Queria agradecer à todos que comentaram e que deram notas, e dizer que adoro ler o que vocês escrevem. Queria deixar duas coisas claras: primeiro que sim, a maioria das coisas relatadas aqui aconteceram mesmo. Mas já fazem quatro anos, então a criatividade teve que tapar os buracos que a falta de memória deixou. A maior mudança é, sem dúvidas, a linha temporal. Por isso, pode parecer que tudo acontece muito rápido, mas na verdade, eu só relato os fatos que julgo ser importantes. Segundo, sobre quem pergunta o que aconteceu no futuro: calma, eu vou contar tudo em seu devido tempo. Então, é isso. Abraços.
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Enquanto Rafael me beijava, eu senti muitas coisas ao mesmo tempo. Senti sua língua na minha boca, seu braço da mão machucada ao redor da minha cintura, sua outra mão no meu pescoço. Senti suas costas quando eu o abracei. Senti o cheiro do perfume dele. Senti a parede, quando fui empurrado contra ela. Senti as mordidas que ele dava no meu lábio inferior quando parava pra tomar fôlego.
Mas também senti dúvida. Senti como se algo não estivesse se encaixando. Como se algo estivesse errado. Mas não parecia errado, parecia certo. Ele parecia saber exatamente o que fazer, onde tocar. Mas faltava alguma coisa. E aí eu percebi o que. Faltava um motivo. Faltava eu saber porque ele estava fazendo aquilo. Por isso, interrompi o beijo. Ele notou, e se afastou.
Ficamos em silêncio por vários minutos. Ele sentou na cama, eu continuei em pé. Até que eu tive a coragem de perguntar.
- Rafael, porque você fez isso?
- Eu já disse, se você quer superar...
- Não. – interrompi – Não faz sentido. Entendo porque você se importa, a gente é amigo. Mas isso é demais. Você nem é...
- O que?
- Você não é gay, Rafael!
- Quem disse?
Eu encarei ele, sem reação. Ele tinha um sorriso irônico no rosto. Sentei no chão.
- Rafael – continuei – você fica com tanta menina. Você nunca ficou com um cara.
- Lucas – ele falou, agora sério – você já ficou com outros caras, não é?
A princípio, quis dizer que não. Meu instinto natural em alerta, após dezoito anos escondendo de todos que eu gostava de homens. Mas aí lembrei que ele já sabia de tudo mesmo, fazer o que?
- Já.
- E eu nunca soube disso, certo?
- Certo.
- Então porque você saberia se eu também ficasse?
Não respondi, não sabia o que dizer. Não fazia sentido Rafael ser gay. Ele nunca havia dado nenhum motivo para acreditar que fosse.
- Mas, Fael, as garotas que você ficou, que você namorou, inclusive... foi tudo encenação? – perguntei, confuso.
- Não. – ele se juntou a mim no chão – Olha só, Lucas: eu sempre gostei de meninas, sabe. Mas eu também sempre gostei de meninos. Eu achava eles bonitos e engraçados, enquanto as meninas eu só achava bonitas. – ele riu – Mas, durante a puberdade, a situação ficou complicada. Eu batia punheta pra aquelas mulheres nas revistas, sabe. Mas aí um dia, em uma dessas revistas, tinha um cara. E eu achei ele bonito. E meu pau ficou duro, e eu bati uma ali pra ele.
Pela primeira vez, eu ri da situação. Mas minha cabeça ainda estava à mil, não conseguia processar nada direito.
- Conforme eu fui ficando mais velho, fiquei mais confuso. Até que, aos quinze, eu contei pra minha mãe. – ali ele ganhou minha total e focada atenção, esqueci todo o resto.
- Sua mãe sabe?
- Sabe. Ela me levou em um psicólogo, pra me ajudar a entender. E a gente conversou bastante sobre isso. Ela levou de boa, entende. E perguntou se eu achava que meu pai deveria saber.
- Mas ele não sabe.
- Não, eu não quis que ele soubesse, não até eu ter dezoito, porque agora eu sou dono do meu próprio nariz.
- Mas ele ainda não sabe...
- Não tive coragem ainda. Ele tem tanto orgulho de mim. Tenho medo de que, você sabe...
Concordei com a cabeça.
- Enfim. A partir de então, Lucas, eu fico com quem eu gosto. Garota, garoto... É verdade que só namorei garotas, mas percebe que nunca durava muito, né?
Voltei a concordar com a cabeça, agora rindo. Ele parecia tão confortável ao falar sobre isso. Diferentemente de mim, que tremia aos pés da cabeça só em pensar no assunto.
- Mas Fael – voltei à minha preocupação inicial – não sei se é uma boa ideia, sabe. Parece estranho...
- Você se sentiu estranho? Quando eu te beijei?
- Não – assumi.
- Durante o beijo, no que você pensou?
Eu corei, mas ele perguntava com tanta sinceridade, sem nenhum pingo de ironia, ele realmente queria saber.
- Não pensei em nada, eu só senti, muita coisa. Mas me incomodou, não saber porque você tava fazendo aquilo.
- Eu fiz aquilo porque você é o meu melhor amigo, Lucas. E porque pareceu ser a coisa certa a fazer pra te ajudar. E, também – ele riu – porque você não é de se jogar fora.
Eu ri. Era tudo tão estranho, mas, ao mesmo tempo, tão fácil. Durante o beijo com Rafael, não senti a adrenalina que havia sentido no vestiário da escola com o louco da boate, e com o cara mais velho do meu antigo condomínio, ou com o meu primo distante. Eu senti calma. Me senti ciente e dono de todo o meu corpo. Enquanto ele tinha me abraçado, parecia que ele havia coberto todas as partes de mim, inclusive as que haviam sido arrancadas por mágoas passadas. E eu tinha amado essa sensação de completude.
