. – Mi... Mi... Miart-se-va!
Não me surpreendi, já era a décima vez que ouvia a estranha expressão sair da boca de Gelo, uma a cada vez que espirrava naquele dia e mais quarenta ou cinqüenta ao longo da última semana. Estávamos em Agosto, e posso dizer que sem a presença do garoto durante minhas manhãs minha vida ficou mais tranqüila e despreocupada, infelizmente, só minha vida e não meu coração. Sentia um aperto forte no músculo cardíaco toda vez em que pensava na noite em que conversamos como ele fora gentil e amigável, naqueles olhos negros com a beleza da lua... E também no garoto frio e maldito que pisava em mim, era a representação da má criação na terra, e que juntamente com aquele que pensei ser o ser mais puro do colégio, Tiago, guardava algum segredo sórdido que algo me dizia que não era coisa assim tão óbvia. Tigo deu-me a impressão de repulsa e ódio no trecho de conversa que havia escutado, enquanto Gelo lhe retribuía com a mesma má criação de sempre, com a diferença de uma leve ponta de preocupação na voz.
Ao voltar às aulas, afastei-me um pouco de Tiago, preferindo ir conversar com Lara, uma garota que se sentava na cadeira enfrente à de Leo. Desde então, ouvir a expressão (que depois descobri que se escrevia assim) “Miart-se-va” tornou-se de certa forma uma rotina, mas naquele dia específico, alguma coisa estava errada.
. – Gelo! – a professora de álgebra chamou, chegando perto da cadeira – Meu querido, você está bem?
Mesmo sem olhá-lo, percebi o ódio que emanava ao ouvir alguém chamá-lo de querido.
. – Estou... – alguma coisa na voz dele falhou – Esquece, não estou – levantou-se – vou à enfermaria.
E saiu andando. A professora não fez nenhum comentário e continuou a aula.
Comecei a pensar no que estava acontecendo, mas foi melhor perguntar à Lara.
. – Larinha – chamei – O que foi isso?
Ela me olhou com expressão de surpresa.
. – Não sei – disse com surpresa – Em quatro anos nunca o vi sair da sala, ou mesmo não responder mal alguém...
Fez menção de continuar, mas o olhar dirigido por Tiago para mim naquele momento me fez fazê-la calar.
A aula continuou normalmente durante alguns minutos, estávamos no meio da manhã e logo seria o recreio, quando Gelo entrou outra vez e marchou em direção à sua cadeira, esbarrando em mim no caminho. Senti sua pele quente.
. – Alunos! – alguém gritou – Como vocês já sabem, especialmente você, Amanda – Amanda era a única garota da sala que jogava futebol – Sou Judite, a enfermeira do colégio – apontou para o peito – E preciso da ajuda de um aluno voluntário – todos levantaram as mãos – Para acompanhar o aluno conhecido como “Gelo” até sua casa – as mãos abaixaram no mesmo instante – Ora, vamos, é colega de vocês!
As mãos continuaram abaixadas, e a enfermeira apelou.
. – Certo, então – disse irritada – Se ninguém se voluntaria para levar um colega doente até em casa, por que os responsáveis não o podem fazer agora, então eu indicarei um para...
. – Chega! – a voz de Leo retumbou na sala como um trovão, causando o silêncio e espanto de todos ao redor – Eu vou sozinho, não preciso de ajuda.
Me virei e olhei-o, em seguida estendi a mão.
. – Judite! – chamei – Eu o levo.
O espanto da classe estava voltado a mim agora, um garoto novato levando o inimigo da sala para casa. Comecei a arrumar minha mochila e ouvi outra vez a voz baixa e grave.
. – Eu disse: Não preciso de ajuda.
Me levantei e coloquei a mala nas costas.
. – Cala a boca – respondi com um sorriso.
Andei até a porta sentindo o olhar de todos nas minhas costas, ouvindo os murmúrios de espanto e os passos furiosos do garoto atrás de mim.
A enfermeira nos acompanhou até a porta do colégio, para explicar como eu deveria agir: Levar Gelo até em casa, caso alguma coisa acontecesse deveria ligar para ela imediatamente, e ao deixá-lo voltar imediatamente para o colégio. Assenti com a cabeça e corri até gelo, que já estava na rua, me esperando.
. – Para que lado... – comecei.
. – Esquerda.
Olhei para a direção indicada e vi um agrupamento de prédios uns sete quarteirões no horizonte... A área comercial da cidade. Não fiz comentário e o segui sem pensar.
Não se passaram dois quarteirões e vi o garoto cambaleando para a direção da rua, por isso corri e segurei-o pelos ombros.
. – Me larga – ouvi-o sussurrar – Eu consigo andar... Sozinho...
Olhei-o sem vontade e passei seu braço por meus ombros, percebendo o quão quente sua pele estava.
. – Olha, Leo – vi-o tentar protestar – Sei que não quer nada disso, mas você está mal e eu só estou tentando ajudar – ouvi-o resmungar – Ora, cale-se, tá? Você pode não acreditar, mas eu me preocupo com você.
