A noite chegou, mas Igor continuou fora. Pedro limpou toda a cozinha, tirando o pó de todas as embalagens nos armários e lavando todas as panelas que ficavam expostas a poeira. Saiu e comprou pão fresco, queijo e leite. Arrumou a cozinha e subiu para o quarto. Ao chegar, teve curiosidade em ver o que Igor tinha comprado e guardado embaixo da cama. Foi até a sacola e a abriu. Tinha de tudo, exceto frios e alimentos perecíveis. Aquilo irritou Pedro, pois o menino conseguia se virar muito bem com tão pouco e ele não conseguia cozinhar uma salsicha. Porém sua reflexão foi quebrada, pois começaram a chamá-lo ao portão. Só ao descer e se aproximar, é conseguiu enxergar a visita naquela escuridão.
- Tati?
- Oi, Pedrinho, tudo bem?
- O que faz por aqui? – perguntou enquanto abria o portão.
- Vim te fazer uma visitinha.
A garota entrou o selou nos lábios. Pedro sorriu, mas não passou de fingimento. A cada dia que se passava, Pedro precisava de um tempo para si mesmo, afinal, acabara de descobrir que não se sentia assim tão atraído pelas mulheres como sempre imaginou. Ele precisava rever seus conceitos, pensar em seu corpo e em como viver em um mundo que estava acostumado a odiar. Mas Tatiana não conhecia esse novo mundo e nem mesmo imaginava que Pedro fazia parte dele. Ela seguiu entrando no casarão e subiu as escadas sem que ambos dissessem uma palavra.
Já se passava das vinte e duas horas quando um táxi deixou Igor na porta do casarão. Ele entrou e seguiu para a cozinha, tomou um copo de água e decidiu subir, mas ao passar a mão sem querer em cima da mesa, percebeu que ela estava limpa. Estranhou. Acendeu a luz e se surpreendeu, pois tudo estava organizado e sem nenhum vestígio de poeira ou cimento velho. “Será que ele está caindo na real de que não tem mais a mamãe para fazer as coisas pra ele?”. Igor gostou da surpresa, mesmo que não fosse sua intenção dar uma lição no rival.
O casarão estava em silêncio, Pedro deveria estar dormindo, então o garoto dava passos com muito cuidado. Mas ao entrar no quarto, chutou sem querer um copo de vidro e o quebrou. Pedro se levantou imediatamente, com o susto, mas antes que pudesse atacar o invasor, Igor acendeu a luz.
- Ah, é você? – perguntou ainda mais assustado.
- O que houve? – perguntou Tatiana enrolada no lençol.
- Oi, Tati.
Igor então se curvou até o chão e começou a colher os cacos de vidro. Pedro, que não sabia se se cobria ou se o ajudava, também se curvou.
- Deixa, Igor, eu cato.
- Não, eu quebrei.
- Mas eu que deixei o copo ai.
- Mas eu que o chutei, acordando vocês.
- Mas a culpa foi minha.
- Mas eu já estou catando e você está descalço, vai se cortar.
Igor continuou recolhendo os cacos e Pedro ficou a olhá-lo, sentindo-se culpado por ele estar tendo esse trabalho.
- Igor tem razão, Pedrinho, é melhor você voltar pra cama, senão você vai se cortar. Deixa que ele cata pra gente.
- Se bem me lembro, quem deixou esse copo ai foi você. Você quem deveria estar no chão pegando esses cacos. – berrou Pedro para Tatiana.
- Ah, desculpa, não foi minha intenção.
- Mas de boa intenção...
- Ai!
Igor se cortou com um dos cacos e não demorou para que o sangue pingasse no chão.
- Você se machucou? – perguntou Pedro.
- Nada demais.
- Como “nada demais”? Olha aí o sangue já fazendo uma poça no chão!
- Não exagere!
- Deixa eu ver...
- Não, eu vou ao quintal jogar esses vidros.
Igor então desceu as escadas naquela escuridão, enquanto Pedro e Tatiana continuaram no quarto.
- É melhor você se vestir e ir embora, Tatiana.
- Está com raiva de mim, Pedrinho?
- Não, é só que esse lance do Igor chegar assim de mansinho me assustou. Só isso!
