- Nano, meu Nano _ dizia Paolo me apertando nos braços vigorosos, a voz embargando _ Parece que eu sabia que voce ia chegar. Sonhei com o trem a noite toda...
Seu cheiro denso e presente, bastante masculino, misturava suor e loçao de barbear em um fundo de agua de lavanda que jà desvanecia. Embriaguei-me naquele odor, no calor de seus braços, na rigidez de seu corpo viril. Juntava tudo de uma vez: saudade, amor, alegria e tambem desejo, algo novo e subito.
- Deixe-me ve-lo _ falei apartando-me dele e o observando por um momento.
Seu rosto irradiava felicidade e comoçao. Da meninice guardava os traços finos do nariz, a boca grande e bem desenhada, e o brilho fulgurate dos olhos negros. Era, sobretudo, um homem magnificamente belo, de pele bem branca que contrastava com a abundancia de pelos lisos e pretos nos braços e no peito cuja camisa mal abotoada deixava perceber. Rosto escanhoado, maos grandes, Paolo devia medir o mesmo que eu, cerca de um metro e oitenta, de ombros largos, forte, bem diferente do garotinho fragil que vendia jornais na rua.
- Como voce esta bonito, Paolo! _ sussurrei sem pensar muito, e vi que ele me olhou com um sorriso embaraçado, tambem me constrangendo.
- Espere. Vou fechar isso aqui _ disse ele pegando um comprido gancho de ferro e descendo a porta do armazem com estrondo _ Esta na hora do almoço. Faz dias que essa venda esta ás moscas, por ser final de mes, voce sabe... O pessoal do bairro esta sem dinheiro.
Apanhou da chapeleira à porta a sua boina escura, pondo-a com cuidado, ficando assim um legitimo e maravilhoso representante de sua terra. Eu nao parava de olhar para ele que, por sua vez, parecia inquieto e ainda comovido ao meu lado. Seus olhos faiscavam ao se fixarem nos meus.
- Almoça comigo, Nano? _ convidou ele apos chavear a porta dos fundos do armazem _ Temos tanto o que conversar!
No trajeto ate à casa dele, que nao era perto, seguimos conversando em voz baixa, as vezes rindo. Era incrivel, pois nem parecia que estivemos longe um do outro por doze anos, e sim como se tivessemos nos visto ontem mesmo. Contei um pouco de minha vida sem graça na capital, no internato e na Universidade, sempre sozinho, estudando como um louco, ignorado pelos colegas. Paolo falou que seguiu sua vida sem grandes expectativas, que ha alguns anos tinha ido morar no litoral e trabalhar no porto, porem, eram empregos piores do que aqueles do interior. Nao valia a pena, e ficar longe da familia era duro. Alem do mais, confessou, queria voltar logo pois sabia que eu estava para concluir o curso em S. Paulo.
- Se dependesse de mim, nunca que estariamos separados _ disse, me olhando de relance.
Nas duas vezes em que vim ate à cidade foi tao rapidamente que, nem que eu quisesse, poderia procura-lo, pois nao havia tempo suficiente. A correspondencia por cartas seria uma possibilidade de contato, contudo, a verdade era que eu tinha um grande receio de descobrir que ele tinha seguido sua vida e me deixado definitivamente no passado.
Paolo morava numa casinha verde-agua, em uma rua tranquila e arborizada. Quando ele abriu a porta fomos saudados por um gato grande e roliço, preto e branco, que veio todo dengoso se enroscar nas pernas dele, miando.
- O Fausto quer almoçar _ disse Paolo rindo, pondo a boina num prego na parede _ Nano, fique à vontade. Se quiser tire o paleto. Esta calor... Nao sei como voces aguentam ficar de paleto o dia todo.
Realmente, aquele final de manha estava bem quente. Coloquei chapeu e paleto sobre uma cadeira ali na sala (ele nao tinha chapeleira) e notei Paolo me olhando com um sorriso.
- E ainda usa colete! Por Deus!
Como o chao de ceramica era frio, ele tirou os sapatos e as meias, insistindo para que eu fizesse o mesmo. Fazia tempo que eu nao andava descalço pelo chao, e a atmosfera da casa dele me parecia tao limpa e fresca que nao resisti, sentindo-me outra vez como uma criança ao lado do meu carcamano.
Logo ele foi à cozinha arrumar algo para comermos, seguido pelo gato que correu atras dele, lepido. Observei a simplicidade de sua sala, a mobilia basica, solida e asseada. Do curto corredor que saia direto no quintal, notava-se um pequeno terreno repleto de bananeiras cujas folhas farfalhavam preguiçosas ao vento brando e ocasional.
- Vem aqui, Nano! _ chamou Paolo mexendo nas panelas.
A cozinha era minuscula, composta pela pia, um fogao pequeno, a mesa e duas cadeiras que pareciam pertencer a outro jogo de mobilia. Paolo cortava tomates, cebola e manjericao enquanto a agua fervia na panela.