Silêncio. E assim continuou até que ele indicou um prédio grande, elegante e parecido com um pilar de ônix no meio da ala comercial da cidade, por isso levei-o com cuidado até a porta e o vi digitar um código de segurança no porteiro eletrônico, abrindo o portão de ferro gradeado e puxando uma chave do bolso. Achei que ele iria em direção ao elevador, mas ao contrário disso, foi em direção a uma caixa de correio junto com muitas outras, abriu-a e retirou outra chave de lá, aí sim fomos em direção ao elevador, uma caixa de aço por fora e um escritório de pinho por dentro, Leo colocou a chave na parte alta do painel e girou, fazendo o elevador começar a subir. Eu me impressionei, sempre morara em casas e nunca havia entrado em prédio com aquelas características.
Quando a porta do elevador abriu, me surpreendi ainda mais: Aquilo era a cobertura, um apartamento duplex que ocupava o andar inteiro na cobertura da área mais nobre da cidade, não sabe o que os pais daquele garoto faziam, mas certamente movimentavam muito, muito dinheiro.
Leo fez menção de entrar e eu o acompanhei, mas ele me parou no pequeno degrau antes do hall e apontou para o chão.
. – Tire as sandálias porque está pisando em terra santa.
Ri baixinho e escorei-o na parede enquanto tirava o tênis e o colocava de lado, vi-o fazer o mesmo. Levantei-me e Gelo apoiou-se de novo, me indicando um quarto no segundo andar, subi a escadaria com dificuldade tendo que arrastá-lo comigo e abri a porta indicada seguido de um espanto. O quarto era grande e espaçoso, com a parede atrás da cama substituída por um plano envidraçado que permitia-nos ver quase toda a cidade em sua extensão, e pela posição do sol, também era possível presenciar de lá a aurora mais bela da região. Despertei de meu transe com um puxão leve no ombro e lembrei-me o motivo de estar lá, arrastei-o até a cama de casal e o deitei lá com uma bufada.
. – Obrigado... – ouvi-o sussurrar – Obrigado, Lucas...
O garoto fechou os olhos.
Naquele momento meu coração parou de bater, fiquei olhando-o ali deitado como se estivesse morto. Senti um buraco abrir-se sobre meus pés, e um peso incrível sobre minhas costas.
. – Leo? – chamei com a voz falhando.
Ele abriu um olho.
. – Desculpe, a enfermeira me medicou contra a febre – respondeu com um meio sorriso e voz baixa – Ela falou que eu ficaria sonolento mesmo.
Suspirei aliviado e me virei para a porta, para sair.
. – Não... - o ouvi dizer – Não me deixe sozinho, por favor.
Olhei para a cama e vi outra vez o garoto que me fizera falta, o garoto doce e gentil que conversara comigo à piscina.
. – Certo – sentei na beirada da cama e Leo colocou sua cabeça sobre meu colo, o cabelo já estava crescendo de novo, estacada naquela fase indefinida e bagunçada. Fiz cafuné assim como na primeira vez em que conversamos, mas dessa vez, sem risco de cair na água.
Ele ajeitou a cabeça.
. – Canta para mim? – perguntou na forma mais doce que já ouvira alguém perguntar, era impossível recusar.
Procurei por alguma música fácil na cabeça e meio envergonhado cantei baixo na minha estranha voz aguda:
Nants ingonyama bagithi baba.
Leo me olhou nos olhos e perguntou com diversão.
. – Sério, Rei leão?
Não respondi. E ele respondeu-me:
Sithi uhhmm ingonyama.
A voz grave dele combinou de alguma forma com a minha, formando um dueto Barítono-Tenor. Respondi.
Nants ingonyama bagithi baba.
Sithi uhhmm ingonyama. Foi a resposta.
Siyo Nqoba.
Gelo entrou em um estado diferente, totalmente concentrado no que falava, até começar a entoar de forma repetitiva, como em um canto tribal:
Ingonyama, Ingonyama nengw' enamabaal
Ingonyama, Ingonyama nengw' enamabaal
Ingonyama, Ingonyama nengw' enamabaal
Ingonyama, Ingonyama nengw' enamabaal
Com aquele canto quase místico, completei a minha parte.
From the Day, we arrive on this planet
And blinking, step into the Sun
There’s more to see, than can ever be seen
More to do than can ever be done
Continuei cantando a música de abertura de O Rei Leão enquanto acariciava os cabelos do garoto, nunca acreditei muito na existência de um paraíso, mas naquele momento, eu estava certo de que havia chegado em uma coisa bem próxima de um.
Dizem que nada é tão ruim que não possa piorar, e naquele dia descobri que o inverso também era real. Pois no meio da música, no exato refrão, Leo levantou-se do meu colo e me olhou nos olhos, por um momento pensei em continuar cantando, mas aquilo seria muito difícil com os lábios de Gelo colados aos meus. E nos beijamos.
Va bene, Signori, lamento pelo atraso na publicação do conto, mas fui apresentado à Adventure Time, um desenho muito conhecido da Cartoon Network e me embrenhei em uma maratona de 72 horas dele... Depois tive que pegar conteúdos da faculdade, que ficaram atrasados por conta da maratona, e acabei sem tempo de fazer nada T-T
Lamento por não responder os comentários hoje, mas deixo um bônus ^^, vocês provavelmente terão dúvidas na hora que virem, mas qualquer coisa entrem em contato em Kratus_7@hotmail.com, meu e-mail de contato provisório.
Gratzie.