Apos a alta, que ocorreu dentro de uma semana, houve ainda mais quinze dias de repouso em casa, de remédios, de um cuidado extremo com o qual Alex nao vacilava. Porem, eu já me sentia melhor, e colocava em dia as materias atrasadas da faculdade, além de realizar outras pequenas tarefas caseiras. Ao me sentir cansado, me deitava enrolado na manta, em frente à TV.
- Sabe , Alex, sonhei essa noite que nevava aqui em S.Paulo!_ falei a ele enquanto comíamos bolachas de água e sal, vendo a novela._ As ruas estavam todas brancas, e dava pra ver daqui de cima.
- Que maluquice! _ ele riu, me olhando_ Deve ter sido por conta do frio. Estava bem gelado essa noite.
Olhei para ele, em silencio. Quando eu perguntava, ele mudava de assunto, mas eu desconfiava que tinha estado com a vida por um fio. Em que momento tinha sido? A pneumonia foi de uma agressividade que até meu médico se espantou. E tudo por uma baixa repentina e pequena das células CD4, o suficiente para o fungo se instalar e iniciar a infecção. Quando tive alta, o número de meus linfócitos já nao era tão ruim, e talvez por isso eu tenha sobrevivido.
Era triste e desanimador pensar quantas batalhas como aquela eu ainda teria pela frente. Todo inverno seria uma pneumonia? Toda vez aquela aflição, aquele desespero, e Alex sofrendo junto, sempre com a chance de eu cair pelo meio do caminho... O medico falava que estando as células num número aceitavel, nao surgiriam outras infecçoes. Não sei se acreditei nisso, mas o tratamento passou a ser coisa sagrada para mim depois desse susto.
- Não gosto dessa novela_ falei_ Uma gente feia...
- Assista o que quiser. Você manda aqui, mesmo_ disse Alex com um riso ironico.
- Mando? Você fica no meu pé o dia inteiro, cara!
- E não estou com a razão? Vamos, diga_ disse ele me beijando o pescoço, abraçando devagar.
- Acho que sim. O sem -juízo aqui sou eu, né?_ dei um sorriso.
Ele ficava me dando beijos vagarosos no rosto, nos cabelos, sussurrando aquelas palavras amorosas com as quais tinha me conquistado. Não tinha jeito, aquele "grude" dele nao mudava, e eu já tinha me acostumado com aquilo, as vezes até gostava.
- Alex, quando foi? Teve um dia que eu quase morri, não é? _ perguntei com cautela e senti que ele travou na hora.
- Esquece isso, cara_ disse, se levantando e indo para a cozinha.
- Mania insuportavel de me esconder as coisas! Nao sou criança, nao, porra!_ exclamei irritado- Voce e o medico estao combinados de nao falar sobre isso que eu sei!
Beto devia saber. Ele as vezes nos visitava depois que saí do hospital, e foi quem amparou o Alex naqueles dias terriveis pelos quais passei. Pressionei o carinha num certo dia, enquanto Alex saiu comprar refrigerantes para nós na lanchonete ali da rua. Assistiamos ao desenho do He-Man, em silencio, quando perguntei na lata, encarando -o com determinaçao. Ele hesitou, mas acabou falando.
- Foi numa tarde, vinte e poucos dias depois da sua internação. Sua respiraçao era só um sibilo, e o doutor achava que voce nao amanheceria vivo. O Alex ficou desesperado, me telefonou chorando, e quando cheguei no hospital ele estava transtornado como nunca vi antes. Então o doutor teve a idéia de tentar uma combinaçao mais forte de medicamentos, tentar uma última vez... Foi aí que voce começou a voltar, a reagir, e logo estava melhorando. Olha, nao conta para o Alex que eu lhe disse isso. Ate para o seu medico ele pediu muito que esse episodio fosse escondido de voce, para nao te assustar ou desanimar daqui pra frente. Ele nao queria que voce soubesse que sua vida quase... se foi.
Meu primeiro grande desafio e eu quase tinha sucumbido. " Você é valente demais, seu moleque", era o que Alex repetia ultimamente, me olhando com orgulho. Sera que eu era mesmo? Mas acho que eu tinha sobrevivido para isso tambem, para lutar na expectativa de vencer.
