Parte 17 - Caiode agosto de 2010, Salvador.
-
Hoje nem parecia que era domingo. O sol simplesmente invadiu meu pequeno quarto azul como um intruso. E uma luz laranja que batia no assoalho de madeira refletia na parede ao meu lado e no teto. Aconchegante.
Incrivelmente tinha acordado cedo, e um vento fresco com um leve cheiro das flores que minha vó plantava, dançou dentro do quarto, gelando e refrescando tudo. Enrosquei-me ainda mais em meu cobertor e escorei minhas costas na parede gélida e gemi. Como sempre, tudo estava uma bagunça. Meu guarda-roupa velho e branco estava com a porta aberta, o que não melhorava em nada a aparência do meu quarto.
Vi meu teclado jogado no chão com algumas partituras em cima dele. A luz fazia uma reta horizontal perfeita no meio, destacando as teclas brancas e pretas. Levantei meio cambaleante e tateei dentro do meu guarda-roupa para ver se encontrava algum short. Tropecei em algumas coisas no chão até que cheguei ao banheiro, e me apoiei na pia.
Acordei por completo quando a água gelada tocou meu rosto...
Meu nome é Hugo Dantas, tenho 14 anos e meio, e estou completamente apaixonado por meu amigo, Caio. Aos quatorze já me apaixonando? Estava certo isso? Muito precoce. Escondi-me de vergonha, e nem me atrevi a olhar por entre os dedos a figura do espelho. Apaixonado por um homem. Sentei e me escorei na porta. Por que ele tinha que ter o mais bonito dos sorrisos? Por que ele tinha que ser tão perfeito?
O cheiro de café estava forte na cozinha pequena da minha vó. Sentei a mesa, e esperei que ela colocasse meu café, como sempre fazia. Anabeth, esse era o nome dela. Olhos já escurecidos, rugas visíveis, seus óculos, seus cabelos com algumas mechas brancas, tudo isso dava um toque de sabedoria a ela. Tenho certeza que minha mãe ficara igualzinha quando for mais velha.
Pouco café, e mais leite. Como eu gosto. Um pão com manteiga um pouco derretida, e às vezes, até com direito a um pedaço de queijo. Como eu a amo.
Ah, querido domingo... você seria melhor com o Caio. Não que eu esteja reclamando, meu dia estava perfeito, mas sentia falta do Caio, e hoje era o único dia da semana que ele não vinha aqui. Queria pegar minha bicicleta e ir voando para casa dele agora. Quando egoísmo... ele trabalhava e estudava a semana inteira e eu não dava uma folga para ele.
-
Segunda-feira.
O purgatório tinha começado, e a barulheira do enorme colégio em que estudava, estava me irritando de uma maneira um pouco mais especial hoje do que o normal. Graças a Deus encontrei Mariana no labirinto do primeiro andar. Seus cabelos castanhos escuro estavam vermelhos ao sol.
— Que pressa é essa? – perguntei feliz, e já esquecendo da minha irritação.
— Você não escutou o sinal? Eu estou ficando maluca com essa mudança de horário na segunda. – reclamou.
O horário tinha mudado. E eu nem tinha me lembrado disso. Ótimo.
— Droga! Esqueci completamente disso! – abri minha mochila e procurei o horário, que estava todo amassado no fundo. — Achei... – sacudi o papel no ar.
Ela sorriu da minha felicidade repentina e depois saiu correndo. Estávamos na mesma série, só que não na mesma sala.
— Te vejo no intervalo, lindo! – gritou virando o corredorEra incrível como minha vó arrumava meu quarto nas segundas. Nem parecia que era meu.
— Sua professora de piano ligou, e disse para você ir mais cedo, porque ela vai ter de viajar hoje. – disse minha vó lavando a louça do almoço.
Corri para o banheiro e tomei um banho rápido, peguei minha pasta, dei um breve beijo na minha vó seguido de um “eu te amo”, depois a peguei minha bicicleta preta, perfeita e completa graças ao meu mecânico favorito, Caio.