- Tudo bem eu vou me vestir.
Pedro calçou uma sandália e procurou a cueca para descer e ajudar Igor com o corte. Ao chegar a cozinha, a viu vazia e a porta dos fundos abertas.
- Igor, onde você está? – gritou.
- Aqui no quintal!
- No quintal? Menino, cuidado, a fossa está aberta! – gritou ainda mais alto
E a fossa tinha um pouco mais de dois metros de profundidade.
Pedro não poderia imaginar que a sua irresponsabilidade pudesse ter grandes consequências, pois na verdade não estava acostumado a viver por si próprio. Vivia para si, mas nunca geriu sua vida sozinho, logo não conseguia ainda conceber o fato de que precisava assumir suas atitudes. Pedro precisava assumir!
Ele ia percebendo isso aos poucos, mas o mundo todo não poderia parar e esperar por ele. Pedro gostava de ser um irresponsável e não se sentia culpado por isso. Ou pelo menos até aqueles dias no casarão chegarem, pois foi quando sua masculinidade fora testada.
Pedro correu para o quintal e, naquela imensidão negra, tentou visualizar Igor.
- Igor, onde você está? – gritou.
- Já estou voltando.
- Mas onde?
Então um barulho “oco” soou naquele quintal e em seguida o silêncio finalizou aquele momento. Pedro, espantado com aquele som, ficou quieto, tentando captar com os ouvidos os passos de Igor. Mas estes não vinham. “Não pode ser!”. Insistiu em ficar calado, mas os segundos se passavam e Igor não dava mais sinal de vida.
- Igor? Igor, onde você está?
- PEDRO! – gritou.
Foi o bastante para que Pedro entrasse em pânico e começasse a andar em direção ao buraco. O grande problema é que ele não poderia se apressar, pois também poderia cair. Quando sentiu que estava perto, sentou-se na borda da fossa, com os pés para dentro.
- Igor, consegue se levantar?
- Pedro... eu acho que quebrei alguma coisa...
- O que?
- O ombro.
- O ombro?
- Meu braço direito está doendo... De onde surgiu esse buraco?
- Consegue ficar de pé?
Igor estava deitado sobre o braço direito, que havia sido quebrado, e não o ombro, como ele suspeitava. Seu rosto estava arranhado e estava encostado no barro. Não conseguiria se levantar, pois não poderia se apoiar em nada para ganhar impulso.
- Tatiana, traga um celular! – gritou Pedro. – Igor, calma, eu vou ligar para ambulância.
- Não, não preciso de ambulância.
- Mas você pode ter se machucado muito e eu não posso remover você daí. Pode ser perigoso.
- Pedro, se eu quebrei algo, foi o ombro ou algo assim. Minhas pernas e minha coluna estão inteiras. Eu posso me mexer, só não consigo levantar.
- Mesmo assim... Tatiana? Tatiana, traga um celular!
Tatiana foi até a porta dos fundos.
- Que gritaria! O que houve?
- Cadê o celular? – perguntou Pedro.
- Eu não trouxe...
- Mas eu não pedi pra você trazer? Anda, faça uma coisa útil e traga o celular!
A garota então subiu as escadas e procurou por um telefone. Mas antes disso, Igor, que ouviu toda a reclamação de Pedro, começou a rir, mas a terra entrava em sua boca, evitando que ele risse ainda mais.
- Você está achando engraçado?
- Coitada da Tati.
- Coitada? Ela é uma idiota! Agora me fala, você está mesmo bem?
- Estou, estou, é só o braço que dói como nunca senti na vida.
- E por que você está tão calmo?
- Pedro, o que você quer que eu faça? Que eu fique berrando, chamando as fadas para me tirarem daqui enquanto choro?
- Cadê essa menina com o celular?
Estava tão escuro, que Pedro não conseguia enxergar o fundo da fossa, tamanha era a ineficiência da luz da lua naquela noite. Já Igor conseguia ver bem as estrelas e um pouco da luz da rua, mas não poderia abrir muito os olhos, pois poderia entrar terra. Quando Tatiana chegou, Pedro a pediu que continuasse onde estava, para que também não viesse a se machucar ou até mesmo cair no buraco. Foi até a porta e trouxe o celular consigo. Voltou para a beira da fossa e iluminou o fundo com a luz do telefone. Entre as pernas de Igor havia um grande espaço e Pedro não pensou duas vezes. Deixou o celular em cima e se jogou para dentro da fossa, caindo de pé justamente nesse espaço.
