Aqui é o autor. Agradeço, claro, pelos comentários e pelos votos. Especialmente aos comentários que falam de originalidade e "melhor conto do ano", a esses, um muuuuuuuuuuito obrigado. Incentiva bastante.
Percebi um pessoal que odeia física. É normal, levando em conta que é uma matéria difícil e pode parecer inútil para alguns. Mas não se pode negar que ela é interessante, afinal, é a ciência de tudo que ocorre a nossa volta!
Quanto à frequência dos capítulos, tentarei postar uma vez por dia, mas não é certeza. No entanto, tentarei ao máximo não deixar de postar por mais de três dias. Gostaria de postar mais vezes, mas a vida não permite. Rs.
Bom, é isso. Boa leitura!
***
CRISTAS E VALES
A vida tem, naturalmente, seus pontos altos e pontos baixos, sua amplitude, a velocidade com que ela corre. Como uma onda, a vida pode entrar em ressonância com outra, pode interferir ou ser interferida. As interações podem ser destrutivas ou construtivas.
Se minha vida fosse uma onda, eu estaria na crista (o ponto mais alto). Duas semanas se passaram após o início das aulas. Descobri, nesse meio tempo, que eu não era o único novo professor. A escola contratara um novo docente de Biologia para os terceiros anos. Seu nome era Henrique, era bastante jovem também, com seus 23 anos. O encontro de nossas ondas, no entanto, não foi dos melhores. Interferência destrutiva, eu diria. Júlio o cumprimentara e dissera que talvez ele quisesse conhecer o outro novato da equipe: Eu. Henrique olhara para mim e dissera com um olhar cínico:
_"Ele" é um professor?
Olhei para ele de canto de olho enquanto bebericava meu chá com dois quilos de açúcar. Henrique parecia um playboy, com roupas de marca, acessórios de ouro e corpo bem cuidado, além de ser alto. O típico pegador. Havia pensado em cumprimentá-lo e dar as boas vindas, mas percebi que seria meio difícil.
_Pois é, ele é. Com dezoito anos, primeiro ano no mercado de trabalho e dando aula no cursinho de um dos melhores colégios da capital. Interessante, não? - Ana Cecília disse olhando para Henrique com um sorriso forçado e cínico - Você ficou com o cursinho também?
Henrique olhou para ela com desdém. "Acho que isso é um não" eu pensei e continuei mastigando um pedaço de bolo olhando para ele, com a cara de quem não tinha mais cara nenhuma pra fazer. Nunca gostei de criar intrigas em volta de mim, mas isso não impedia que pessoas se sentissem incomodadas comigo. Ele se virou e foi para o local mais distante possível.
_Gentil ele, não? - eu disse olhando para meu copo de chá.
_Puro recalque. - disse Ana.
Eu conseguira a simpatia da maioria de meus colegas, mas havia aqueles que simplesmente não queriam contato. Havia um grupo de professores que pareciam ser machistas e provavelmente viam-me como uma criança deslocada ou como uma bichinha. Eu sempre os via olhando para mim e rindo de alguma possível piada. Aquilo acontecia com uma frequência muito grande, devido a minha altura e minha aparência jovial demais (que as garotas caracterizavam como "fofinho"). Foi com esse grupo que Henrique passou a se enturmar.
Mas isso foi um acontecimento isolado. Eu não esperava ter amizade com todos eles, e aqueles acontecimentos só compravaram o que era óbvio.
Os alunos passaram a gostar de mim. Os terceiros anos sentiam-se maravilhados ao entender alguma coisa que nos anos anteriores não haviam conseguido. Aquilo me deixava orgulhoso de mim mesmo, pois mostrava que eu não seria apenas mais um professor qualquer. Alguns alunos da Pro e do cursinho foram até a sala dos professores para tirar dúvidas elogiar minha forma de ensinar. Segundo eles, eu tinha a capacidade de "compreender a verdadeira dificuldade e confusão do aluno e desfazer o nó de forma clara". Não preciso dizer que me senti mais do que lisonjeado.
Apolo continuava um mistério. Eu queria pedir desculpas pelo que fiz mas não conseguia achá-lo fora de sala e ele passou a sumir das minhas aulas antes que eu entrasse. Aquilo era possível porque minha aula na Pro era logo depois do recreio. Suas faltas já ocorriam a duas semanas e eu tinha que fazer algo. Não era pessoal, e sim profissional.
