Capítulo 6: Por você.
Os fortes raios do sol fuzilavam minha pele branca, me fazendo tentar abrir os olhos, sem sucesso. Era difícil, pois, a claridade ali não ajudava muito.
- Bom dia...- Eu conhecia bem aquela voz. Era a voz mais doce e aconchegante que poderia existir.
- Bom dia, vovó...- Falei me espreguiçando ainda com os olhos fechados.
- Dormiu bem, querido?
- Sim, como não dormia a muito tempo...- Dei um leve sorriso, ainda mantendo os olhos fechados pela claridade.
- Que bom. Eu tenho uma surpresa para você...- Disse minha amada velhinha.
- O que, vovó?
- Olhe...- Ao dizer isso, a forte luz do local cessou e finalmente eu pude abrir os olhos.- Eles vieram lhe ver, querido.- Quando mirei meus olhos para o lado oposto da minha cama, onde se posicionara a parede que acomodava uma extensa estante de livros, meu coração parou no exato momento. Haviam quatro enormes lobos me encarando. Ao chão, abaixo de suas patas havia uma enorme e densa poça de sangue; seus dentes pontudos serrados, mostrando que estes não estavam satisfeitos com algo.
- Vovó...- A chamei sem tirar os olhos dos animais á minha frente.- Precisamos...
- Precisamos, o quê?- Me interrompeu antes que eu terminasse a frase.- Não gostou da surpresa?- Perguntou sem alterar o tom calmo da voz.
- Vovó, eu...- Quando me virei para ela, o rosto que ali se encontrava não era o seu... Era Daniel. Mesmo com a aparência "normal", seus dentes estavam tão pontudos quanto os dos lobos, e seus olhos em um amarelo intenso. Então, antes que eu pudesse dizer algo mais, ele se curvou sobre mim, e tudo ficou escuro.
- Aaaahhhh!!!- Ouvi meu grito ecoar por todo o local enquanto eu me levantava desesperado.
- Glean, o que aconteceu?- Aquela voz... Tive medo de olhar e tudo se repetir.- Você teve um pesadelo?- Sim, eu tive um pesadelo. Foi só isso... Por fim, respirei aliviado, sentindo suas mãos tocarem o meu ombro e ele se sentar ao meu lado.
- Sim... Me desculpe.- Falei com uma forte vontade de chorar ao lembrar da doce voz de minha falecida avó, nossa, na verdade.
- Quer me contar?
- Eu... Eu acho melhor não. Foi um sonho ruim e eu não quero mais pensar nisso...- Disse virando o rosto levemente e senti um beijo se posicionar em meu rosto.
- Tudo bem.- Falou me apertando em seus braços.- Glean, você está com o seu celular? O meu, bom, quando eu me transformei minhas roupas e tudo que estava nelas se perdeu.- Ao terminar de dizer isso, me dei conta de que ele estava nú, encostado em mim. Aquele corpo perfeito E NÚ, estava estava me apertando contra si e aquilo me fez sentir uma imensa vergonha, e confesso que um pitada de medo.
Meu rosto começou a esquentar, e naquele segundo eu sabia que estava mais vermelho que um pimentão.
- Meu deus!!!- Falei de imediato, me soltando de seus braços e dando alguns passos rápidos à frente e tentando ao máximo não olhá-lo.
- O que foi?
- Você... Está nú...- Serrei os punhos ao lado do corpo e fitei o chão arenoso do enorme galpão.
- Ah, me desculpe.- Pude ouvir uma risada divertida sair por entre seus lábios e aquele lindo sorriso cumprir seu papel ali.- Minhas roupas, elas...
- Eu sei.- Falei rápido tirando o casaco de moletom que usava por cima de uma camisa preta. O clima já começara a esfriar, o que indicava a chegada do inverno.- Se cubra com isso, por favor...- Detendi o agasalho em sua direção e fechei os olhos. Eu sei, não era para tanto, na verdade eu deveria me sentir honrado de ter "tudo aquilo" bem ali, à minha frente, só para mim; más minha vergonha ridícula não me deixava aproveitar. Eu era o meu pior inimigo...
- Ok.- Senti o casaco deixar minhas mãos gentilmente e logo abri os olhos, ainda virado de costas para ele.- Já pode olhar.- Quando me virei, cada músculo, cada centímetro-menos o que estava coberto- de seu corpo me fazia ipnotizar com tamanha perfeição. Eu praticamente babava!- Quer uma foto?- Ele disse com um sorriso irônico no rosto, me encarando com aqueles olhos penetrantes.