- Igor, consegue levantar o braço?
- Só o esquerdo.
- E consegue se agarrar em mim com ele?
- Cadê? – Igor tateou o corpo de Pedro – Mas você está pelado!
- Não, estou de cueca.
- É a mesma coisa. Como vou me agarrar em você? Vista uma camisa, pelo menos.
- Tatiana, me traz uma camisa...
- De manga! – lembrou Igor.
- Uma camisa de manga.
Tatiana voltou para o quarto, enquanto Pedro tentava verificar a posição que Igor se encontrava.
- Continua com a mão no meu joelho. Aqui é sua cabeça?
- Sim.
- E esse é o braço que...
- Ai, é, é, é sim. Não toca!
- Ta, desculpa.
- De onde surgiu esse buraco.
- É a nova fossa.
- E por que deixaram descoberta?
- É melhor você não se mexer muito.
- Aqui está a camisa! – gritou Tatiana da porta.
- Está vendo a luz do telefone?
- Sim.
- Pode vir até ele?
- Ta bem.
Tatiana caminhou lentamente até o telefone e parou.
- E agora?
- Joga a camisa... Pronto, peguei. Agora volte!
- Querem que eu faça alguma coisa?
- Não, não precisa, só volte para o casarão.
- Pedro, Tatiana ainda está ai?
- Tati? – chamou Pedro.
- Sim.
- Espere um pouco.
- Tati, pega o meu cartão do plano de saúde, por favor.
- Onde está?
- Tem uma mala verde ao lado da minha cama, procura a minha carteira, está em um dos bolsos externos.
- Certo!
Pedro começou a vestir a camisa e voltou a se agachar. Pegou a mão de Igor de volta e a pôs em cima de seu joelho.
- Igor, eu tenho medo de te puxar e fazer alguma coisa.
- Não seja bobo, Pedro, eu já disse que só quebrei o ombro.
- E você acha isso pouco? É melhor a gente chamar uma ambulância.
- Não, Pedro, pega a minha mão e põe na sua camisa. Ai eu te puxo e me apoio em você.
Pedro então o puxou pelo pulso e o posicionou sobre o seu peito. Quando Igor se sentiu seguro, agarrou-o com os dedos e começou a se impulsionar para cima.
- Pedro, puxa o meu antebraço.
- Espera, calma!
Quando todo o quadril de Igor já estava erguido, Pedro o segurou pelo pescoço e o pôs de pé. Estavam agora um de frente para o outro, mas não conseguiam perceber o quanto.
- Você está na minha frente, certo?
- Certo.
- Vire de costas e eu vou me agarrar ao seu pescoço. Depois você escala o buraco.
- Entendi.
- Você consegue com o meu peso, não é?
- Claro que sim, Igor.
- Então vira.
Pedro girou o corpo e Igor se agarrou em seu pescoço pela gola.
- Agora você precisa ser muito forte...
- Igor, eu sou forte!
- Eu vou me pendurar no se pescoço, vou tirar meus pés do chão. Quando isso acontecer, você vai ter que encaixar o meu quadril em cima do seu.
- Como assim?
- Você vai me pôr nas suas costas. Sabe “Briga de galo”?
- Sei.
- É a mesma coisa, mas a diferença é que eu não posso mover um dos braços.
- E justo o direito.
- É, cala a boca e presta a atenção, porque eu vou me pendurar no seu pescoço.
Quando Igor impulsionou seu corpo para cima, Pedro sentiu uma forte pressão em sua garganta, sufocando-o com muita força. Era a deixa para que ele se curvasse e puxasse as coxas de Igor, uma para cada mão, e o encaixasse em seu quadril por trás. Foi questão de segundos, mas se demorasse mais um pouco, Pedro não aguentaria e deixaria Igor cair novamente no fundo da fossa. Quando o garoto já estava em suas costas, Pedro começou a executar o trabalho mais difícil, que era escalar o buraco, com o peso de Igor.