Enquanto eu divagava, Rafael ficou de joelhos, aproximou a boca da minha, e me beijou novamente. Dessa vez, não foi forte nem urgente. Retribuí o beijo com a mesma velocidade, sem pressa. E ficamos vários minutos lá, no chão do quarto escuro, sentados de frente um para o outro. Ele beijou minha boca, meu queixo, minha bochecha. Eu toquei seus braços, seus ombros, seu pescoço.
Então, ouvimos a campainha. Rafael afastou seu rosto do meu.
- Minha mãe deve ter esquecido a chave, de novo.
- Eu saio pelos fundos. – Falei, já me levantando.
- Pra que isso? – Ele riu. – Fica aí.
Ele saiu, me deixando só. Pouco depois, ouvi sua voz me chamar do andar de baixo.
- Boa tarde, Lucas. – Sua mãe me cumprimentou.
- Oi, Dona Lúcia.
- Pra que esse Dona, rapaz?
- Mania, só. – respondi, rindo.
- Vai ficar pra lanchar?
- Não, cadê o Fael?
- Pegando umas compras no carro.
Rafael logo voltou e me convidou para comer, mas recusei. Já passava das cinco e minha mãe logo chegaria do trabalho e encontraria a casa vazia. Pegamos o carro e logo paramos na entrada da minha casa.
- Valeu, Fael. – falei, já saindo.
- Lucas – ele chamou. Virei, e ele me puxou, beijando minha boca rapidamente. – Pronto.
Eu ri e saí do carro.
Durante aquela noite, pensei muito sobre o Rafael, tudo o que ele havia me contado, tudo o que havíamos feito. Pensei se era sensato continuar com aquilo, se poderia estragar a nossa amizade. E aí, pela primeira vez desde que Rafael me beijou, lembrei de Danilo, de Sabrina e de Alice. “Muito bem, Rafael, deu certo. Não pensei em nenhum deles, nem acabei desmaiado”. Decidi dar tempo ao tempo e ver como as coisas iriam ser dali pra frente.
Na segunda, Rafael sentou-se conosco, em seu lugar habitual. Alice e Sabrina o encararam, surpresas.
- Ué, acabou a birra? – Sabrina perguntou.
- Acabou. – Rafael respondeu, sorrindo.
- Fael...? – Alice testou.
- Oi.
- Nada, só queria saber se você ia responder. – Alice riu.
Ele sorriu, mas voltou os olhos para o Danilo, e seu sorriso morreu.
- E ele?
- Ele vai continuar lá. – Sabrina respondeu, impassível.
Não tentamos discutir.
Finalmente, a aula acabou. No pátio do colégio, notei Danilo sentado, sozinho. Instintivamente, fui em direção à ele.
- Lucas! – ouvi, atrás de mim.
- Oi, Fael.
- Quer carona?
Hesitei. Olhei para o Danilo sentado, sozinho, e pensei na sorte que eu tive, por mais que eu tivesse sofrido, meus amigos não haviam me abandonado. Ele precisava de alguém, assim como eu havia precisado. E, embora eu tivesse medo de me reaproximar dele, de deixar ele entrar na minha vida de novo, eu precisava ajudar de alguma forma.
- Hoje não, Fael.
Ele acompanhou meu olhar até o Danilo.
- Ah, entendi. – algo no seu tom de voz fez eu me virar.
- Rafael. – chamei, ele virou.
- Oi.
- Amanhã? Pode ser?
Por um momento, achei que ele fosse recusar. Mas ele abriu um sorriso e concordou com a cabeça.
Finalmente, fui até Danilo. Sentei ao seu lado, mas não falei nada. Ele, então, quebrou o silêncio.
- A Sabrina não vai gostar de ver você aqui.
- Ela já foi embora.
- Ah.
- Como você tá?
- Tô bem, na medida do possível. O Rafael tá falando com você de novo, fizeram as pazes?
- Quem disse que tínhamos brigado?
- Ele passou uma semana sentando lá atrás. Só porque vocês não falam mais comigo não quer dizer que eu não saiba das coisas.
Eu teria rido, mas notei o tom de mágoa com o qual ele tinha dito aquilo.
- Você sabe que é complicado...
- Eu sei. Mas sabe, eu esperava isso de todo mundo, menos de você. Mas agora eu sei que você não tá me ignorando, né? Só na frente da Sabrina.
- Porque você esperava isso de todo mundo, menos de mim?
- Porque você sempre esteve por perto, me ajudando. Eu sempre pude contar com você pra tudo. Sabe, Lucas, de todos eles, você é o que mais me dói ter perdido.
- Você não me perdeu, Danilo.
Senti que ia chorar, por isso, não falei mais nada. Enfim, ele disse:
- De qualquer jeito, o ano tá acabando mesmo...
- Mas a gente vai continuar a se ver, né? – perguntei.
Ele ficou calado.
- Danilo?
- Tem uma coisa que eu preciso de dizer. Mas você não pode falar pra mais ninguém, tá certo?
- Porque não?
- Porque eu não quero que pensem que é uma medida desesperada de fazer todo mundo voltar a falar comigo.
- Fala logo, Danilo.
- Meu pai, ele pediu demissão da empresa.
- Porque?
- Ele conseguiu uma proposta melhor. Ele vai assumir.
- Mas o que isso tem a ver com você?
- O trabalho é em Recife.
Me calei. Não podia ser...
- Vou voltar pra Recife, Lucas. Eu vou embora.