- Ah, eu, ham...- Eu nem conseguia falar. Aquele rapaz me causava calafiros de tão lindo que era.
- Seu celular, está com você?
- Ham, deixa eu ver...- Passei as mãos pelos bolsos a procura do aparelho e o identifiquei no bolso esquerdo, de trás da calça.- Aqui.- Lhe entreguei e ele logo procurou pelo número do pai, telefonando para o mesmo.
- Pai... Sim... Sim, estamos bem. É... Foi por pouco, eu consegui dar um jeito neles... Foi difícil, claro, más eu consegui... Aham... Sei... Ok... Estamos em um galpão... Ok, ele saberá lhe mostrar o caminho... Tudo bem, tchau.- Então ele desligou, me entregando o aparelho.- Ele já está vindo. Mino está com ele, ele vai o trazer até aqui.- Me explicou o quê conversara com Arthur.
Me recordei da noite anterior e de todos os acontecimentos macabros pelos quais passei, e logo milhares de perguntas surgiram em minha mente. A primeira:- O Mino, como ele fez aquilo? Quer dizer, como ele se transforma naquilo?- Ele me olhou apreensivo, já sabendo que aquela era apenas a primeira de muuuitas que ainda viriam.
- Mino não é um cão como os outros. Em famílias de lobisomens, assim como as famílias normais, geralmente se tem um cão de guarda. A diferença entre os nossos cães é que quando ainda são filhotes eles passam por um tipo de ritual, no qual lhes damos um pouco do nosso sangue e assim eles adquirem essa habilidade de quadriplicarem o tamanho quando quiserem, afim de proteger aqueles a quem são leais. O ritual também serve para alterar na inteligência deles, por isso eles nos entendem tão bem quanto qualquer ser humano.
- Hum... Seus ferimentos...- Falei observando os locais que antes estavam rasgados por golpes violentos, más que agora, haviam sumido completamente.- Já estão sarados.- Ele olhou seu abdômen também e sorriu.
- É, sarou enquanto dormiamos.- Eu não disse mais nada. Nossos olhos ficaram conectados por alguns segundos, e então ele cortou o silêncio que se fazia naquele lugar.- Você é lindo...- Ele se aproximou lentamente e acariciou meu rosto em movimentos delicados.
- Você que é.- Falei lhe puxando pela cintura e lhe tasquei um beijo forte, o apertando contra o meu corpo.
- Nunca mais faça isso.- Disse ele ao desgrudarmos nossos lábios, más sem afastar os rostos.
- O quê?
- Isso de me pegar pela cintura. O macho aqui sou eu.
- Wou... Nossa... Me desculpe, senhor "machão", pode me pegar pelos cabelos e sair arrastando por ai se quiser!- Falei irônico.
- Não, más acho que esse papel de dominante é meu. Você tem que ser a princesa indefesa e frágil, que necessita da proteção do seu homem para continuar vivendo.- Ele retirou minhas mãos de sua cintura e passou as dele pela minha, me apertando forte.- E eu sou esse homem.
- Hum... Esse papel de princesa não me agrada muito também, muito menos o "indefesa e frágil", sem falar do "para continuar vivendo".- Disse fazendo aspas com os dedos nas últimas palavras.
- É..? Más acontece que o meu namorado é indefeso e frágil, sim. E cabe a mim protegê-lo de todo o mau e manter esse rostinho lindo, longe de tudo que possa lhe machucar.
- Namorado?- Perguntei erguendo uma sobrancelha.
- É, bom... Se você quiser, é claro...- Falou desviando o olhar e mordendo o lábio inferior.
- Isso é um pedido?
- Bom, pode ser, quer dizer, é.- Pûs os dedos em seu queixo e virei seu rosto em direção ao meu, logo colando nossos lábios novamente.
- Considere isso como um sim.- Disse quando me afastei.
- Sério?- Um sorriso de criança apareceu em seu lindo rosto e ele me levantou no ar, girando logo em seguida.- Você me faz a pessoa mais feliz do mundo dizendo essas palavras, sabia?
- Eu sei, você tem sorte de me ter.- Falei em tom de brincadeira, colocando as mãos em seu peito.
- Nossa, como é convencido!- Ambos sorrimos e voltamos aos beijos.