O que facilitou a subida foi a estatura de Pedro, que o permitia alcançar facilmente a borda do buraco. Feito isso, forçou todos os músculos de seus braços, costas, peito e barriga para poder chegar ao topo. Quando conseguiu tirar os pés do chão, os apoiou nas paredes do buraco e, com mais alguns segundos, metade de seu corpo já estava fora da fossa. Pedro então continuou engatinhando até que Igor pudesse ficar de pé.
- Pronto, Igor, pode descer das minhas costas.
- Pedro, eu não consigo.
- Por que?
- Porque agora eu também não sinto as minhas pernas.
- O que?
- Elas doem, mas não atendem aos meus comandos. Eu estou tentando descer, mas o pé não responde.
- Igor, não me diz uma coisa dessas nem brincando.
- E você acha que eu iria brincar com coisa séria?
- E o que eu faço?
- Eu ainda estou me segurando no seu pescoço. Tenta ficar de pé e ai eu me solto. Se eu também ficar de pé, então estou bem.
- Igor, bem que eu disse pra você que a gente tinha que chamar a ambulância.
- Mas não chamamos e agora é tarde. Vai, Pedro, fica de pé.
Ele então se afastou da fossa, para que Igor não caísse de volta, e começou a ficar de pé. No momento certo, as mãos de Pedro seguraram Igor pela cintura, quando os pés do garoto começaram a tocar no chão. Pedro ainda estava de costas para ele.
- Pode soltar, Pedro.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Igor...
- Solta, Pedro, eu já consigo ficar de pé.
Pedro foi até a cômoda e tirou de sua carteira um maço de cédulas.
- Toma, isso deve dar.
- Tem certeza, Pedrinho?
- Tenho sim. É melhor você ir. Se meu pai descobre que o Igor caiu enquanto eu estava ocupado, ele me mata.
- Ué, mas você não é a babá do Igor.
- Eu sei, mas para o meu pai eu sou.
- Não entendi.
- O Igor não é esse menino bonitinho e legal que você imagina. Ele é traiçoeiro e venenoso. Ele pôs meu pai contra mim.
- Sério?
- Sim. Então é melhor você ir, porque aqui já tem problemas suficientes para uma noite.
- Tudo bem, eu vou.
Pedro a beijou rapidamente e desceu as escadas as pressas. Tatiana foi embora sem se despedir de Igor e chamou um táxi.
- Essa é a carteira?
- Veja se dentro tem o meu cartão...
- Tem!
- Bom, então você pode me levar para um hospital? – perguntou gemendo.
- Claro que sim!
Pedro não entendeu o motivo dessa pergunta. Sentiu-se até ofendido. Afinal, a culpa de Igor estar naquele estado era dele, obviamente que o levaria. Mas não se ocupou com isso, segurou Igor pela cintura e o ajudou a caminhar até o jardim. Quando finalmente puderam ser iluminados, Pedro enxergou o estrago que tinha causado. O antebraço do menino estava deformado, fazendo uma curva. Por sorte a fratura não foi exposta, mas ainda assim não se livrava de uma hemorragia interna. Entraram na van e seguiram para o hospital mais próximo.
- O hospital do centro não atende emergências, eu acho.
- Não sei também, por via das dúvidas, vamos para a parte alta da cidade.
- Você não quer ligar para o seu pai?
- Não. Amanhã eu ligo.
- Por que?
- Porque sim, Pedro. Agora dirija um pouco mais devagar, porque eu não posso usar o cinto de segurança.
- Meu pai vai me matar quando souber.
- Te matar por quê?
- Porque vai.
- Por acaso foi você quem deixou a fossa descoberta? Não. Então pronto.
- Na verdade... Bem...
- Não acredito, Pedro! Não acredito!
- Mas foi sem que...
- Cala a boca agora. Não quero mais ouvir nada!
- Me perdoa.
- Fecha a boca, Pedro. Dirige!
Alguns segundos depois, Igor olhou para o seu braço com dificuldade, pois as lágrimas não lhe permitiam enxergar com perfeição. Mas com a cabeça baixa, ele pode perceber algo muito estranho.
- Pedro, você está de cueca?
- Hã? Ah, não acredito...
- Eu é que não acredito, Pedro, seu burro!