- Macarrao da mama, pode ser? _ disse com um sorriso _ Toda semana ela faz uma boa porçao e me traz. E eu sei que voce gosta.
O gato miava sem parar, esfregando-se nas pernas dele, deixando pelos brancos e compridos na calça escura do Paolo. Encostei-me à bancada da pia, perguntando porque ele resolvera morar sozinho.
- Privacidade, amigo _ respondeu, suspirando _ Senso de independencia, de vida adulta. Sou um homem de vinte e dois anos, jà era tempo de me arranjar sozinho.
- Achei que seria para se casar, futuramente _ falei com certo tom ironico.
- Pode ser _ ele me fitou nos olhos _ No entanto, no meu coraçao, jà me sinto casado com alguem, e faz tempo.
Meu rosto ardeu de repente, e fingi olhar o quintal dele atraves da janelinha baixa de vidro trabalhado, aberta ao maximo.
- Ainda tem a medalhinha? _ indagou ele.
Puxei de dentro da camisa a medalha do Sagrado Coraçao, quente por estar em contato com a pele. Ele se aproximou e a tocou, com um sorriso.
- Quase nunca tirei _ confessei meio sem graça, inebriado com seu cheiro proximo a mim.
- Tem o seu calor nela _ sussurrou Paolo, chegando ainda mais perto, subitamente tenso, mantendo seus olhos nos meus _ Eu sempre pensava que, nesse coraçaozinho de rubi que esta incrustado na imagem de Cristo, havia tambem o meu coraçao batendo junto colado ao seu peito, Nano.
O beijo dele veio a principio lento e cauteloso, para depois ir se intensificando numa ansiedade saudosa, ofegante. Era o mesmo menino que me beijou tres vezes anos atras, nervoso, porem o toque estava mais firme, mais decidido e estranhamente experiente. Os labios eram mais sabios, mais grossos, a saliva limpa e generosa. Perdi-me nele, envolvendo-o com os braços, numa fome repentina de seu sabor, naquela velha sensaçao de pequenas e sucessivas explosoes de felicidade quando nos tocavamos. A impressao era a de unidade, porque eu sentia que era ele ao mesmo tempo que era eu, que a minha alma e a dele eram a mesma coisa, a mesma substancia.
- A agua ferveu _ disse ele rindo, me soltando todo ofegante e indo cuidar da panela; lançou-me um olhar travesso e mordeu o labio _ Esta vermelho como este molho, signore Luciano.
Nao contive a risada, empurrando-o por zombaria. Ele pegou um garrafao de vinho debaixo da pia e me serviu a bebida numa caneca de aluminio amassada. Falei a ele que ia fazer como um cachorro magro: comer e ir embora. Tinha ainda o almoço que Yedda estava preparando, e nao podia faltar e fazer aquela desfeita à minha cunhada.
- Que pena, Nano _ murmurou ele, suspirando _ Mas à noite voce volta, nao? Pode ate mesmo dormir aqui...
Travei pensando naquela possibilidade. A questao sexual era, de fato, um ponto sensibilissimo para mim, algo em que eu nao gostava nem de pensar jà que me evocavam tenebrosas lembranças envolvendo Rodolfo. Desconversei e falei que voltaria sim, mas apenas quando pudesse. Tinha acabado de chegar de viagem e precisava me organizar um pouco; percebi que ele ficou triste com minha recusa, e eu tambem fiquei, por ele.
Almoçamos na varanda sentindo o vento quente do meio-dia na cara, conversando varios assuntos sobre as pessoas da cidade e sobre o que tinhamos visto e feito nesses anos todos. Nada me tirava da cabeça a ideia de que ele nao estava intocado como o deixei e que tinha, sim, vivido aventuras durante esse tempo. Quis muito perguntar sobre isso mas nao achei jeito, e meu ciume me denunciaria horrivelmente, tinha certeza.
Despedimo-nos demoradamente com um beijo lento na sala, ainda descalços, e a expressao dele de felicidade, me observando, foi algo maravilhoso que levei comigo com um sorriso, de volta ao casarao para o almoço de minha cunhada.
A mesa estava sendo posta quando cheguei. Yedda quis saber onde eu tinha estado, o que nao hesitei em responder, falando que tinha ido ver um amigo. Lendo o jornal na poltrona, Rodolfo me encarava com um olhar fixo e violento. Seguiu -me ao quarto quando subi para me lavar e trocar de roupa. Vi quando ele entrou batendo a porta com raiva, avançando para mim numa bofetada pesada que ardeu como um golpe com chicote.
- Seu veado imundo _ murmurou ele com desprezo, cuspindo no chao perto de mim e deixando o quarto no seu passo duro e curto.
Ele sempre dava um jeito de encobrir minha alegria e me colocar para baixo. Toquei meu rosto que queimava no lugar do tapa, e pensei se aquela agressao nao era um prenuncio nefasto de outras piores que ele me reservava.
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Opinem que eu respondo nos comentarios, ok?
Beijao, galera :)