Meu destino era a igreja mais famosa do bairro. Celina, minha professora de piano, dava aula lá. Apesar de não frequentar a igreja, às vezes sempre me pegava passeando pela fachada branca da igreja, vendo se tinha alguém, para que pudesse tocar piano.
Já fazia dois anos que fazia piano, e era o melhor aluno da turma, até porque, muitos outros que chegaram antes de mim, simplesmente desistiram. Eu ficava muito irritado quando não conseguia tocar alguma parte da música e até chorava por causa disso, mas nunca desisti. Os resultados compensam mais do que se imagina. Piano é um instrumento que mexe comigo. Mexe com minha alma e meus sentimentos. Lembro como se fosse hoje quando consegui tocar Beethoven sem errar uma nota. Eu nunca me senti tão completo... tão pleno.
Celina me esperava como sempre, lendo um livro no comprido banco de madeira da primeira fileira. Hoje, a aula tinha sido bem prática, e os sons das escalas de dó a si ecoavam pelo santuário. E quando terminamos de revisar a música que tocaria no recital, ela me liberou.
— Olha Hugo, pode continuar tocando, eu já estou atrasada e Júlia já deve estar me esperando. – ela disse.
Júlia era a filha mais velha dela. Ela pegou a bolsa e acenou enquanto saia. Suspirei. Quando eu estava sozinho, eu me soltava mais. Lembro do desastre que foi meu primeiro recital. Eu estava tão nervoso, minhas mãos estavam frias e tremendo. Eu errei um monte de vezes até que não aguentei, parei, virei para o público e disse: “Desculpe, vou começar de novo”, e errei novamente para melhorar. Toquei a outra música sem erros muitos graves, porém, mesmo assim, chorei no resto das apresentações. Eu tinha falhado. Um ano inteiro treinando para tocar para as pessoas, e eu acabei jogando tudo isso por água abaixo. Estava inconsolável. Morto por dentro. Até Celina amenizar minha situação.
— Você toca para você Hugo, não para as pessoas. Eu sei que você está triste, mas a música é algo que eu sei que você tem no coração. E se você tem música, não tem tristeza. – limpou minhas lágrimas delicadamente com os polegares.
Fiquei duas semanas sem chegar perto do meu teclado, que era meu único meio de treinar quando estava fora da igreja.
Silêncio. Apenas eu e o piano. Coloquei minhas mãos já um pouco cansadas nas teclas, e toquei Noturno op.9 Nº2 – Chopin. Era maravilhoso como o som se ampliava pelo santuário harmônico. Era tão bom quando a mulher que limpava a igreja me aplaudia, eu tocava ainda mais só para ela.
Só que hoje eu não tinha só tocado para ela. Quando terminei de tocar, escutei as palmas, mas quando viro, não era a mulher da limpeza, e sim Caio. Meu coração começou a bater mais rápido apenas por ver aquele corpo junto com um sorriso.
— O que... – eu ia perguntar o que ele estava fazendo aqui, só que sua aproximação me calou.
— Você nunca me disse que tocava tão bem. – disse ele sentando na cadeira que Celina senta ao meu lado. Ele ainda estava com aquele maldito sorriso.
O cheiro do perfume dele começou a me dopar. Os cabelos negros desarrumados e com um corte moderno, estavam um pouco úmidos por causa do suor. Os olhos, ah meu Deus, que olhos. Um olhar castanho claro, penetrante e quase intimidador. As mangas do seu uniforme branco estavam apertadas nos braços dele, e sua pele branca um pouco vermelha por causa do sol. Depois que eu voltei para a realidade - a qual ele não me beija, respondo:
— Eu não toco. – dei de ombros.
Ele suspendeu as sobrancelhas.
— Não? Tem certeza?
— Você tem que ver minha professora toca...
— Toca alguma coisa para mim. – ele me interrompeu chegando mais perto do piano. — Vai mano. – era assim que ele me chamava. Arg, que droga. Ele infelizmente sempre conseguia o que queria.
Depois que eu toquei Mozart cinco vezes para ele, fomos para casa. Meus dedos estavam dormentes.
