que cobria a mesa — O que é isso...?
A réplica foi típica.
— Paciência, vocês vão logo descobrir — apontou para o lavabo debaixo da escada — Agora lavem as mãos.
Leo parecia meio constrangido, mas ajudei-o a se soltar um pouco, depois das mãos lavadas, minha mãe veio com a cena.
— Preparar... — segurou a ponta do forro e puxou para cima, fazendo um floreio antes de puxá-lo para si — Tcharã!
Olhei a mesa com confusão, nunca havia visto nenhum daqueles pratos, muito menos Dona Laura fazer aquilo para alguém. Gelo por outro lado parecia surpreso.
— Uau! — disse encarando a mesa — Faz muito tempo que... — parou e respirou fundo, como se o cheiro daquilo fosse algum tipo de perfume — Dona Laura, onde a senho...
— Fiz isso especialmente para você — o olhar caramelo de minha mãe parecia se divertir — Mas se me chamar de "Dona Laura" mais uma vez eu te corto, garoto. O nome é "Tia Laura"
— Como assim fez para mim? — a dúvida era evidente.
— Vamos comer, depois eu explico.
Fiquei olhando de um para o outro sem entender.
— Não vai se sentar? — Leo me perguntou.
— Calma — disse e olhei para a ponta da mesa — O que é tudo isso?
Dona Laura começou a se servir de alguma coisa laranja e borbulhante.
— Culinária russa.
Me sentei e comecei a me servir da mesma coisa borbulhante enquanto martelava inquietantemente sobre o porque da escolha de pratos. Desisti ao perceber que a coisa borbulhante era uma delícia, podia comer aquilo durante toda minha vida sem me enjoar ou mesmo ficar com vontade de mudar de sabor.
O almoço correu tranquilo, com poucas perguntas por parte de todos (ocupados demais comendo), até que terminamos tudo que havia na mesa.
— Como estava? — minha mãe perguntou para ninguém em especial.
— Muito bom — respondi.
— Perfeito, com um pouco de gosto de nostalgia - Leo parecia satisfeito, até mesmo um pouco mais corado.
— Ótimo - ela replicou, olhando para o que sobrara — Lu, pode tirar a mesa?
Concordei com a cabeça e comecei a retirar tudo, deixando o garoto um pouco envergonhado, fazendo menção de ajudar, mas sendo impedido. Levei tudo para a cozinha e comecei a guardar tudo em vasilhas de plástico para colocar na geladeira, porém, parei ao ouvir o barulho de uma cadeira sendo arrastada e logo em seguida um trecho cantado em uma língua diferente, que não reconheci mesmo com a melodia sendo tão familiar "já ouvi isso em algum lugar" pensei. Esperei alguns segundos e fui para a sala de jantar, só para encontrá-la vazia, com duas cadeiras fora do lugar e um objeto brilhante em cima do forro, andei até a mesa e peguei-o: Era um relógio de pulso, uma coisa que minha mãe sempre usava, independente de onde estivesse. Olhei bem para aquilo e comecei a pensar porque ele estava ali, até que virei-o e conferi o lugar onde deveria ficar a assinatura do fabricante, batendo a palma na testa logo em seguida e largando-o onde estava para subir as escadas correndo. Quem diria que Dona Laura gostava de relógios personalizados?
Especialmente personalizados com os desenhos de uma Lua cheia prateada e uma folha genérica verde?
Hail, persona! Como vão vocês? Estou morto de cansaço com as primeiras provas da faculdade e tenho certeza de que tomei no meio do... Com a primeira prova de harmonia, mas fazer o que... C’est la vie! De qualquer forma, lamento não responder os comentários hoje, a net daqui esta caindo o tempo todo e tenho que usar esse espaço de tempo pequeno para posta o capítulo novo^^
Certo, agora que arranjo tempo para escrever não tenho internet para postar... Oh céus! Mas o que posso eu fazer? é a vontade dos deuses. Bene, tenho que encerrar por aqui, e como já deixei meu contato aqui, quem quiser conversar é só me colocar nos contatos, juro que não vou reclamar^^ Abraços a todos.
Gratzie.