Alex tambem andava me escondendo seus problemas em casa, com a familia, mas eu percebia que as coisas nao iam bem com ele. Ele nao parava mais em sua casa, vivia na minha por semanas, falando em procurar emprego e sair da casa dos pais. Se eu perguntava ele enrolava e nao contava o que estava acontecendo. Eu me irritava, ainda mais por saber que ele andava desunido da familia por minha causa. Talvez a mãe dele pensasse que ele estava de caso com alguma mulher. Era o que a minha pensava quando eu passava a noite na casa do Vitor. "Quem é a moça?", ela perguntava, sorrindo, e meu estomago se revirava com a idéia de uma garota comigo.
A cada dois dias Alex me olhava o corpo todo. O pavor que eu tinha do sarcoma nao passava nunca.
- Não tem nada_ ele disse tomando banho comigo, me abraçando por trás_ Suas defesas estao estáveis. O sarcoma nao vai se instalar. Que medo disso, cara! Ele nem é tão dificil de tratar, se pegar no comecinho.
- Mas eu nao quero ficar pintado como um sapo!_ falei, aquecido pela agua quente e o corpo dele colado ao meu- Não bastaram aquelas ínguas horríveis? Levaram meses até sumir.
- Tão vaidoso_ disse ele, me apertando, excitado_ Gente muito bonita é fogo!
- Sou um vulcão, cara _ falei me virando e o beijando com intensidade; a nossa vida sexual havia sido retomada há pouco tempo, e mais por insistência minha que nao me aguentava mais, do que dele, que era todo cuidadoso. Contudo nao havia risco nenhum, eu suava e cansava mais do que antes, é verdade, mas dava muito bem para nos divertirmos por um bom tempo.
Voltei ao trabalho e à faculdade em finais de julho. Ainda dava para esconder a doença, já que eu estava relativamente bem, de bom aspecto, nao emagrecia e nao tinha ínguas ou manchas. Trabalhar e estudar era feito com esforço, mas sempre amei aquela rotina, e insistia, mesmo cansado. Enquanto Alex punha em ordem sua materia atrasada da faculdade, interrompida durante minha internaçao, eu me dedicava ao ultimo ano de meu curso. Vitor, na faculdade, me cumprimentava disfarçando, por estar com o Rafa. Tinha vindo me visitar rapidamente alguns dias, depois que tive alta do hospital; queria tanto o bem daquele menino, o meu afeto por ele nao mudava, mesmo após tantos desentendimentos nossos, e os meus graves erros.
Naquele mes tinha morrido um bonito e famoso ator de novelas, e falavam que era de Aids, embora a familia do cara negasse. Alex ficou bravo quando Beto tocou no assunto certo dia.
- Nao quero essa conversa aqui em casa, Beto. - falou, sisudo.
- Desculpa, cara - disse o outro, desconcertado - Falei sem pensar, e...
- Deixa, Beto - falei, olhando para Alex - Isso nao me impressiona, nao. Amanha saem os resultados de meus exames, e pela primeira vez, estou um pouco mais confiante.
Vi Alex me obsevar com um sorriso leve, ate mesmo orgulhoso. Nao falou nada, mas na manha seguinte tomou banho comigo antes de irmos ao consultorio, e me beijou o corpo todo numa devoçao compenetrada, sussurrando que eu era perfeito por dentro e por fora, que sempre seria, que nada iria me derrotar, me dominar. Foi metafisico, o sol morno entrava preguiçoso pela janela do banheiro, batendo em cheio em nos dois, iluminando as gotas de agua em nosso corpo, fazendo brilhar Alex e a mim . "Essa voce ja venceu", sussurrava ele, abraçando-me , e eu absorvia as palavras e beijos dele como num benzimento, numa reza, um ritual sagrado ali debaixo da agua quente do chuveiro. A esperança dele no melhor, no sucesso de meu tratamento domava cada vez mais o meu ceticismo e desanimo com aquela situaçao. Minha crença num futuro real e relativamente bem para mim estava se fortalecendo, e Alex tinha grande parte de responsabilidade nisso.
Eu quase chorei de alegria quando afinal o medico me comunicou que meus linfocitos tinham aumentado e a carga viral em meu sangue finalmente estava baixa. Alex ouviu isso tudo com um sorriso comovido, apertando minha mao, nervoso mas agora era de tanta felicidade. Eu estava respondendo muito bem à medicaçao, segundo o doutor, agora era cuidar de tudo como antes e trabalhar para que minha carga viral se tornasse indetectavel, o que era o àpice do sucesso do tratamento, mas quanto a esse ponto eu ainda duvidava um pouco. Ja o Alex acreditava: "Voce vai conseguir. Logo o virus sequer vai aparecer no seu exame, amor."