Avisei a minha vó que ia para casa dele e apostamos corrida até sua casa. Eu simplesmente adorava a casa dele. Era bem simples e humilde, e mesmo assim, eu preferia ficar ali mil vezes. Como sempre, ele ganhou a corrida. Uma vez ele perdeu, mas tenho uma leve impressão que ele que deixou.
Ele abriu o portão, e deixamos as bicicletas no hall. Cumprimentei a mãe dele, dona Telma, com um beijo e um abraço. E como sempre, me ofereceu mil coisas para comer. Aceitei seu maravilhoso suco de manga.
Ele correu para o quarto e depois foi para o banheiro. Tomava meu suco sentado na cama de solteiro dele. Depois que eu tomei o suco, deitei. Olhei para as telhas e umas brechas luminosas que tinham entre elas. O quarto dele era bem mais bagunçado do que o meu. Em cima da cômoda dele era um desastre. Skate jogado no canto, roupa e sapatos no chão, a mochila e a bandeira do Flamengo penduradas atrás da porta.
Quando ele chegou apenas com a toalha branca amarrada na cintura, tentei não observá-lo muito. Se isso fosse possível, pelo menos. A água ainda escorria pelo seu peito volumoso e deslizava por seu abdômen rígido. Engoli seco. Ele escolheu uma cueca aleatoriamente na gaveta da cômoda, e depois uma bermuda. A partir daí, não vi mais nada, ele apenas apareceu com sua bermuda.
Perdi de goleada no Playstation, e o melhor de tudo isso eram as comemorações dele. Tinha vezes que ele pulava em mim, me abraçava, me xingava de perdedor, me batia e eu batia nele.
Tudo isso era extremamente bom. Só que era bom demais para mim.
-
Terça-feira.
Caio chegou feliz (mais do que o normal) na casa da minha vó, e me arrastou para a praia. Deixamos nossas roupas no quiosque do seu Zé, e corremos para a água. Depois ele me pagou uma água de coco, e sentamos na areia.
— Mano, a Luiza me beijou ontem. – disse ele colocando o canudo na boca em seguida. Eu engasguei.
Luiza... Luiza... ele já tinha me falado dela antes. “Muito gata” como ele mesmo disse. Ignorei tudo que ele disse sobre ela. E agora ele me vem contando isso. Ela era bonita só para ele. Arg! Ela era linda mesmo. Ia fingir entusiasmo, mas ele me conhecia demais.
— Você gostou? – me arrependi de ter perguntado no mesmo momento.
— Muito. – respondeu com um sorriso enorme.
Acordei por completo (de novo) quando escutei isso. Eu estava em um sonho constante? Um sonho em que ele me amava? Doeu. Ele ainda alfinetou meu coração com os detalhes e com as possíveis propostas de namoro. Afastar-me dele ia ser a melhor opção agora. Chorei escondido no banheiro. Não queria explicar para minha vó que amava um homem. E desejei que o amor que sentia por ele fosse todas as lágrimas que derramei hoje.
-
Quarta-feira.
-
Quinta-feira.
-
Sexta-feira.
Todas as minhas esperanças de que um dia pudesse tê-lo, foram por água abaixo. E simplesmente não tinha mais rumo. Não sabia o que fazer. Estava ignorando ele, e tinha que dar explicações— Caio já chegou? – perguntei para dona Telma sentada na cadeira de madeira no hall, ainda em cima da bicicleta e apoiado com a mão no portão.
— Já meu filho, ele ta lá no quarto. Por que você sumiu meu amor? – ela abriu o portão.
— Eu estava meio adoentado esses dias... – menti.
Entrei na casinha que conhecia mais do que a minha, e corri na direção do seu quarto. A porta estava meio aberta, e apenas empurrei um pouco para que pudesse ver suas costas nuas e seu cabelo bagunçado. Algumas das brechas das telhas faziam pontinhos luminosos nas suas costas e nas suas pernas. Alisei sua toalha que estava na cabeceira da cama, úmida. Passei meus dedos trêmulos por seu cabelo cheiroso e molhado e sentei ao seu lado no chão. A ousadia tinha me tomado conta. Os meus dedos agora deslizavam pelas linhas das suas costas. Ele suspirou e virou a cabeça. Retirei rapidamente a mão dele com o susto.
