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“Nossas vidas são definidas por momentos. Principalmente aqueles que nos pegam de surpresa”.
É incrível como o mundo é enormemente pequeno, apesar dos caminhos trilhados diferentes o destino não muda. Os meios não justificam o fim, a ordem dos fatores não altera o produto. Eu pensava em como aquilo havia acontecido e não achava resposta cientificamente provada, nem explicações. A verdade é que Deus escreve certo por linhas tortas (mais um ditado clichê \õ).
Aquela novidade me fez repensar, eu não havia o reconhecido porque ele estava mais forte e bonito, não parecia mais o mesmo garoto rejeitado... Rejeitado também por mim. Eu iria tentar reaproximação, mas eu não sabia se pedia desculpa, eu não me lembrava de ter feito algo para ele. Além de o tratar mal, rejeitar, ser um péssimo amigo. É, eu o fiz mal.
Eu saí da empresa e fui direto para a academia, a minha terapia. Lá eu conseguia pensar e me sentia mais leve. Durante toda a semana ele não foi trabalhar. Ele só foi trabalhar na outra segunda-feira, ele estava sentado na sua mesa digitando freneticamente, parecia muito focado no que estava fazendo. Eu tentaria falar com ele.
- Bom dia... – disse ao entrar na sala, Diego levantou a caneca em minha direção, mas Guilherme nem se quer moveu outros músculos que não fossem os das mãos. Ilusão minha pensar que ele não falaria nada.
- Está atrasado... – disse sem ao menos olhar para mim.
- É... Meu carro está com alguns problemas, tive que pegar ônibus e demorou a passar...
- Pega até o ônibus, esse é o grande Daros...
- Vou pegar mais... Qualquer coisa – disse o Diego saindo da sala fazendo uma careta engraçada para mim.
- Guilherme me desculpe por não te reconhecer, irmão. Você está tão diferente – eu disse ficando em pé ao seu lado e ele me olhava sentado ainda.
- Como que é? – disse se levantando – Irmão? Tu me chamou de irmão? Vá se fuder, Daros! Não me reconhecer é o de menos, se eu pudesse não te reconheceria! Você fez da minha vida um inferno! Veio para terminar o serviço seu imbecil?
Ele ficava apontando e batendo o dedo no meu peito, ele explodiu e por um momento eu pensei que ele tentaria me bater, mas ele pegou sua jaqueta em cima da sua mesa, foi em direção à porta e saiu. Eu pensei em deixar para lá e não tentar aproximação nenhuma, mas ele havia sido meu único amigo e eu precisava entender o quanto foi a minha monstruosidade, ele não me odiaria assim se fosse coisa leve.
Corri até o estacionamento e escutei um carro ligar, avistei onde que estava saindo e parei na frente do seu carro, ele meteu a cabeça para fora da janela e começou a me xingar de idiota, dizendo que era para eu sair da frente.
- Me explica Guilherme! Eu não me lembro de nada! – disse encostando e tirando as mãos rapidamente do capô que estava quente.
- Cala a boca seu imbecil, sai da minha frente ou eu passo por cima, tu não é o super-homem não! Seu idiota!
- Só quero entender! Estou sendo sincero, Guilherme!
Ele começou a acelerar o carro sem sair do lugar e eu continuei no mesmo local, não sei o que aconteceu, mas parece que o carro morreu e deu aquela estocada violenta para frente, era um carro grande e me atingiu, eu caí e senti a minha pele e minha cabeça arder, até então eu estava bem, mas vi o Guilherme sair do carro e correr em minha direção e eu fingi estar apagado.
- Acorda Henrique, caramba! Que merda que tu não saiu da frente da merda do carro, que merda!
Ele colocou sua jaqueta na minha cabeça e chamou um cara que estava saindo para ajuda-lo a me colocar no banco do carona, eu continuava fingindo estar desacordado, mas meu braço ainda doía, estava queimado e minha cabeça latejava. Ele fungava e lagrimava ao meu lado, parecia desesperado, buzinava para os outros carros e pisava no acelerador.
- Vai me explicar agora? – eu falei com a voz fraca, estava doendo muito a minha cabeça.
- Caralho Henrique! Tu não está fingindo não é? Porque se estiver eu vou te jogar do carro agora! – disse furioso me olhando.
- Xxxii, minha cabeça está doendo muito... E eu não estou mentindo...
Ele continuou o caminho até o hospital calado e deu entrada como meu primo, eu não disse nada e nem estava em condições, estava sentado esperando atendimento e sentindo que ia desmaiar e sentia o sangue escorrendo na minha cabeça.
- Eles vão te ajudar por agora, eu já vou. Falou! – ele estava virando, mas eu segurei a sua mão ele me olhou parecendo que iria chorar.
- Fica, por favor... Eu não estou... fingindo... Eu juro, Gui – foi eu falar e senti meu corpo desfalecer. Nem sei se consegui falar tudo isso.
Acordei na cama do hospital e estava recebendo sangue e soro. O Guilherme estava em uma poltrona ao meu lado mexendo no celular e bocejando com os olhos vermelhos. Eu estava com uma faixa na cabeça e no antebraço.