Ele quis comemorar aquela minha pequena vitoria com um jantar naquele restaurante frances caro no qual fomos certa vez. Mais uma vez, ele abriu a carteira sem pena nenhuma e eu que nao era trouxa escolhi o melhor prato do cardapio, que no final me deu um pouco de enjoo quando cheguei em casa. O AZT nao perdoava mesmo, nem os pequenos prazeres, embora ele fosse ate o momento o mantenedor de minha sobrevivencia.
Bebi um sal de frutas e fiquei mais aliviado. Observei Alex colocando o disco do Air Supply, na "nossa musica", como dizia ele. Deu um sorriso e me pegou pela mao, colando seu rosto ao meu, nos dois num tipo de dança lenta e romantica, bem ao gosto dele, aquele libriano tipico que tive a sorte de conhecer.
- Estou muito orgulhoso de voce, meu anjo - ele sussurrou em meu ouvido.
- Metade dessa vitoria pertence a voce. - dei um sorriso - Por ser tao teimoso, tao paciente comigo, como acho que ninguem mais seria.
- E isso vai continuar, se prepare! - ele riu, me apertando pela cintura - Nao sossego enquanto sua carga viral nao estiver negativa, cara.
- Sera que eu consigo, Alex? - fitei seus olhos de pertinho.
- Voce consegue o que quiser. Tenho certeza que obteremos essa vitoria em breve - disse ele, beijando meu rosto devagar - Ate que surja um medicamento mais potente, ou mesmo a cura. As pesquisas nao param. Segundo o doutor, teremos em breve boas noticias. A guerra contra o virus apenas começou, Marquinhos.
Abracei -o, infiltrando -me daquela ampla esperança que ele possuia. Eu era orgulhoso, sempre fui, mas reconhecia que aquele cara tinha muito a me ensinar. E eu, genioso, cabeça -dura, cheio de vontades, que odiava ser contrariado, devia as vezes me render à inegavel superioridade do carater dele.
Tinha chovido o dia inteiro quando cheguei em casa naquele final de tarde de agosto e Alex falou que tinha uma entrevista de emprego num escritorio de advocacia para amanhã. Fiquei feliz por ele, mas nao perguntei se tinha brigado com os pais outra vez, ja que ele nao me responderia mesmo. Ficamos olhando a chuva da sacada, a cidade molhada e iluminada, a tarde cinzenta.
- Manhattan que é linda com chuva no final de tarde_ disse Alex, me abraçando a cintura_ Um dia viajaremos para lá.
Lembrei de Tony nos Estados Unidos. Estaria melhor ou tinha piorado? Ele e mais uma multidão de gays como nós, lutando pela vida, estigmatizados por aquela doença maldita. Falavam em cura, mas quando? Os caras morriam como moscas todos os dias... Eu veria essa cura? Viveria a tempo? Precisava crer nisso.
Triste ainda era lidar com os dedos acusadores da sociedade sobre nos, culpando -nos por nossa propria doença, como se aquela nossa forma de amar fosse um erro, um ato de rebeldia pelo qual estavamos sendo punidos. O nosso amor tao intenso e bonito que nos unia agora estava nos separando pelo medo da contaminaçao e da morte, separando amigos, namorados, pessoas que se amavam. Tony tinha razao: era muito injusto isso tudo. Era cruel demais.
Na sala o LP que Alex tinha colocado era daquela banda que estava fazendo sucesso, o Information Society. Tinham musicas muito boas de dançar, e quando eu voltasse à boate certamente dançaria aquelas. Mas gostava mais da letra de Repetition, sobre um garoto solitário que volta para alguem, volta para ficar pois nao podia mais viver como vivia. De certo modo eu me identificava com aquela musica. Até ali minha jornada tinha sido solitaria, vivendo o que eu queria sem me importar com nada, nem com os outros. Voltava agora, marcado pela Aids, por duras experiencias, para o que eu era antes disso tudo: um moleque se esforçando para ser feliz, apaixonado pela vida, meio "careta".
"A nossa geração não se privou de nada nessa década que está acabando", Alex costumava dizer" Tudo foi em excesso, tudo foi imediato, o egoísmo era a ordem. Talvez o preço disso tudo tenha sido alto demais".
- Ei, vamos entrar?_ ele me puxou pela cintura_ Está ficando frio.
Sorri para ele, seguindo-o. Na sala, o disco já tinha acabado.
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Valeu pela companhia durante essa historia! Voces sao demais!
~Agradecimentos eternos a todos!
Um beijo lindos! Até qualquer dia! :)