Seu braço tinha algumas marcas vermelhas. Com certeza tinha se machucado no trabalho. Segunda eu tinha insistido que ele me deixasse ajudar, mas ele apenas disse: “Seus dedos são delicados demais para isso, só servem para tocar piano para mim” e colocou a mão enorme dele sobre a minha.
Então ele abre os olhos. Mas não lentamente. Abriu como se estivesse acordado, apenas fingindo. Então veio a duvida: ele estava acordado esse tempo todo?
— Ah Mano... – ele disse virando e se espreguiçando. — Melhorou?
Da minha doença de mentirinha que eu inventei apenas para não ter de olhar para você esses dias? Ah sim, melhorei.
— Sim. – forcei um sorriso.
Ele sentou, e me observou por um momento.
— Você não parecia doente. – disse com uma pontada de desconfiança. Suspirei. Não aguentava mentir para ele. — Estava com saudades, vem aqui seu idiota. – ele me agarrou e me jogou na cama me abraçando e depois bagunçando meu cabelo.
O cheiro de sabonete do corpo dele estava me deixando louco. Queria morder o ombro dele inteiro. Que saudade eu sentiria dele.
— Mariana estava preocupada com você...
Ontem eu tinha recebido um presente bomba. O emprego da minha mãe se estabilizou, e eu não precisaria mais morar com minha vó. Ia morar no outro lado da cidade. Quase uma hora de carro daqui. E ainda não sabia se isso era bom ou ruim. Comecei a lacrimejar. Sua feição mudou para preocupada.
— O que foi Mano? – perguntou com a voz carregada de carinho.
— Eu... – solucei. — Eu vou me mudar Caio...
Depois de explicar a situação, ele ficou revoltado. Disse que ia me visitar sempre, que ia dar um jeito de me ver, e tudo. Pelo menos ele tinha a Luiza agora.
Tudo bem, eu me conforto sozinho.
-
Sábado.
Minha mãe chegou com o carro do meu pai, e pegou todas as minhas coisas importantes. Chorei com minha vó, e prometi que sempre iria visitá-la. Caio cumpriu sua promessa de me visitar, e sempre ele ia junto com Mariana e Luiza, só para variar. E quando eu ia à casa da minha vó, sempre passava na casa dele.
-
Um ano se passou, e o segundo ano do ensino médio estava completo. Eu estava quase morrendo psicologicamente. E cheguei ao ápice quando recebo a noticia de que vamos viajar para o outro lado do país. Já não bastava me tirar os amigos? Minha diversão? O garoto por qual eu era apaixonado? Não. Não para meus pais. Fiz um escândalo em casa, disse coisas horríveis para meu pai e para minha mãe, falei que ia voltar para casa da minha vó e ninguém ia me tirar de lá, por que ela sim me amava.
Depois que me conformei, Caio e Mariana vieram me desejar boa sorte. Foi a primeira vez que vi o Caio chorando. E nesse ponto, eu já não tinha mais forças para aguentar choro de ninguém. Nem mesmo o do Caio. Eu simplesmente me desliguei por um tempo. Eu não tinha mais forças para nada. Eu era um nada.
Fechei a porta do carro, deixei no banco, morto, e cantarolei bem baixinho, enquanto lentamente me afastava da minha cidade.
“We've got obsessions
I want to wipe out all the sad ideas
That come to me when I am holding you”
(...)
We've got obsessions
I want to erase every nasty thought
That bugs me every day of every week
We've got obsessions
You never told me what it was that made you strong
And what it was that made you weak...
Ah, ah, ah... Ah, ah, ah...”I'm soooooooooooooo sorry, demorei muito? É sério gente, terceiro ano não é coisa de Deus, eu não tenho tempo nem de respirar. Podem me xingar aqui embaixo. Continuo amando vocês :*