Eu sabia de uma coisa: aquele cara era muito estranho. Depois daquele dia na universidade eu nunca mais o vi. Tipo, ele sumiu. Mas ele disse que estudava ali há dois anos então deveria estar no quarto bloco que nem eu. Qual o curso? Qual o turno? Em que salas? Eu não sabia de nada. Ok, então vamos aos dados apurados naquela semana.
Primeiro: pessoas bonitas, brancas feito porcelana, que despertam interesse na primeira vez que você olha normalmente pertencem aos cursos de saúde ou Direito.
Segundo: branco daquele jeito não deve ser do Piauí e nem deve morar aqui há muito tempo senão já teria pego uma corzinha.
Terceiro: ele se chama Bernardo e desapareceu.
Mais que droga. Ele sumiu. Nenhuma aparição sequer. Eu deixei pra lá então.
- Que preocupação é essa? Gamou assim? - A Julia notou de tanto eu falar.
- Não... esquece. Só achei estranho não ter visto aquele cara aqui em dois anos.
- Vamos logo que eu tô com dor de cabeça e o trânsito não deve tá fácil.
Nós estávamos no estacionamento às 18:00. Uma CB-300R adentrou a universidade com o roncado forte do motor. É o meu sonho de consumo. Era branca do jeito que eu sempre quis. Cara, que moto linda. Era pilotada por um cara com jaqueta preta. Que poderia ser eu. Ele estacionou rápido, deveria ter jeito com moto. Claro que tinha, quem pilota uma máquina daquela sendo amador? Mal girou a chave desligando o motor e já desceu do banco num movimento perfeito da perna no ar. Ele tirou o capacete e... Não, não podia ser.
Era o Bernardo!
Agora é a hora em que um anjinho e um diabinho surgem nos seus ombros. Eu poderia segui-lo pra saber qual curso ele faz e de quebra em que sala ele fica. Mas pra quê? Ele deve ser hetero e bonito daquele jeito deve pegar todas. Mas eu mataria minha curiosidade de saber o curso e ainda o observaria. Mas pra quê? Digo, qual a utilidade disso? Eu acho que gosto de Voyerismo, definitivamente acho.
- Lucas, por favor... entra no carro. – soou do meu lado.
Eu esqueci completamente da Júlia. Acabei agindo por instinto.
- Júlia! Olha... Pode ir sem mim hoje. Eu pego o ônibus.
- Não complica Lucas. VAMOS! - ele bravou do carro tirando o óculos e apertando o cenho.
- Vai. Não se preocupe. Eu ainda vou na biblioteca pegar uns livros de qualquer jeito mesmo...
Ele não discutiu. Saiu chateada no carro. Era agora.
Olhei pro estacionamento das motos e o vi já tirando a jaqueta e ajustando o capacete no pulso enquanto tirava debaixo da camiseta o caderno. Ele não era da saúde. Não é o perfil das pessoas que estudam cursos de saúde.Digo, o pessoal da saúde passa o dia todo na universidade nos laboratórios, não chegam a noite assim. Direito talvez. Publicidade? Comunicação social? Minha curiosidade se aguçou.
O segui pela entrada do bloco de salas. Ele caminhava rápido, muito rápido. Pra quê isso? Usava jeans, uma camiseta branca e tênis. Levava no braço o capacete e agora a jaqueta dobrada. Na mão tinha o caderno. Sacou o celular e teclou algo rápido com uma mão só, colocando no bolso em seguida. Eu mantinha uma boa distância dele. Não queria ser pêgo. Até porque, que explicação eu ia dar? Ele dobrou no corredor de humanas. Humanas? Direito na certa. Várias pessoas desconhecidas e mais velhas que eu povoavam os corredores. Até que ele entrou numa sala. Ele foi todo o percurso sem cumprimentar ninguém. Fui até perto da porta e olhei rapidamente. Eu estava me sentindo um detetive. Ele sentou no fundo da sala na fila do meio enquanto esperava pelo professor. Colocou a jaqueta pendurada no suporte lateral para mochilas da carteira e jogou o caderno de qualquer forma na mesa. Ajeitou o cabelo com uma mão enquanto pegava novamente o celular. Ficou alí mexendo no celular.
Dei meia volta e fui me retirando.
- Lucas, ainda aqui? - uma voz familiar chamou.
- Professor Carlos, tudo bom? - era meu professor de Recursos Humanos.
- Está pagando disciplina ou o que?
- Não. .. só... saindo. - esbocei um sorriso.
- Estou atrasado. Até amanhã. - ele deu batidas no meu ombro e foi passando.
- Até. - eu disse me virando na direção que ele passou. Ele entrou na sala do cara estranho. Digo, do Bernardo! Ele fazia Administração! Mesmo bloco que eu. Que legal!