***
Entrei no terceiro ano D. Era a última aula da manhã de segunda.
_Bom dia, pessoal! - eu disse.
_Ficou gatinho de jaleco, professor! - um garoto do fundão falou em voz alta.
Todos riram. Dei uma risada também.
_Obrigado, Carlos. - eu disse dando um sorriso reprovador.
De fato, passei a usar jaleco por duas razões simples: eu achava muito bonito e legal, e ele impedia que eu me sujasse de giz, o que sempre acontecia. Tinha mangas longas e levemente ajustadas, era longo, chegando aos meus joelhos e eu o usava aberto. Eu até me sentia mais confiante com aquela vestimenta.
_Bom, já que não temos mais elogios, vamos falar de Calorimetria. Ei, Amanda, vamos prestar atenção na minha matéria, tudo bem? - eu disse olhando para a garota que sempre sentava na frente.
Amanda (minha habilidade para memorização de nomes era esplêndida) estudava uma matéria que parecia ser fisiologia humana. Olhando melhor, pude ver que não era só ela, mas várias outras pessoas.
_Isso é para a prova de hoje a tarde? - perguntei.
_É... e o professor não explicou direito várias coisas, e disse que seria difícil! - Amanda disse quase desesperada, ela era meio paranoica com notas.
_Ah... - eu disse.
_Se ele tivesse explicado a matéria direito, pelo menos... - disse um aluno no meio de todos.
_Ah, gente, fisiologia é fácil. Não se preocupem.
_Faz um resumo aí pra gente então, prof. - disse Carla, outra aluna.
_Se quiserem... - eu disse de forma indiferente.
Muitas aclamações foram feitas. Peguei um giz.
_Qual parte da fisiologia? - perguntei.
_Digestivo! - disseram algumas vozes em unissono.
_Bem... vocês devem saber que a digestão começa na boca...
Eu realmente tinha todo o conteúdo na cabeça. Quando aprendo uma coisa, raramente a esqueço. Eu tinha os horários e o cronograma sob controle, perder uma aula não seria problema. Aquilo poderia fazer com que os alunos gostassem mais de mim. Bom... eu deveria ter me preocupado com outra coisa naquele momento.
***
O sinal bateu.
_Bom, espero que vocês se deem bem na prova. - eu disse, despendindo-me.
_Foi ótimo, professor! - disse Amanda.
_Obrigado.
Saí da sala, senti uma leve palmada em minhas costas.
_Valeu, prof! Cê é um gênio. - disse Carlos, um carinha popular que sempre gostava de uma brincadeira.
_Nem foi tudo isso... - eu disse com um sorriso modesto.
_Pelo menos nessa prova e na sua eu não vou abaixo de seis! Falou, professor! - disse ele saindo disparado pelo portão do colégio.
Sorri. Eu me tornara o professor que eu queria ser, era ótima a sensação de se sentir útil. Fui até a sala dos professores para pegar a chave do carro no meu armário. No caminho, cruzei com Augusto, chamativo como sempre.
_Eai, Kevin. Vai almoçar onde? - ele perguntou.
_Em algum lugar aqui perto. - eu respondi.
_Ah, você não quer ir jun...
_Ow, Augusto! Bora na churrascaria com a gente! - chamou Eduardo, que estava junto com o infame Henrique e os outros de sempre.
Augusto olhou para eles e depois para mim.
_Vai com eles. Já me chamaram para almoçar hoje. - eu disse sorrindo.
_Ah... então ok. Té mais, criança. - disse Augusto se virando.
_Já pedi para não me chamar assim. - eu o reprimi.
Augusto só deu uma risada e foi embora.
***
A verdade é que eu iria almoçar sozinho. Não que eu me importasse muito. Vivi sozinho durante minha estadia em São Paulo. Eu já tinha phD em solidão. Dramático, não?
Entrei em um restaurante que achei próximo ao colégio. O ambiente parecia legal, confortável, Apolo...
Apolo?!
Sim, meus olhos estavam certos. Apolo estava sentado em uma das mesas com um homem bem mais velho. O garoto percebeu minha presença e olhou direto para mim, tão surpreso quanto eu. O homem que estava com ele também me viu.
_Kevin. - disse o homem se levantando - Estávamos falando sobre você.