- Ei quatro... – eu disse sorrindo, como se estivéssemos feito as pazes. Até eu perceber que ainda não.
- É Guilherme... – disse sério – Ainda bem que acordou, não aguentava mais esperar. Tenho coisas para fazer. Tu bateu a cabeça com muita força no chão e perdeu muito sangue, por isso o desmaio, mas já está recebendo mais. E a queimadura no seu braço pode deixar que eu vou pagar as pomadas e levo pra ti amanhã – disse já se levantando.
- Guilherme, por favor, cara! – ele parou e me olhou – Eu bloqueei o ano que você foi para a escola, eu estou falando a verdade quando digo que não lembro... Minha psicóloga disse que eu sofri muito e bloquear foi a forma que meu corpo e minha mente encontraram para eu me proteger...
- Então aproveita isso, porque eu não consegui esquecer – disse com os olhos marejados.
- Uma tarde é o que eu te peço. Uma explicação e eu te deixo em paz, se quiser procuro até outra empresa, mas eu preciso saber!
Ele pareceu pensativo e depois de muitas bufadas disse que ia para empresa explicar o que tinha ocorrido e que voltaria para me buscar e contar tudo que havia acontecido. Eu sorri para ele, mas ele só saiu. Depois de uma tarde toda tediosa recebendo sangue e com algumas indicações eu fui liberado, o Guilherme estava lá fora com outra roupa e com um cara ao seu lado, o cara era muito pálido, bonito, loiro, parecia ser muito novo. Fomos para uma lanchonete que mais parecia um restaurante e nos sentamos para conversar.
- Quando eu fui para a sua escola eu pensei que seria o melhor ano da minha, nós finalmente estudaríamos juntos, eu e o meu melhor amigo. Mas não foi o que aconteceu... Tu andava com todos os idiotas da escola, eu tentei falar contigo, mas tu dizia não me conhecer, era a deixa para todos os idiotas me perseguirem e me infernizarem. Aquele ano... – ele bufou para segurar o choro – eu provei as piores coisas do mundo... Um dia eu fechei todas as provas de exatas e fui recompensado na sala por isso... Vocês me encurralaram na saída, eles falaram que tu poderia me bater, eu senti que tu não queria, mas não foi isso que tu fez... Tu me bateu até eu apagar, eu sentia o ódio nos teus socos e eu idiota ainda tentei entender porque tu estava fazendo aquilo comigo. Afinal, nós ainda brincávamos juntos na sua casa. E nunca conversávamos sobre tu não falar comigo na escola. Até aquele dia... Tu... - ele lagrimava.
- Guilherme, eu não... – ele me interrompeu.
- Tu disse que queria saber de tudo então cala a boca e escuta! – eu fiz que sim e ele continuou – Tu também foi quem me levou para a casa dos meus pais, nunca assumiu a culpa e cada dia era uma tortura apanhar na escola, tu continuou a me tratar mal e a fazer o que os outros queriam, não brincávamos mais juntos. Uma vez eu dedurei vocês e todos me bateram, mais uma vez eu apaguei. Meus pais queriam saber por que estava acontecendo aquilo comigo e tu contou para eles que eu era gay... O único segredo que eu pedi pra ti guardar e tu não fez isso! Por isso eu fui obrigado a ir para o interior morar com o meu tio e com dois primos - ele já falava tremendo de raiva e chorando -, eles me tratavam como uma mulher, eu tive que fazer de tudo... TUDO! É exatamente isso que tu está pensando, fui a mulher da casa por dois anos! Tu está entendendo? – ele dizia chorando muito e havia aumentado o tom de voz, mas o rapaz que estava com ele pegou no seu ombro e ele se acalmou e continuou – até que finalmente eu consegui fugir de lá, antes de completar 16 anos. Foi quando eu encontrei os pais do Thiago, eles me ajudaram a voltar para a escola e a superar tudo isso que tu me provocou!
- Guilherme eu não me recordava de nada disso... Me perdoa, por favor! – disse já chorando.
Eu era um monstro, não sabia como havia feito tudo isso. Eu podia imaginar por tudo que ele havia passado, o seu sofrimento, os seus traumas. Enquanto ele falava tudo que havia acontecido eu comecei a me lembrar dos fatos, eu me lembrava de bater nele e de sentir um ódio enorme por ele. Lembrei-me de quando ele me disse que gostava de um menino e que achava que era gay. Lembro também de sentir nojo. Eu era um monstro! Aquele Daros inútil ainda vivia em mim e tudo que eu supostamente tinha superado voltou para a minha mente.
- Eu não quero mais ver a tua cara Daros! Não quero as tuas desculpas! Eu quero que tu morra! Quer dizer, não quero não. Eu quero que tu sofra o quanto eu sofri! Seu filho da puta! – ele tentou ir pra cima de mim, mas o rapaz que eu achava que era o Thiago o segurou. Todos nos olhavam.
