Paulatinamente,aquele avanço de uma amizade íntima entre nós ia me tomando, me enchendo duma noção talvez precoce de uma felicidade nunca antes sentida. Sempre que estávamos juntos e sozinhos, nos abraçávamos por longo tempo, falando e rindo baixinho uma variedade de assuntos sem importância, deitados de frente um ao outro no galpão, entre a sacari esbatida pelo sol quente atravessado nas frestas do madeiramento.As vezes, para me irritar, ele me chamava de "São João", dizendo que eu me parecia com o santo e uma vez, falando isso à madrinha, tirou dela uma exasperante concordância.
Era uma tardezinha de novembro e cochilavámos no galpão, ao sussurro dos pombos silvestres no telheiro. Eu tinha por ,obrigação cuidar dos cavalos e bezerros depois que voltava da escola, enquanto o mano e o pai ficavam o dia todo na roça. Fernando me acompanhava sempre nessa tarefa, as vezes me ajudando, e quando eu terminava, subíamos no andar superior do galpão para jogar baralho ou conversar, deitados, ele com a perna pesando sobre a minha. O cheiro do pão assado, ondeando no ar esbraseante nos despertou e fomos tomar o café que a madrinha preparava para logo mais, quando os outros voltassem da plantação.
Ela gostava de conversar com Fernando, achava-o um moleque "muito educadinho e bonito", enquanto ele sorria, lisonjeado. O meu padrinho, que trabalhou muitos anos ali com os outros dois fora dispensado há um ano e agora era empregado na chacara da mãe de Fernando, apesar de continuarem morando em casa. Acabados, os dois andavam pelos sessenta anos e o único filho que tinham, havia décadas fora para a capital e não os ajudava,mal lhes dava notícias:era um desgosto que os limava aos pouquinhos.
Num gracejo, Fernando me chamou de "S.João" perto da madrinha, rindo e me enfezando. Ela achou "exata" a comparação, cometendo em seguida a imprudência de dizer que o mano sempre me alcunhava por "Pierrô", por causa da minha pinta saliente na face, abaixo três dedos do olho esquerdo, redonda como uma gota de lágrima negra. Disso Fernando não sabia pois, envergonhado, eu lhe escondera;olhou-me com surpresa e divertimento, rindo depois ao passo que bebia o café, me observando por cima da caneca.
_Odeio esse apelido,fique sabendo_ adverti, furioso.
_Mas por que?É engraçadinho.Seu Pierrô de São João!_ ele ria, mais alto.
Saí da mesa aos atropelos, quase derrubando a cadeira. A madrinha, lavando o coador na bacia, me disse para não me importar, que se me agastasse com o apelido seria pior. Não lhe dei ouvidos, saí pisando duro cozinha afora, indo para a parte de cima. Nesse corredor que levava aos quartos, Fernado me alcançou ainda com um sorriso contido no rosto.
_Deixe de ser tonto, Reinaldo_ disse, me encostando à parede, falando baixo em meu ouvido, daquela maneira que me transia de uma expectativa que ainda não sabia entender _ Não falo o apelido mais, viu?
Com o polegar acariciou-me a pinta, sorrindo ternamente. Chegou mais perto e com a mão me segurando a cintura beijou a marquinha naquela nova mania de beijar-me o rosto, as mãos, os cabelos e os ombros sempre que a ocasião favorecia. Demorou mais dessa vez, os lábios mornos dele na minha face que começava a arder ;num instante prendeu-me mais fortente, olhou-me com intensidade e encostou então a boca na minha, pressionando e sugando alguns segundos feito a ventosa vagamente salgada.Uma agonia estranhamente tépida me tomou assim que ele se descolou de mim,lambendo os lábios e tentando dissimular um sorriso travesso.
_O café está esfriando_ falou me puxando pela mão, enquanto eu o seguia com o coração saltando na garganta, o que me dava uma leve vertigem.
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M.Q : valeu pela dica e observaçao!Obrigado!
Caros anônimos que leem e não comentam (fui um de voces por anos) espero que estejam gostando!Acho que meu estilo afugenta leitores mas,não consigo escrever de outra forma.Obrigado assim mesmo!