Como é que ele me conhecia? Seria o pai de Apolo?
_Meu nome é Aquiles, creio que você não tenha me visto até hoje, estava em uma viagem.
Quase caí para trás. Poderia ser uma enorme coincidência, mas havia um Aquiles que era um dos diretores do Ômega junto com Janos.
_Aquiles, o diretor? - eu perguntei, percebendo tarde demais o quanto a pergunta tinha sido idiota.
_Eu mesmo. Quer se sentar conosco? É uma conversa rápida, já deixarei você livre para almoçar.
Não achei que deveria negar. Apolo continuava em silêncio. Chamá-lo de garoto era errôneo. Ele tinha a constituição de um verdadeiro homem. Era muito mais bonito de perto, também. Pelo jeito deixara uma barba crescer nos últimos dias, o que o deixava mais sexy. Sentei-me na mesa com ele e Aquiles, que começou a falar:
_Bom, eu sou o pai do Apolo. Você deve conhecê-lo da Pro, ele se senta na primeira linha de carteiras.
Olhei para Apolo, ele me olhava de forma indiferente.
_Ou talvez não se lembre, porque por alguma razão ele tem faltado suas aulas. - Aquiles disse com um tom quase agressivo, e aquilo foi uma paulada para me acordar - Então me diga, garoto, o que aconteceu entre vocês dois?
Agora era eu quem estava sendo chamado de garoto...
Nada mais justo.
Aquiles era o demônio do Ômega, o diretor das trevas, o Temido. Janos era mais leve, gentil e cauteloso. Ondas que pareciam prestes a se interferirem destrutivamente, mas o resultado que se via era a junção de duas personalidades que aumentava em muitas vezes a eficiência do colégio.
Eu ia começar a dizer alguma coisa quando Apolo disse:
_Eu não queria ter aula com ele. - sua voz era grave, uma frequência que fazia com que fosse ouvido em qualquer lugar, uma voz que o diferenciava.
_E por que? - seu pai perguntou, agora olhando para ele.
Apolo parecia sintetizar algo para falar enquanto olhava em meus olhos. De repente sua cara era de desprezo.
_Não gostei da ideia de um adolescente me dando aula. - Apolo disse por fim.
Aquilo foi como um soco na cara. Mesmo sabendo que aquela não era a verdadeira razão, eu não conseguia distinguir se aquilo que ele acabara de falar era verdade ou invenção. Ou ele era um ótimo ator, ou ele nutria desprezo por mim. Eu não o culparia.
Aquiles o olhou longamente com um olhar que mais parecia um "scanner da alma". Até eu fiquei inquieto, mas Apolo parecia estar acostumado.
_Tudo bem, então. O Sr. Adolescente aqui é o aluno que se formou com um dos melhores históricos da USP. Está mais do que qualificado para te ensinar e te fazer passar para medicina. Você vai voltar a assistir as aulas. - Aquiles se virou para mim - Posso pedir dois favores?
Fiquei surpreso com o pedido repentino (e educado). Havia outra resposta possível?
_Claro.
_Amanhã, durante a tarde, explique para ele o conteúdo que ele perdeu. Eu pago o valor que você estipular por fora.
_Não é necessário, Sr. Aquiles.
_Você é quem sabe. O outro favor é...
Aquiles deu uma pausa e olhou para Apolo por um momento, voltando a olhar para mim logo depois.
_Faça-o passar.
Ele estava mesmo jogando aquele fardo para mim? A minha parte era só a física, e uma prova de vestibular é bem mais do que isso. Olhei para Apolo, que continuava sustentando um olhar indiferente.
_Farei o que eu puder. - eu disse, por fim.
Eu não sabia mais onde eu estava. Acontecimentos de naturezas diferentes se mesclavam e mais ainda viriam participar da mistura.
Mas de algo eu estava convicto: eu não estava mais no ponto alto. É bom estar na crista da onda, mas uma onda não é uma onda sem seus vales, seus pontos baixos.
No entanto, considerar a vida como sendo algo definido seria um erro. Nunca estamos só num vale ou só numa crista. Os dois não se intercalam perfeitamente na realidade, o cotidiano passa com velocidades variáveis. A vida é algo mais disforme, mais caótico, mais bárbaro...
E mesmo assim, a vida continua sendo a coisa mais bela e perfeita que temos.
-Continua-