Seis da manhã era sempre meu horário habitual de acordar, mas por incrível que pareça eu estava de férias! Sim, depois de dois anos seguidos sem elas. Mas agora não sabia ao certo o que fazer, eu não estava na cidade grande, não tinha cinema, nem Mc Donald's, nem amigos para farrar. Minha mãe, como sempre, fez seu drama para eu passar o mês inteiro em sua casa, casa cheia de lembranças da minha infância que já se passou há muito tempo atrás. Hoje com 25 anos, eu tinha uma visão muito diferente da vida, claro! Na primeira oportunidade fui fazer faculdade na capital, me formei e nunca mais olhei para trás. Vinha poucas vezes para aqui, meus pais reclamavam muito e sempre que me visitavam "puxavam" a minha orelha, mas eu sabia o que queria da vida, alcançar coisas maiores.
Nunca namorei, não por falta de beleza, sou um moreno de um metro e oitenta, não sou musculoso, sou normal, mas um pão como as meninas falam. Nem por falta de conteúdo, sempre me sobressaio quando eu quero, sei ser discreto também, o velho jeitinho para saber entrar e sair de situações. Mas o real motivo foi por uma coisa inacabada em meu coração, uma velha história que ficou aqui, nessa cidade de quase cinco mil habitantes, em uma serra linda. Um lugar inesquecível, paradisíaco aos olhos dos turistas, mas aos meus olhos, um lugar de dor.
E as seis da manhã eu me acordo, levanto, escovo os dentes, dou um cheiro em minha mãe, tomo meu café da manhã e assim sem nada para fazer, levo minha cachorra, Mel, para passear. Eu a ganhei quando tinha dezoito anos, antes de ir para capital, mas preferi deixá-la aos cuidados da minha família, não por falta de tempo, mas pelo significado que ela tem. E naquela caminhada, me pego com a lembrança do último dia que o vi...
Sete anos atrás
Ele estava lindo, seus olhos verdes-esmeraldas, seus cachos pretos, sua pele branca, tudo nele exalava algo bom em mim, não queria admitir que o amava, não queria sucumbir aquele desejo de tê-lo novamente, ele ia ser pai, ele iria construir uma vida e eu não estava em seus planos, eu teria que me conformar, seguir em frente, passar por isso tudo com a melhor dignidade possível.
Mas reparo uma tristeza em seu olhar e me pergunto se eu estou me iludindo tanto assim a ponto de achar que ele também está sofrendo. Em suas mãos, ele segurava um labrador, tão pequeno e tão quieto que parecia um bichinho de pelúcia.
- Não sei o que você faz aqui, Jeff!- eu estava muito incrédulo com a situação.
- Eu tinha que te ver, Lula.- sim, meu apelido era/é lula mesmo.
- Meu ônibus sai em dez minutos, você sabe que eu nunca mais quero voltar para essa cidade, nem quero te ver mais. - uma lágrima saia do meu rosto.
- Eu sei, não quero te prender aqui. Não por mim. - ele falava isso aparando a lágrima que escorregava pelo meu rosto.
- Toma, comprei para você, ela se chama Mel, por causa da cor dos seus olhos. - e com essas palavras ele me entregou a cadela, olhou nos meus olhos e partiu, fiquei apenas com o seu cheiro no ar, com as lembranças de todos os anos guardados e um eu te amo, que não saiu.
Hoje
Andar por essas ruas estreitas, ver pessoas apressadas andando pra lá e para cá, olhar para única praça da cidade, tudo me fazia lembrar dele, amigos em comum que nunca mais falei, a sorveteria da Dona Luiza que nunca mais visitei. Parei lá, não tinha mudado muita coisa, aquela velha senhora, aquele velho lindo sorriso.
- Olá Dona Luiza, lembra de mim? - falei segurando mais a coleira de Mel, ela não pode ver comida que corre para cima de quem tiver comendo, e muita gente tem medo já que ela é grande.
- Bom dia para você também, Seu Luis! - ela sempre com o seu bom humor.
- Bom dia, pode me ver um sorvete de morango? Por favor!- abri um sorriso cheio de vergonha.
- Com calda de caramelo, eu sei, sou velha, mas ainda não estou desmemoriada - assim ela falou e foi busca meu sorvete, esperei dois minutos e ela trazia também um sorvete menor de chocolate com calda de morango, logo lembrei que era o sorvete preferido de Jefferson. e isso logo me incomodou.
- Aqui o seu, e aqui o de Mel, não é Mel? - ela pegou uma cadeira, sentou e começou a dar o sorvete para Mel, que lambia e abanava muito a calda. Ela alisava seus pelos e a cachorra não ligava para a situação, como se fosse corriqueira.
- Não sabia que ela tomava sorvete.
- Sempre quando dá, o Jefferson vem aqui com ela e sempre pede dois sorvetes, o de morango com caramelo para ele e o de chocolate com morango para ela. - ela piscou.
Dei o dinheiro a ela, que pegou e saiu para atender outro cliente, fui pensando no que ela tinha me falado, ele tinha mudado o gosto do sorvete por mim, eu sei que pareceu bobagem, mas algo em meu peito queimou, como se uma fagulha escapasse de um fogareiro preso em meu coração só para lembrar o que eu ainda sentia. Eu sabia que eu teria que arrumar uma desculpa para voltar para casa o quanto antes, por que no final do mês eu já estaria louco. Isso parecia uma doença que não saia de mim, eu tinha que superar, eu tinha que viver novamente.
E com esses devaneios deixei Mel me levar, eu não sabia mais onde estava não tinha mais casas, só uma trilha que nunca tinha visto, mas parecia que ela sabia o caminho, ela não estranhava nada, e estava abanando a calda com mais fervor. Mais cinco minutos andando serra a cima e lá estava, uma casa muito pequena no alto, ela parecia linda por fora, mesmo eu estando a cem metros dela, ela não parecia velha, tinha sido construída recentemente, tinha a certeza disso. Tinha chaminé linda. E uma entrada também, uma cerca muito bem feita, quem construiu aquele local pensou em tudo nos mínimos detalhes.
Nesse momento, Mel me puxou e eu não conseguindo mais segurá-la, afrouxei um pouco a mão, oportunidade perfeita para ela se desvencilhar de mim e sair correndo com coleira e tudo.
- Vem cá, LOUCA!- mas já era tarde demais, ela pulou a cerca da casa, e entrou com tudo pela porta que estava aberta, eu já estava na cerca quando vi tudo, foi muita sorte ela não ter se enganchado com a coleira.
Não tive alternativa, a não ser pular a cerca também, o jardim era lindo, com uns gnomos na frente, ele era bem cuidado e tinha um caminho que dava para a entrada, feito de pedras grandes de granito. Tentei não correr muito para não assustar mais quem morava lá dentro, já estava na porta quando ouço uma voz.
- Ei, Mel o que está fazendo aqui? - Meu coração foi a boca, eu conhecia aquela voz, eu não estava acreditando no que acontecia naquele momento, porque essa maldita cachorra foi parar logo aqui? Mas eu tinha que ver. É quando eu apareço na porta e olho para ele que estava na cozinha sentado à mesa, descalço, de calça jeans, sem camisa, seu peitoral cheio de pelos bem aparados, seu abdômen definido, mas não musculoso, seus cachos, tudo estava ali. Ele estava olhando para baixo, com um copo de café em uma das mãos e com a outra alisando Mel que estava com a cabeça entre suas pernas.
Então, ele ouve o rangido da porta e olha pra mim.