E se eu ficasse ali quieto, deitado na penumbra do banheiro, escondido dos olhos verdes de Heitor? Será que minha alma seria poupada de seus modos sensuais, de suas pernas roliças e seus cachos cor de bronze?
Havia dormido ali graças ao fato de que o banheiro que me tranquei era isolado, ficava no andar de cima. Ninguém tinha coragem de ir ao segundo andar, já que ali ficava apenas o antigo estúdio da minha falecida mãe. Ali era o único lugar que eu sabia que Heitor não me seguiria. Ninguém entrava lá. Ninguém tinha coragem.
Abri a porta, minhas pernas doloridas e meu braço vermelho denunciavam a noite desconfortável de sono. Ali estava eu, no estúdio empoeirado da minha mãe.
Tudo ainda permanecia ali. As roupas antigas que ela usava para fotografar-nos ainda estava sob as mesas, as fotos emolduradas ainda estavam postas nas paredes como troféus.
Ela tinha orgulho da família, tinha orgulho de nós.
A luz do sol adentrava pelas janelas, tornando o local um belo show de cores e imagens reconfortantes que causava uma sensação preenchedora em mim. Tudo que eu tinha da minha mãe estava ali naquele quarto. Em todos os lugares que olhava, em todas as paredes via minha família completa sorridente e unida em meio as molduras grandes.
Heitor estava lá fora, eu pude vê-lo espiando por uma janela.
O que fazer? Iria encara-lo e sofrer os arrependimentos da alma, quando ele me dissesse que estranhou a língua no nosso beijo. Eu não podia fazê-lo sofrer, deixa-lo ali a deriva do vento e do sol, ainda mais nesse momento tão delicado da nossa vida.
—Desculpa, Heitor— Eu disse, abrindo as janelas.
Heitor estava sob o teto do primeiro andar, nada muito perigoso devido ao fato da arquitetura de nossa casa ser imensamente bem desenhada. A parte de trás da casa tinha um quintal elevado por causa do local montanhoso que construíram a casa.
Ele ficou calado, observando o lugar, quase como se estivesse na presença de nossa mãe morta. Peguei sua mão e o guiei até a parte de dentro da casa. Ele fez que não, estava com medo de entrar.
—Saia daí, deixe mamãe descansar em paz.
Nunca havia o visto tão sério, seus olhos fixos nos meus, seus lábios levemente franzidos. Pegou minha mão e me puxou, me guiava ou me expulsava, não conseguia dizer. Pulamos do teto um meio metro no chão. Nada muito perigoso ou arriscado.
Por momentos pensei que me tratava mal pelo fato de eu ter o beijado. Mas depois entendi que aquele estúdio era importante para ele tanto quanto era para o meu pai, que sentia saudades da mamãe desde quando se separaram.
—Pai está bebendo de novo—Ele disse, enquanto colocava o braço em volta do meu dorso, me agarrando de lado enquanto andávamos —Ele não consegue viver com a ideia de que mamãe cometeu suicídio... ele acha que foi sua culpa.
Minha mente me amedontrava. A noite passada foi das mais tensas da minha vida. Beijar meu irmão enquanto encarava seus olhos verdes e calmos como o mar foi um dos pesos mais insuportáveis na minha vida inteira. Estava com medo. Ainda mais agora que Heitor admitiu que meu pai achava que fora minha culpa o suicídio da mamãe.
O vicio por álcool surgiu desde o dia em que mamãe o deixou. Desde sua morte, o vício piorou. Chegou a passar semanas no efeito do álcool, já não aguentava mais permanecer sã e salvo.
—Ele pediu para eu vir te chamar— Continuou Heitor —Quer que explique o que houve ontem.
Enquanto andávamos em direção a porta da frente, Heitor me abraçou mais forte. Beijou minhas bochechas e completou:
—Acho melhor você não ir, ele está fora de controle e é melhor a gente ligar para a Tia Berta, talvez ela saiba como acalmar o papai...
Ouvia-o gritar lá de fora. Olhava pelas janelas e tive a visão triste e melancólica de meu pai sentado em frente a sua escrivaninha com uma garrafa de whisky vazia, alisando a fotografia em uma das mãos, xingando e apontando o dedo para a face de minha mãe enquanto ele gritava com ela.
Será que alguém já havia visto um rapaz como ele? Chorando feito um bebe. Será que você já viu seu pai, o homem mais forte do mundo chorando e perdido como o meu estava ali? Quando adentrei pela porta e vi seus olhos vazios: Duas bolas de gude negras e obscuras que pareciam pedir pela vida de minha mãe.
—Sente-se aqui! —Tentava manter o ar de pai do ano, um pai rude quando necessário, mas não dava! Ele estava um caco.
Sentei-me amedontrado, olhei para trás e vi Heitor no celular, provavelmente falando com a tia Berta, que não podia fazer muita coisa a não ser chamar o filho Alan para nos ajudar. Eles moravam a uns 30 minutos daqui, e mesmo assim papai nunca deixou nós nos vermos. Eu já havia visto esse primo umas vezes na vida, mas nunca permanecia por muito tempo.