Voltaram para o casarão e Pedro entrou as pressas para pegar uma bermuda. Seguiram todo o trajeto de volta e chegaram ao hospital. Enquanto Igor era preparado para receber o gesso, Pedro decidiu por bem ignorar as ordens do garoto e ligou para o seu pai. Em seguida, telefonou para Silveira e o chamou, mas em nenhuma das vezes disse o motivo da quebra do braço de Igor. Breno e Silveira chegaram quase juntos, mas se encontraram na recepção. Pedro os esperava em um dos corredores e os sinalizou o quarto. Enquanto eles entravam, o rapaz continuou ali amargando uma enorme culpa em seu peito e um desejo enorme de se encher de socos.
- Pai? – exclamou Igor enquanto ainda tinha o braço imobilizado para receber o gesso.
- Eu nem acredito que você quebrou o braço!
- Mas quebrei.
- Você é um irresponsável!
- Espera, Breno, mas ele não teve culpa.
- Eu duvido muito.
- Como assim? Por que alguém provocaria a quebra do próprio braço?
- Pra não entrar para o exército, por exemplo.
- Grande, você fez isso?
- Óbvio que não. Mas não seria má ideia.
- Menino, quando você tirar o braço da tipóia, eu mesmo vou quebrá-lo de raiva!
- Calma, Breno. Não se esquente com isso. Agora me diz, Igor, como foi que isso aconteceu.
Igor olhou para o tio e para o pai e começou a sorrir estranhamente.
- Essa história é divertida, vocês vão adorar saber porquê eu quebrei o braço!
Silveira saiu do quarto de Igor com uma cara amarrada e com um sentimento de impotência irreconhecível. Por que aquele homem simplesmente odiava a maneira como Breno conduzia a educação de seu filho? Igor parecia ser um garoto amável – e era de fato – o filho perfeito. Era o filho que Silveira não tinha. Em compensação, Pedro era um erro de criação.
Enquanto seu filho estava se recuperando do susto na sala de espera, Silveira caminhou até ele, como se fosse tirar satisfações. Pedro tomou o último gole de água e temeu pelo o que viria. “Igor contou!”. Ele então se aproximou e puxou Pedro pelo braço.
- Vamos, Pedro! – disse grosseiramente.
- Mas o que houve? Igor está bem?
- Está, Pedro. Eu não quero falar sobre isso. Vamos embora.
- Mas ele volta com o pai?
Silveira então parou de puxá-lo e o olhou nos olhos.
- Eu queria ser o pai perfeito, Pedro. Mas infelizmente eu não sou.
- Mas o que você está dizendo?
- Pedro, você quer ficar? Fique. Até amanhã.
- Pai...
- Eu quero dormir, Pedro.
- O que o Igor te contou?
- Como assim?
- Ele disse como quebrou o braço?
- Disse.
- E então?
- Eu não sei, Pedro. Talvez essa ideia de pôr vocês no casarão não tenha sido das melhores.
- Mas eu não entendo...
- É um risco que vocês correm, todos os dias.
- É, a obra acontecendo enquanto a gente mora lá...
- Obra? Não, Pedro. Estou falando do ladrão.
Pedro então franziu a testa e se deu por convencido de que já não entendia o que o pai queria dizer. Decidiu então só ouvir.
- Do ladrão?
- Pedro, você está me fazendo de palhaço?
- Não, eu só não estou entendendo o que o ladrão tem a ver com isso.
- E porque o Igor quebrou o braço? Você também não sabe?
- Não... na verdade ele não me disse... – mentiu.
- Ah, então porque você não disse antes? Ele disse que estava no quintal e que viu um vulto. Achou que fosse o ladrão, então correu. Tropeçou em alguma coisa e um saco de cimento caiu em cima do braço dele.
- Ah...
- Mas como é que você não sabe disso se ele contou que foi você quem tirou o saco de cima dele?
- Bem... É que eu não sabia da história do vulto.
- Sei. Bom, eu quero ir embora agora. Você fica?
- É isso o que quero saber. Ele volta com o pai?
- É, acho que hoje ele volta pra casa. Tchau!
- Tchau...