Eu fui saindo da universidade e comecei a pensar se esse esforço todo valia a pena. Ainda eram 19:00 e eu teria que é esperar o ônibus das 20:00. Que droga! Fui pra biblioteca e fiquei pesquisando umas revistas. Fiquei lendo umas matérias interessantes e o tempo passou. 20:00 algumas pessoas entraram na biblioteca. Droga! Agora só pegaria o ônibus das 22:00. Já era. Liguei pra minha tia avisando do atraso. Fiquei no fundo da biblioteca entre as estantes falando baixinho caminhando em círculos.
Em um dos giros eu vi o cara! Em uma prateleira olhando os livros. Ele pegou um, que eu sabia que era de um ator chamado Chiaveanato, muito estudado por quem faz administração estudado foi pra uma mesa. Eu peguei um livro qualquer ali e fui pra uma outra mesa do outro lado da sala de frente pra ele. Só haviam mais duas mesas entre nós. Uma com uma garota e outra com duas garotas.
Fiquei na minha observando enquanto ele folheava o livro e fazia anotações no caderno. Ele fazia caretas engraçadas enquanto copiava. Devia ser algo chato. Era engraçado. Ele ficou brincando com a caneta entre os dedos. Agora com calma eu podia analisar os traços melhor. Que ele era feito de porcelanato vocês já sabem. O rosto quadrado e bem marcado. Feições sérias e a barba bem feita, só que a pele branca fazia os pelos pretos ficarem bem marcados então não adiantava que o rosto dele nunca iria ficar liso. O cabelo era preto e feito um penteado pra trás numa perfeição que só vendo. Os braços definidos. Agora vendo de perto ele era mais alto que eu alguma coisinha... Ele se vestia bem, eu gostei. Os jeans são a melhor parte. Um charme de coçar a cabeça com a caneta... tudo isso era legal.
Nesse instante ele respirou fundo e passou um olhar rápido pela sala. Me encontrou. Eu engoli um seco. Estava secando o cara na maior cara dura e ele notou. Me olhou e franziu a testa mostrando que havia notado o olhar e que me reconheceu. Eu respirei fundo e recolhi as revistas. O que eu estava pensando? Mostrar que tô as fim de um cara hetero assim, na biblioteca, sem vergonha na cara? Meu Deus! Nunca fiz isso.
Ele fechou as cara e o livro. Ajeitou o material e saiu. Agora eu tinha estragado tudo. Que vergonha... Devolvi minhas revistas e saí pro ponto de ônibus. Vergonha me definia. Fui desviando das pessoas nos corredores e cheguei à saída. Fui caminhando até o ponto e escutei uma voz atrás de mim.
- Ei!
Eu virei sem dar tanta importância. Me sentia mal.
- Você é o cara do restaurante! – Bernardo vinha em minha direção correndo e com o olhar sério - Olha, sobre aquele dia eu só queria dizer pra você que eu não ia entrar sem pagar. Foi um mal entendido sacou? - ele disse apontando o dedo pra mim. Minhas pernas sumiram e senti o suor começar a brotar em minha nuca.
- Ah... tudo bem. A gente imaginou mesmo.
- Tô avisando pra você nem seus amigos não sairem falando coisa errada por aí. – o dedo não era apontado mais pra mim, mas pro além.
- Não precisa se preocupar cara... Nós não... sabe... nem de longe pensamos isso de você.
- Acho bom. – um olhar de quem dava aviso.
Foi saindo e abrindo o fecho do capacete. O cara nem perguntou meu nome. Eu fiquei estático vendo ele vestir a jaqueta, por o capacete e sair na moto. Eu me dirigi à parada e fui embora.
Fiquei puto. Já não basta a vergonha de ser descoberto na hora de olhar o cara e ele ainda me aparece apontando o dedo e dando recomendação? Não gostei disso não. Todo meu tesão foi embora. O cara era um mala, isso sim.
Eu acordei no dia seguinte sentindo raiva só de pensar naquele cara. E eu fiquei calado! Poderia ter dito poucas e boas mas não. Fiquei calado!
- Idiota! Idiota, idiota, idiota!!! – eu batia na minha testa na cama.
Acordei de mal humor e ao chegar na universidade haviam garotos fardados de um time de futebol formado por uma turma chamando mais caras pra jogar no time deles ou formar um outro time. Ia ocorrer um campeonato entre turmas e tudo mais. A UFPI exigia algum projeto que fizesse os alunos praticarem esporte. Haviam vários esportes e modalidades descritos no panfleto que um garoto gordinho da pedagogia me entregou.
- Não. Não vou me inscrever. Eu não jogo bola...