Gabriel correu para ajudar papai, ele estava com a mesma face amedontrada que nós. Estávamos todos com medo. Não do papai, mas do que ele podia fazer consigo próprio.
—Ela me traia mesmo? —Ele perguntou, encarando-me nos olhos.
Foi eu que havia dito a ele, quando tinha 12 anos, que mamãe havia beijado o vizinho no dia em que ele trabalhava. Eu era inocente demais, e acabei causando tudo isso.
Fiz que sim com a cabeça, quando estava sob pressão não conseguia esboçar nenhum sentimento com clareza.
—Olha na porra dos meus olhos e diga que aquela vadia me traia! —Ele gritou.
No mesmo instante vi Diego, meu irmão mais velho, entrou na sala. Estavam todos assistindo das janelas. Ele não gostava nem um pouco quando alguém falava mal da mamãe. Se eu não houvesse o impedido ele provavelmente teria batido no meu pai, e no estado que ele se encontrava, teria o machucado muito.
—Olha pai, eu não sei! Ok? Eu tinha doze anos! —Gritei enquanto batia o punho na mesa.
Na verdade eu sabia, e não era só eu. Todos meus irmãos sabiam que mamãe traia o papai.
No mesmo instante que falei, ele chorou. Começou a chorar feito uma criança de cabelos grisalhos e pele flácida. Deitou-se no chão em posição fetal, enquanto eu via as lágrimas reluzentes vazarem pelos seus olhos e lamber sua pele.
Gabriel correu para abraça-lo, afastá-lo dos próprios pensamentos cruéis que o rondavam. Ele então pulou, em um rápido golpe, jogando meu irmão para o lado com uma força incrível.
Vi todos os três outros irmãos correrem para ajuda-lo, Gabriel era o preferido de papai, o que só mostrava o quão fora de si papai estava.
Correu pelas escadas em direção ao estúdio de mamãe. Enquanto escutava o rápido estalar de suas botas na madeira da escada, me perguntava como ele podia, tão bêbado como estava, ficar tão ágil e tão destemido assim. Tirei a conclusão que fora a tristeza que o afogou e ele precisou respirar. Esse era o modo que ele respirava.
Gritou quando abriu a porta do estúdio:
— Foi tudo sua culpa! Sua culpa ser filho da puta!
Gabriel estava bem. Ainda estava deitado no chão, seus cabelos loiros e curtos estavam bagunçados, provavelmente por causa do baque. Suas pernas brancas ressaltavam um fio de sangue escorrendo do pequeno joelho dele. Gabriel é o mais jovem de nós, com oito anos. E ele nunca havia feito nada para apanhar daquela maneira.
Ouvimos som de coisas quebrando, vidro estraçalhando. Papai estava destruindo o quarto, destruindo nossa mãe. Estava tendo uma crise. Corremos escada acima, um atrás do outro. Não podíamos fazer muito coisa, mas pelo menos podíamos tentar para-lo.
—Foi sua culpa, Felipe! —Falava de mim, enquanto pegava os portas retratos e os jogava na parede destruindo todas as evidencias de uma família feliz. Rasgava as fotos, batia com as molduras nos armários, tentando os destruir —Foi sua culpa, seu filho da puta!
E foi. Foi minha culpa, eu sabia daquilo. Se não houvesse contado do adultério papai nunca haveria deixado mamãe, evitando que ela entrasse em depressão e cometesse o suicídio.
Heitor pegou meu braço, o envolvendo em seu corpo. Lá estávamos nós de novo.
Todos os quatro irmãos olhando o pai enlouquecer nas suas frentes.
Em seu frenesi de jogar coisas em direções distintas, pude ver a loucura tomando conta de seu ser pelos olhos sombrios e mortos. O processo de luto era aquele, destruir para renascer. Papai então jogou uma moldura em nós. Não foi sem querer, foi de propósito, eu lembro da sua face intacta e fria arremessando o objeto cortante pelo ar até arrevesar o peito de Heitor. Ele queria me acertar, mas errou.
Heitor sangrava no peito, a quina da moldura cortou-lhe a camiseta e a pele.
O mundo parecia se destruir lentamente a partir daquele momento. Ninguém machucaria meu irmão. Ninguém!
Pulei em direção a ele, e o resto foi flashs confusos de memória. Lembro-me de empurrá-lo no chão, dele tropeçar na mesinha e de batê-lo com uma moldura que achei no chão. Uma dura moldura de ouro, que em poucos golpes abriu um grande ferimento na testa do cara já inconsciente. Fui afastado pelos meus irmãos, que choravam desesperadamente, com as mãos sujas de sangue.
Foi então que percebi me afastando do corpo inconsciente do meu pai. Percebi que ele havia passado do limite, assim como eu.
—Não foi minha culpa— Disse eu para o corpo.
(E ae pessoal, devo continuar? Um detalhe, nessa história tudo está conectado. Se eu fosse vocês iria abrir bem a mente sobre o futuro incerto dos personagens e pulos temporais. Enquanto isso, agradeço imensamente os comentários de vocês porque sem eles eu não poderia nem gostaria de continuar...) (Geomateus, o que quis dizer com isso? )