Igor não contou. Isso era bom. Ou pelo menos deveria ser. Pedro, como se fosse possível, se sentiu ainda mais culpado pela quebra do braço, pois agora só ele e Igor saberiam, logo, Pedro não poderia ser punido pelo o seu erro. E não há nada que acentue mais a culpa se não a falta de punição. Sem saber o que fazer, resolveu esperar pelos próximos acontecimentos. Caminhou até o quarto de Igor e, ao chegar à porta, ele já estava devidamente engessado e sentado em cima da maca. Seu pai estava na frente do filho, impedindo que Pedro o visse. Mas o que Pedro viu foi muito pior.
Breno, sem piedade do estado do filho, levantou a palma da mão aberta e a lançou em cima da cabeça de Igor, provocando um grande estalo. Pedro ficou absurdamente impressionado com aquela agressão e se escondeu antes que fosse visto. Continuou próximo a porta e ouviu o discurso de Breno.
- Você sabia muito bem que iria entrar no exército esse ano, não sabia? Não me venha com essa história de que tudo isso foi sem querer, que foi acidente. Eu conheço você, Igor, eu sei que foi você quem provocou isso. Você é bem capaz. Estava tudo certo, seu alistamento já estava todo arranjado. E agora o que eu faço com você? Você já está crescendo e eu não consigo transformar você em homem e o pior de tudo é que eu e sua mãe não estamos conseguindo ter outro filho... Porque eu tenho certeza que com o próximo eu não vou errar. Mas que merda, Igor, por que você não é como o Pedro?
Os olhos de Pedro estavam arregalados e o peito pulsava por completo, não apenas o coração. O pior de tudo era que Pedro se identificava com Breno. Pedro se sentia tão agressivo quanto aquele pai. Afinal, aquilo era diferente de uma ameaça de morte? A única diferença é que Breno não tinha medo de ser quem era, já Pedro escondia de todos a sua grosseria. Há dias, Pedro encontrou um Igor que lhe sorria e que estava disposto a acompanhá-lo para qualquer lugar. E o que ele fez? O encostou na parede e o enforcou com todo o peso de seu corpo. Não, Pedro não era diferente de Breno, a diferença é que um deles dois era mais covarde que o outro. Só não se sabia quem. Pedro não era, definitivamente, diferente de Breno. Era apenas mais sensível. Só!
O rapaz então voltou para a sala de espera e tomou mais dois copos de água. Decidiu que esperaria por Igor e o levaria para o casarão. Quando eles saíram do quarto, Breno sorriu para Pedro.
- Ficou esperando a gente?
Igor estava com o rosto tingido de vermelho e brilhava de suor e lágrimas. Mas estava de cabeça baixa e pouco se pode ver de seu drama.
- É. Na verdade esperei pelo Igor, afinal, vamos voltar juntos, não é?
- Na verdade vamos voltar para casa hoje. Você não tem medo de dormir sozinho não é, Pedro? Você é homem.
- Não se trata disso, Breno...
- Claro que não. Eu te conheço, somos iguaizinhos. Não teríamos medo disso, eu só estava brincando.
- Igor, você não vai precisar de alguma coisa do casarão pra aula amanhã?
- Ele não vai pra aula amanhã. Vamos, Igor!
Breno começou a andar, mas Igor ficou parado.
- Eu vou dormir no casarão hoje.
- Mas sua mãe quer ver você.
- Diga a ela que estou bem, que eu janto com ela amanhã, mas essa noite eu durmo no casarão.
- Igor, não seja teimoso. O que eu digo para sua mãe?
- Diz o que eu acabei de dizer.
Breno ficou constrangido pela aquela discussão na frente de Pedro, então decidiu realizar o desejo do filho.
- Tudo bem. Mas amanhã você vai cedo pra casa e almoça e janta. Eu viu indo. Tchau Pedro.
- Tchau.
Igor continuou parado e de cabeça baixa. Pedro, sem saber como reagir, continuou calado. Ele olhava para o garoto e sentia uma pena profunda, ao mesmo tempo em que não conseguia parar de pensar em Silveira e nas palavras estranhas que saíram de sua boca. Como ele poderia ser um pai ruim se havia Breno no páreo por esse título? Sua pena se dissipou e pensou em como era sortudo pelo pai que tinha. E pior, sentia que não merecia esse pai, mas Igor sim.