- Mas não precisa jogar bola Lucas. Tem tanta coisa. – Rony tentava me convencer enquanto descíamos as escadas.
Ao nos reunirmos no intervalo eu contei tudo o que aconteceu com o Bernardo.
- Deve ser mais um filhinho de papai daqui... que saco. – Natan disse fazendo cara de pouco interesse. – Liga pra isso não. Deixa pra lá.
- Ele não vale a pena amigo. – Júlia disse.
- Como é que é? – Natan disse rindo. – O Lucas já tá gostando do cara?
Todos cinco na mesa me olharam.
- Não! De forma alguma!
- Todo mundo já viu amigo. – Júlia completou.
- Desencana logo, por favor! – Larissa falou me apontando a caneta.
- Não, eu só tô chateado assim porque...
- Porque você foi atrás dele aquela noite?
- Eu fui na biblioteca, eu te disse.
- Não, não foi. Foi atrás de saber dele.
Eu fiquei sem palavras.
Após várias desaprovações sobre eu estar gostando do Bernardo, voltamos pra sala. A semana se passou normalmente. Poderia ser pior. Pensem, e se eu visse o Bernardo todos os dias a tarde? Ainda bem que ele só pisa aqui a noite.
Era sexta feira e a gente conseguiu fazer o professor liberar mais cedo. Graças a Deus! Estávamos saindo pelo corredor das salas. Júlia me puxava pela mão pra irmos rápido pro carro.
- Espera! Eu preciso ir rapidinho no banheiro.
- RÁPIDO!
Eu corri pro banheiro masculino mais próximo. Entrei e corri pro primeiro box, eu não me sinto bem usando mictório. É muito gay da minha parte, eu sei. Podem falar. Enquanto a urina corria e eu arfava me aliviando escutei a porta sendo aberta. Não dei atenção até ouvir alguém correndo rápido de encontro à pia. A respiração estava alterada entrecortada por alguns gemidos de dor.
- CA-RA-LHO! – seguido pelo o que eu deduzi ser um chute na parede.
Quem é essa pessoa mal educada assim? Saí do box e encontro Bernardo, claro. Ele estava com uma camisa azul (do time de futebol da Administração), um shorte acima do joelho branco sujo, de chuteiras, meias brancas até perto do joelho e uma pequena mochila nas costas. Até aí tudo bem. A não ser pelo fato da cara dele estar toda ensanguentada enquanto ele cuspia sangue pela boca e apertava o nariz com os olhos fechados. Eu não pensei duas vezes.
- Mas o que foi isso? Deixa eu te ajudar. – me aproximei preocupado, lógico.
Ele se assustou com um pequeno salto, abriu de leve o olho esquerdo e me olhou.
- O que você tá fazendo aqui? Sai daqui cara!
- Seu nariz!
- Vai embora porra! Nem te conheço. – ele cuspiu mais sangue.
- Cara você precisa estancar o sangue!
Ele ficou de cabeça baixa apoiado na pia.
- Me deixa ver... – eu disse cauteloso me aproximando. Eu estava com medo dele explodir e me dar um soco. Pra minha surpresa quando eu cheguei do lado dele, ele levantou a cabeça de vagar meio relutante e virou na minha direção. Ficou olhando pro chão.
Eu olhei rapidamente e levei a mão ao seu rosto. Ele desviou.
- Tá doendo pra porra! – ele falou fazendo cara feia.
- Só quero ver se quebrou. – continuei e peguei de leve na parte superior do osso do nariz. Ele encolheu os ombros com medo da dor. Vi que não havia quebrado. – Não, não quebrou. – ele relaxou. – Olha, você tá todo sujo de sangue. Preciso que você cuspa o máximo possível enquanto eu pego gaze. – ele abriu um dos olhos.
- Gaze? Você é da enfermagem?
- Não, da Administração. Mas eu não faltei na aula de primeiros socorros no ensino médio. Me espera aqui e cospe tudo que vier à sua boca. Limpa o rosto também.
Ele acenou com a cabeça e se virou pra pia ligando a torneira.
Eu saí do banheiro e vi a Júlia. Ia abrindo a boca pra explicar a demora.
- Não se preocupe. Eu tô esperando. Eu vi como ele entrou... tô no estacionamento.
- Ok. – eu disse enquanto corria no corredor contrário ao nosso pra ir em uma das salas da enfermagem.
Poderia pedir pra o Bernardo ir no hospital. Poderia pedir qualquer aluno da enfermagem pra cuidar dele. Poderia não cuidar dele, afinal a uns 5 parágrafos atrás eu estava com raiva dele lembram? Poderia? Poderia sim. Mas... era bom demais pra ser verdade. Digo, não o machucado mas... ah! Vocês entenderam.