Thiago o levou para o carro e foi pagar a conta, eu paguei junto com ele e ele me disse que era melhor eu sair da empresa, porque se eu não saísse o Guilherme sairia, que eu só continuaria desgraçando a vida dele e que ele não queria ter que tomar outras medidas. Ele estava me ameaçando, mas eu nem escutava direito o que ele falava, mesmo porque ele era um adolescente magricela.
Só Deus sabia a dor que eu estava sentindo por ter feito aquilo com o Guilherme, o meu melhor amigo... Grande amigo eu era.
Naquela noite eu não voltei para casa, fui direto para a academia, eu corri mais do que o normal, cerca de 20 quilômetros sem pausa, estava detonado quando cheguei em casa, só consegui chorar pelo resto da noite. Eu finalmente me lembrei de tudo, aquelas cenas doíam em mim, não lembrava quando o Guilherme falou que gostava de um menino, nem que menino era, eu ainda não conseguia me lembrar desse momento, nem da minha resposta. Mas eu havia tomado uma decisão.
Já no outro dia eu iria me demitir da empresa e passei na sala para me despedir do Diego, mas só o Guilherme estava lá, quando me viu pareceu triste, mas continuou calado digitando.
- Guilherme eu sei que você nem quer mais me ver na sua frente e eu vou respeitar porque agora eu entendo e sei o quanto você sofreu... Por minha culpa. Sei que não tem como, mas eu quero que você me perdoe... Fui o pior amigo do mundo e desde quando você foi embora eu tento ser uma pessoa melhor... Estou torcendo por ti e se isso faz você se sentir melhor, eu irei carregar toda a culpa de ter sido um idiota e estou sofrendo também... É... Adeus, Gui quatro...
Eu saí da sala sentindo um aperto enorme, ainda teria que falar com o chefe. Fiquei na sala de espera até poder ser atendido, o que não demorou muito. Quando me chamaram eu entrei e sentei na cadeira que tinha na frente da sua, era difícil falar que queria me demitir porque era o emprego dos meus sonhos eu gaguejava um pouco para falar.
- É-é... Eu quero... – a porta abrindo me interrompeu.
- Tu veio agradecer pela oportunidade e nem me esperou – disse o Guilherme rindo para mim – E ae meu chefe lindo? Esse cara aqui estava louco para te beijar para agradecer pelo emprego...
- Quem gosta disso aqui é o Guilherme, novato. Eu não! Hahahaha Mas ele não pode... Você vem com um bom rendimento nessas poucas semanas, está à cima da minha expectativa então eu o beijaria, mas também sou casado.
Nós rimos, mas eu estava sem entender nada. Não entendia o "sou casado TAMBÉM", nem a atitude do Guilherme. Se bem que ele sempre teve um enorme coração... Mas não éramos mais os mesmos, talvez ele quisesse armar contra mim, mas ele estava sendo sincero. Talvez quisesse me torturar, jogar na minha cara. Ou não. Que confusão!
Nós saímos da sala e seguimos para a nossa sala calados. O Diego estava lá daquela vez e não conversamos nada, eu ficava olhando para ele que continuava centrado, Diego também, então eu os acompanhei. No fim do expediente o Diego foi o primeiro a sair, eu ainda não tinha terminado uma configuração importante então continuei, o Guilherme me secava agora, eu olhei para ele, nossos olhares se encontraram por um instante de silêncio, depois de alguns segundos ele interrompeu o silêncio, “estou te esperando no carro”, falou e saiu. Talvez ele tentasse me atropelar para valer dessa vez.
Terminei o que estava faltando e fui à procura do seu carro, ele estava encostado mexendo no celular. Ele me viu e fez um sinal de cabeça para eu entrar no carro, nós entramos e ele começou a dirigir. Paramos em uma praça deserta, mas não saímos do carro.
- Daros, eu... – eu o interrompi.
- Henrique, por favor...
- Tudo bem, Henrique... Eu não te perdoei e nem penso na possibilidade, mas eu não vou te tirar do teu emprego. Eu dei uma olhada no teu currículo, confesso que fiquei impressionado, não esperava mesmo... Vi que é de um cara como tu que a empresa precisa. Só não quero tu tentando fazer amizade comigo. Vai ser assim, parceiros de projetos e nada mais.
- Tudo bem, obrigado por de alguma forma me deixar continuar com aquele emprego, eu preciso dele para viver. E eu vou cumprir as tuas exigências...
Ele me levou até em casa, era a mesma desde quando nós éramos crianças, eu vi que ele se emocionou quando chegamos. Imagino o quanto foi bom e horrível para ele estar ali.
- Você quer... Entrar? Isso não é forçar amizade não é?
- Eu tô com sede, então se tiver água aí eu aceitoOlá, fofos. Mais uma vez aqui.
Confesso que o feedback não foi o que eu esperava, mas adorei cada comentário. Eu sei que não é assim que as coisas acontecem. E realmente, por algum motivo, contos com o título "hetero" fazem mais sucesso, mesmo sendo uma coisa sem lógica.
Aí está a continuação, eu agradeço cada um que leu, e como eu já comecei, eu irei terminar.
Obrigado a todos que acompanham e comentam, desculpem-me os erros. Até a próxima.
Abraços a todos!