- Vamos?
- Sim.
Caminharam até o estacionamento, entraram na van e ganharam a rua.
- Pedro, pare em uma farmácia, preciso comprar uns remédios.
- Claro. – minutos depois... – Não quer que eu desça e compre?
- Não.
Pedro ficou na janela olhando Igor agitando o papel da receita médica para os vendedores. Pensou, então, no motivo que levou Igor a mentir. Se não tivesse mentido, talvez Breno não o achasse culpado pela quebra do próprio braço. Mas não, preferiu ele manter a história falsa e receber em troca o tão familiar carinho do pai.
- Podemos ir? Comprou o que precisava?
- Sim.
- Então vamos. – minutos depois... – Meu pai me disse como você quebrou o braço. Mentiu mais uma vez?
- Eu preferi assim.
- Por que? Poderia ter dito a verdade e seu pai não ficaria tão zangado.
- O que você sabe do meu pai?
- Sei que ele não ficou muito feliz... Meu pai que contou.
- Pedro, nos conhecemos muito pouco, não é? Mas você já me viu fazer algo sem segundas intenções?
- Como assim?
- Eu não tenho mais medo do meu pai. Qualquer dia desses eu sumo, não vou mais precisar dele. Mas eu desde muito cedo sou desprendido do meu pai. Você não. Aliás, você é preso a tudo: seu pai, sua mãe, sua irmã, seu carro, suas roupas, suas namoradas... Mas principalmente seu pai.
- E onde você quer chegar com isso?
- Eu não ligo pra você, Pedro. Como já te disse mil vezes, na primeira oportunidade eu deixo o casarão e você ficará sozinho com ele. Não se preocupe...
- Não estou preocupado com nada. Só quero saber onde você quer chegar com tudo isso.
- Na próxima venda dos pisos, você vai só. E mais, você vai vendê-los custe o que custar!
Era muito justo. Afinal, Igor efetuou as duas últimas vendas e não era sua obrigação, pois nada tinha a ver com esse negócio. A distribuidora Silveira era pertencente à família de Pedro e não de Igor. Era Pedro o herdeiro (ou seria se não estivesse falindo) e não Igor. Foi a primeira ameaça de Igor que Pedro não se sentiu agredido. Era justo. Era mais que justo!
Chegaram ao lar. O casarão já se parecia mais com um lar. Igor não amava mais a sua casa e Pedro só sentia falta da sua pelo fato de poder ser um irresponsável nela sem que houvesse problemas. Mas esse sentimento já começava a se dissolver, pois já percebia que não poderia ser o mesmo Pedro por muito tempo. Até porque, já não era o Pedro que sempre pensou ser. Subiram as escadas, Igor ia na frente, quando parou um pouco e se sentou em um dos degraus.
- Tudo bem?
- Minha perna... Está doendo muito. Acho que foi a queda.
- Deixa que eu te levo.
- Não precisa.
- Vem, Igor.
- Não... Eu...
Pedro o pegou nos braços e o carregou até a cama. Sentou-o na borda e se afastou.
- Quer alguma coisa?
- Não.
- Tem certeza?
- Sim.
Igor ainda tinha o rosto marcado pelas lágrimas. E, desajeitado, tentava enxugá-las com a mão esquerda. Olhou para os seus joelhos e os viu arranhados. Seu braço também estava e o rosto tinha uma leve ferida no queixo. O cabelo tinha um pouco de barro e as unhas estavam pretas por dentro. Pensou então em tomar banho. Mas como faria? Começou a procurar com os olhos alguma sacola plástica e não a achava.
- O que você quer, Igor?
- Um saco.
- Para quê?
- Para proteger o gesso da água.
- Você vai tomar banho?
- Vou.
- Não é melhor deixar isso para amanhã?
- Eu não posso dormir assim tão sujo. Eu não conseguiria.
- Eu vou na cozinha pegar um.
- Então me traga também um banco, para eu sentar enquanto me lavo.