De repente pudemos ouvir alguns latidos graves e em seguida, Mino adentrou o galpão vindo em nossa direção, com o rabo abanando.
- Ei, garoto!- Me ajoelhei e lhe fiz carinho abaixo do pescoço.
- E ai, parceiro? Você foi muito corajoso ontem, obrigado.- Disse Daniel fazendo o mesmo que eu.
- Filho!- Nos viramos e Arthur andava em nossa direção com uma mochila nas mãos.- Suas roupas.- Ele estendeu a mochila e quando Daniel a pegou, Arthur puxou o filho para um abraço.- Fiquei com medo de que não conseguisse...- Falou quase em um sussurro, más mesmo assim eu pode ouvir perfeitamente.
- Eu também...- Respondeu o meu recém-namorado-primo.
Abaixei minha cabeça e encarei o chão branco.
"Se não fosse por minha causa ele não teria que pensar assim. Provavelmente nada disso teria acontecido, e você não precisaria ter ficado preocupado, tio..."- Pensei jogando a culpa de tudo que acontecera em mim, por levar a desgraça á todo canto que vou.
- Glean.- Arthur me chamou, me fazendo acordar de meus pensamentos e me levantando.- Que bom que está bem.- Falou me pegando de surpresa em um abraço também.
- Ham... Obrigado, tio.- Ao abraça-lo, parecia que quem estava ali era o meu pai, e mesmo sem querer, lágrimas começaram a se formar em meus olhos.
- Bom, então vamos.- Daniel nos chamou alguns passos à frente. Ele já estava vestido, foi tão rápido!- Estou varado de fome.- Ele mostrou um sorriso infantil e começamos a andar para fora do galpão.
[...]
Quando chegamos ainda tivemos que explicar cada detalhe do acontecido pós-saída da casa na noite anterior, é claro, menos o que rolou no galpão horas depois.
Já era quase duas da tarde e finalmente eu poderia subir para o meu quarto e dormir durante dois dias seguidos. Sim, era o que eu mais desejava naquele instante. A noite passada, apesar de eu ter dormido nos braços de Daniel, minhas costas pareciam ter sido pisoteadas por um elefante, estavam doendo horrores.
Entrei em meu quarto e me joguei na cama, pondo a cabeça entre os braços cruzados atrás da mesma. O pânico que passei na noite anterior ainda me assombrava, era como se todas as vezes que pensava naquilo tudo pudesse voltar a acontecer. A imagem das criaturas peludas nos perseguindo me acusavam tanto medo quando o que senti na hora, era aterrorisante pensar em passar por tudo aquilo novamente. Más, o que mais me assustada era a possibilidade de eu ser um deles... O pior deles... Eu não queria ser um monstro, não queria machucar ninguém, nem mesmo para me proteger. Eu sei, era tudo maior que eu, não era apenas a proteção de "Glean", era principalmente a proteção e prisão do que estava dentro de mim.
- Glean...- Fui tirado de minhas reflexões inúteis pela voz rouca de Daniel, que foi adentrando o quarto sem nem pedir licença.
- Sim?- Disse me pondo sentado na beirada da cama.
- Como você está?- Sua expressão era séria. Com as mãos nos bolsos ele se aproximou devagar e se posicionou à minha frente, me encarando com aqueles olhos tão negros e desvendaveis quanto a noite.
- Cansado... Sinto como se meus olhos pesassem uma tonelada.- Falei sorrindo fraco.
- Descanse, irei sair e resolver algumas coisas; quando voltar precisarei de você em bom estado.- Ele sorriu brincalhão e se sentou ao meu lado.- Andei pensando e, bom, eu e meus pais consideramos que apenas eu não chegarei nem perto de ser o suficiente para fazer a sua proteção.
- Como assim?
- Certo. Como eu já lhe disse, existem muitos outros como eu por ai, e aqui na cidade não é diferente.
- Aqui também existem outros?- Perguntei arregalando os olhos como se ele houvesse me dito algo mais estranho do que o fato de ele mesmo ser um lobisomem.
- Sim, poucos.
- Você os conhece?
- Sim. Não temos muito contato, más, só por sermos ligados por esse "fato" em comum, nos esbarramos quase sempre.
- Hum... E qual é o seu plano?- Ele passou uma das mãos pela cama e logo a repousou acima da minha.
- Bom, eu não sei se vai dar certo ou se eles vão aceitar... Más eu pensei em formar um tipo de aliança, pela sua proteção.