Fui até a sala de uma prima.
- Janne? Tudo bom. – disse entrando na sala antes do professor dela chegar.
- Oi Lucas, tudo sim! – ela falou com um risinho que eu não suporto e justamente por isso não fico muito tempo com ela.
- Então, você tem gazes limpas aí contigo, que você não vá precisar agora?
- Tenho sim, sempre trago. Mas pra quê você quer? Aconteceu algo?
- Não, não... não é nada grave.
Ela mexeu na bolsa e tirou um pacotinho com folhas de gaze. Eu voltei pro banheiro correndo e quando cheguei lá Bernardo já estava com o rosto limpo. Abri o pacotinho e entreguei uma folha pra ele.
- Enrola e coloca na narina que mais sangra. Fica olhando pra cima. Acumula o sangue na boca por um tempo e cospe em seguida.
Ele acenou com a cabeça e fez o que eu disse. Ainda olhando pra cima ele tateou a bancada das pias e se sentou encostando a cabeça na parede. Eu sei que o momento era crítico, mas eu não pude não notar o volume no shorte dele. Quando ele se sentou o shorte foi puxado pra trás e apertou. Que pernas lindas. Tão brancas quanto o rosto e um pouco peludas. Só que com pelos lisos e corridos.
- O que aconteceu contigo?
- Foi no jogo agora há pouco. O idiota me deu um carrinho e eu caí com a boca e nariz no chão. Ele me paga depois.
- Eu não entendo de futebol, mas esses acidentes não podem acontecer normalmente?
- Podem. Mas ele quase quebra meu nariz, isso não vai ficar assim.
- Não. Vai inchar e ficar roxo.
- Como é? – ele olhou pela lateral do olho pra mim porque a cabeça estava virada pro teto.
- Nada... Só não procura briga cara... Já passou.
- Porque não foi com você.
“Um obrigado seria bem vindo...” eu pensava enquanto olhava pra ele.
- Cospe o sangue. – Ele cuspiu e o sangramento do nariz parou. – Agora enxagua a boca. – ele obedecia. Fazia tudo ainda sentado na bancada. – Agora abre a boca, me deixa ver o estrago aí dentro.
Ele se curvou um pouco e abriu. Vários cortes do lado direito. Um em especial brotava sangue perto da gengiva que estava inchada. Eu peguei uma gaze e enrolei.
– Vou colocar na sua boca pra parar o sangramento. – ele acenou e continuou de boca aberta. A posição era desagradável porque ele estava mais alto que eu por conta de estar sentado na bancada. Segurei o queixo dele e senti o princípio da barba furar a palma da minha mão.
- “Anrraa logo” – eu falava espremendo os olhos de boca aberta.
- Desce da banc...
Ele fechou a boca. Colocou uma mão na bancada e outra no meu ombro e se impulsionou pra frente pra descer. Esbarrou em mim e colou o corpo no meu. Eu senti o abdome dele no meu, o hálito quente no meu rosto.
- Vai com cuidado. Está doendo muito... – voltou a abrir a boca como se nada tivesse acontecido.
Eu suspirei. Coloquei com cuidado a gaze.
- Morde e espera.
Ele voltou a se sentar na bancada. Eu me recuperava.
- Eu também sou da Administração. Quarto bloco. – ele disse.
- É eu sei... digo, eu também sou do quarto, só que a tarde.
- Legal. Muito obrigado por hoje. Eu ia tá cuspindo sangue pra todo lado aqui se não fosse você. – ele soltou uma risada gostosa. A primeira que eu ouvia.
- Relaxa... Não foi nada. Fiquei preocupado quando te vi daquele jeito. Apesar de me ameaçar né?
- Ah... sobre aquele dia a noite, foi mal. Pensei que você fosse mais um idiota que ia sair espalhando a história de eu querer entrar sem pagar no restaurante. Tem umas mil versões correndo por aí.
Eu neguei com a cabeça.
- Qual o seu nome?
- Lucas.
- Bernardo. Prazer. Desculpe qualquer coisa Lucas. Eu vou indo. Posso tirar isso da boca?
- Pode sim. Vai no médico depois tá?
- Tá certo. – ele disse rindo. Desceu da bancada, ajeitou o cabelo, conferiu pra ver se não tinha sangue sujo em nenhum lugar e me ofereceu a mão com um sorriso. Eu apertei. – Bora? A gente já tá há tempo demais aqui, podem estranhar, sabe como é...
- Ah... sim, sei. Vamos.
Saímos juntos do banheiro e descemos as escadas conversando. Ele bem mais aberto que de costume.
Eu só tinha um desejo: gritar o mais alto possível que consegui amansar a fera!