Pedro agora tinha a sua primeira responsabilidade como homem: cuidar de Igor. Agora ninguém precisava pedir, pois ele sentia que devia isso. Quando ele subiu as escadas, antes de entrar no quarto, ouviu o choro de Igor, que ecoava baixinho entre as paredes do casarão. Pedro sentiu um aperto em seu peito, o ar não circulava direito em seu corpo. Ficou ali um tempo ouvindo a tristeza do menino e se sentiu invadido por ela também. “Eu sou muito mais idiota do que suponho. Sou muito mais fraco também!”. O corredor que finalizava no quarto dos dois estava iluminado por um pequeno feche de luz que vinha da porta. Pedro estava no escuro e Igor no claro.
Finalmente ele voltou ao quarto e encontrou um Igor ainda mais avermelhado pelo choro e ainda mais iluminado pelo suor. Sua camisa estava um pouco suja de sangue e todas as suas feridas ardiam, seja por causa da terra, das lágrimas ou do suor. Igor parecia uma criança abandonada. Quando percebeu que não estava mais só, levantou o rosto e, sem vergonha de seu choro, seguiu em direção a Pedro. Começou a se despir com dificuldade.
Começou pela bermuda que puxava para baixo com apenas uma das mãos. Pedro ficou assistindo a cena. Quando já estava de cueca, pode-se ver melhor o que a queda tinha feito com seu corpo. Havia hematomas por todas as partes das pernas, inclusive nas coxas. Ainda com a mão esquerda, puxou a cueca e só lhe restava a camisa. Como a retiraria? Começou a fazer um esforço com o cotovelo esquerdo, forçando a borda da camisa, mas não conseguia com apenas um braço. Seria impossível para ele, ainda mais estando tão machucado. Então, em um momento de impulso, Pedro se aproximou e foi tentar ajudá-lo.
- Deixa que eu...
- NÃO ENCOSTA EM MIM!
O susto daquele grito fez com que Pedro desse dois passos para trás. As lágrimas de Igor se desprendiam com uma facilidade impressionante de seus olhos. Ele chorava de dor e de revolta.
- Não encosta em mim nunca mais.
- Mas eu só estava tentando ajudar.
- Ajudar? Você nunca me ajudou, Pedro. Nunca! Você nunca pensou no meu bem, você nem sabe o que é isso. Se você soubesse, você não faria o que fez.
- Mas foi sem querer...
- Foi sem querer que você me enforcou em Pernambuco? Foi sem querer que você apertou a minha garganta e, olhando nos meus olhos, disse que preferia a minha morte ao ter feito aquilo? Foi sem querer?
Pedro não poderia responder.
- Você sabia, Pedro, que aquela foi a minha primeira vez? Sabia? Sabia que você foi o segundo cara que eu já beijei na vida? Você sabia que eu, idiota, cogitei a ideia de te pedir em namoro depois que transamos? Como eu fui idiota, burro, burro, muito burro.
- Igor, eu...
- Você o que? O que você vai dizer? Como você justifica tudo o que você fez? Você nem me conhecia, mas já me odiava.
- Eu nem sabia que eu era... Que eu...
- Não interessa, Pedro. Sua condição, revelada ou não... Isso não justifica o monstro que você é. Não justifica o que você fez. Não justifica. Agora, por favor, eu te peço que não me toque nunca mais, porque toda vez que eu sinto que você se aproxima do meu corpo, eu acho que você vai me matar.
- Eu nunca faria isso, Igor!
- Não foi o que você me prometeu? Agora, por favor, não me toca nunca mais. É por sua culpa também que eu estou desse jeito.
No coração de Pedro, Igor estava certo e tinha todo o direito de reagir daquela forma. Ele mesmo se considerava culpado por tudo aquilo ter chegado aonde chegou. Só se lamentou que, com isso, não poderia ajudá-lo a tirar a roupa, pois todo o resto ele tentaria esquecer. E deveria esquecer, pois se não o fizesse carregaria uma culpa que pertencia de fato a ele. Igor sofria e seu sofrimento era genuíno. De um lado um pai autoritário e machista, que sempre controlou sua vida; do outro, Pedro, que poderia ter evitado tudo aquilo, mas preferiu salvar sua imagem e honra ao invés de se deixar convencer de que era homossexual. E Igor? O que restou para ele? Pedro pode ser infantil, mas sua idade não lhe permite mais tantos erros. E o que um homem de verdade faz?
Assume!