- Tipo uma alcateia?
- Tipo isso... Não será vem uma alcateia, eu prefiro o termo "aliança". É menos animalesco e também não nos iguala aqueles seres nojentos.
- Para mim é a mesma coisa.- Falei sem ânimo. A idéia de alguém se ferir por minha causa não me agradava nem um pouco. Eu teria lutado contra essa idéia verberedamente, más, o fato de Daniel lutar sozinho e acabar morto me incomodava,e preocupava ainda mais.
- Mesmo assim, eu ainda não sei se eles vão aceitar. Alguns não são muito amigáveis, e outros...
- Acho que nenhum deles gostará de saber que correm perigo de vida simplesmente por minha causa... Isso nunca vai dar certo, ninguém vai querer se arriscar por mim.
- Eles precisam. Não é apenas por sua causa, o que tem dentro de você não ameaça apenas nós, ameaça tudo e todos. Lobisomens não são egoístas, nós nos preocupamos com as pessoas, com suas vidas... Por que de certa forma, mesmo sem querer, já tiramos algumas delas.- Ele lançou os olhos na direção do nada e ficou pensativo por alguns segundos. Ele realmente não gostava do que era, eu podia ver a culpa e o remorço em seus olhos todas as vezes que ele falava sobre as coisas e o mau que já fez a alguém.- Eu dou o meu jeito. Agora durma, quando eu voltar eu lhe chamo para acertarmos as coisas.- Ele se curvou ao meu encontro e encostou suavemente seus lábios nos meus.- Eu não posso deixar ninguém te machucar...- Disse ele em um sussurro abafado, logo após distânciarmos os rostos.
- E eu não quero que se machuque por minha causa.- Olhei dentro de seus olhos e enfiei meus dedos em seus cabelos, o puxando para mais perto.
- Você não entende... Eu morreria se algo lhe acontecesse. Quando um lobisomem se apaixona é para a vida toda. Nada nem ninguém pode quebrar esse sentimento, você já faz parte de mim... A parte boa de mim, eu não posso te perder, eu não vou te perder.- Senti minha cintura ser tomada com uma força absurda, seu corpo parecia pegar fogo. Entre o espaço mínimo de seus olhos fechados, lágrimas caiam, me molhado os braços, que se posicionavam em seu pescoço e nuca.
- Não faz isso, não chora, por favor...- Falei com dificuldade sentindo meu peito apertar.
- Más é o que acontece quando eu penso em... Em você...
- Então não pense. Eu estou aqui, calma...- Passei os braços em seu pescoço e o apertei em um abraço forte.
- Aconteceu tão rápido, más, eu não consigo mais viver sem você...
- Eu também não...
Ficamos abraçados por longos minutos, apenas sentindo o calor do outro. Ele queria tanto me proteger, mal ele sabia que quando estava em seus braços eu me sentia a pessoa mais protegida do mundo. Aquele corpo quente me passava a segurança e me dava um tipo de âncora para não enlouquecer no meio de tudo aquilo. O fato de eu ser uma "bomba-relógio", com previsão de destruição em massa, acabava com qualquer felicidade que eu já chegara a sentir. Não adiantava o quanto me mantivessem a salvo, o maior perigo que eu corria era eu mesmo. Eu sentia o pino da granada ser retirado aos poucos, todas as vezes que ele se afastava de mim. A besta no meu interior gritava por liberdade, e rasgava tudo de bom que eu tinha. Ela queria sair, e eu não fazia a mínima idéia de como a manter trancada, eu não tinha força para isso. Eu não era como Daniel ou o meu pai, eu não tinha bravura e nem coragem necessárias para suportar aquilo. Eu chegava a fazer vergonha a mim mesmo, antes do circo pegar fogo eu já havia desistido, já havia me entregado de bandeja a escuridão de meu alter ego macabro.
Tudo só piorou quando ele deixou o quarto, aquele local parecia um fosso. Banhado pela fraqueza da minha alma perdida e sem virtude. Meus olhos e corpo aos poucos foram se entregando ao pesar do sono, até minha mente necessitava dar um tempo de mim.
Eu queria dormir, sonhar com unicornios, arco-íris e pássaros encantados; e quando acordasse, veria que tudo aquilo não passou de mais um pesadelo dos quais andei tendo ultimamente. Más eu não teria a mesma sorte, não nessa vida...
Continua...