O firmamento parecia querer sufocar a terra, os vales verdes e infindaveis, as araucarias gigantescas. Tanto azul de dia, tantas estrelas à noite, como uma explosao de particulas de aluminio no ceu, chuva arrasadora no verao, lavando os despenhadeiros, fazendo borbulhar os rios e regatos. Ali o ceu era poder, era um deus vivo e voluntarioso, multicolorido ao entardecer, banhando os vales de ouro limpo quando o dia amanhecia. Parecia que ele existia para nos dois, porque a sensaçao que vinha era a de que aquele paraiso fora criado para nosso deleite exclusivo.
O vento enchia a casa por todos os lados, entrando e saindo reto por portas e janelas, batendo a folhinha colorida na parede, elevando as pontas da toalha de mesa, sacudindo o chaveiro de guizos na fechadura da porta. Outro elemento vivo aquele vento, trazendo o cheiro e a alma dos vales para nossa casa, mexendo em tudo, colocando a marca do tempo e da natureza sobre as coisas.
Na cama estreita e revirada Fernando dormia nu, de bruços, secando ao vento que entrava pela janela toda a umidade de suor, saliva e esporro sobre seu corpo fatigado. Era mesmo perfeito na sua pele de alabastro, nas formas anatomicas corretas, na sua feiçao de anjo que eu tanto amava. Sorria comigo fitando -o, percorrendo suavemente com o dedo o contorno de seu braço de pelos fortes e louros. Seis meses na Mantiqueira e ele estava como novo, as lesoes tuberculosas cicatrizadas, nada de tosse ou febre, a medicaçao diminuida. E eu nem acreditava que o tinha de volta, com saude e vigor.
Agora ele me ajudava com os afazeres do sitio, que nao eram poucos: cavalos, ordenha, galinhas, horta, um roçado de milho, um pomar variado. As vezes vinha gente da cidade nos ajudar, mas de resto eramos nos dois, de segunda a sabado, oito horas por dia. Exaustivo sim, porem o tio de Lucas nao era tao mal pagador assim e apenas vinha olhar o serviço pela manha, verificando tudo, dando ordens, e depois indo embora com a caminhonete fumacenta carregada de caixas de verdura para vender na cidade.
- Nao dorme? - balbuciou Fernando de olhos fechados - Fica olhando para minha bunda...
- Nao gosto de dormir de dia - falei rindo dele - Pior voce que finge dormir.
- Quero um banho -ele suspirou - Estou todo grudento... Depois, quem aguenta essa agua gelada nas costas?
Ele se levantou, devagar,pegando roupa da comoda e indo pelado ate o banheiro. Permaneci deitado, olhando para o teto escuro, de forro alto. Fazia uma tarde morna, tipica do verao na Mantiqueira, um domingo seco e sem nuvens. Ouvi na sala a gataria aprontando,batendo pelos moveis os carreteis de madeira que Fernando colocou para brincarem. Estavam com cinco meses, tres machos e uma femea, malhados de cinza e branco. A gata, mae deles, dormia no tapete do quarto.
O loiro voltou ao quarto fresco do banho, cheirando a alfazema, vestindo calçao verde e camiseta branca furada de traças na gola. Ficou tomando vento à janela, secando os cachos umidos dos cabelos.
Volta e meia ele olhava para os vales com um olhar perdido, saudoso de alguem que se escondia atras de montanhas distantes, cobertas pela neve. Eu via o quanto ele gostava do sitio e as vezes falava em ficar ali pra sempre. Entretanto, apanhavamos as cartas da Suiça todos os meses na cidade e Fernando as guardava com cuidado, numa caixa de sapatos. Eu o flagrei varias vezes mexendo naquela caixa, silencioso, os olhos brilhantes. Ficava envergonhado quando eu o via, guardava tudo de qualquer jeito e saia, calado. Eu nao sabia o que dizer e tambem me calava. Para aquela outra doença dele, o ar rarefeito da serra andava sendo inutil.
À noitinha Lucas apareceu para nos visitar, vindo na caminhonete do tio. Ele aparecia todos os meses, ver os parentes e de quebra nos fazer uma visitinha.
Chegou trazendo de presente um vinho do Porto. Eu notei, assim que ele entrou, que uma agitaçao estranha o dominava. Parecia intimamente comovido e quando Fernando foi buscar os copos para o vinho, Lucas me falou baixinho.
- Preciso conversar um assunto com voce, senao vou explodir.
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Valeu, povo!
Comentem e ate o proximo, seus fofos! *-*