Até onde a dor pode nos levar?
Essa pergunta se repetia em silêncio, como um sussurro antigo entre as montanhas geladas de Framon. O vento cortava a pele como lâminas finas, assobiando através dos pinheiros esparsos e das rochas cobertas por uma espessa camada de neve. A cada passo, o grupo sentia o peso não apenas do frio, mas das dúvidas e angústias que os acompanhavam desde que partiram.
Mitty já não era o mesmo. O príncipe de Framon carregava em si algo mais sombrio que o céu encoberto: uma voz que arranhava suas entranhas, corroendo sua sanidade. Em sua mente, gritos e comandos se entrelaçavam, como uma serpente se enrolando em torno de sua alma. Ele queria que parasse. Queria silenciar aquilo. Queria sumir.
Enquanto isso, os demais seguiam pelo terreno irregular, lutando contra o frio e a exaustão. Cada pedra solta parecia zombar de suas tentativas de manter o equilíbrio. As botas afundavam na neve, deixando rastros curtos e inseguros.
— Espero que Costa Estrela não seja assim. — Pensou Julius, encolhido dentro do manto improvisado, tentando recuperar o calor com as próprias mãos. O frio o fazia tremer, mas o que o deixava verdadeiramente inquieto vinha de dentro.
Bartolomeu, um pouco atrás, tentava ajeitar o casaco grosso de pele que Catherine criara às pressas.
— Ainda bem que a Catherine conseguiu criar esses agasalhos. — Murmurou, apressando os passos para alcançar o irmão. — Ei, Julius...
— Oi. — Respondeu, sem virar o rosto.
— Vou sentir sua falta. — Contou Bartolomeu, com um tom que escondia medo e ternura. Era como se as palavras quisessem abraçar o irmão antes da separação.
Julius cerrou os olhos, como se tentasse conter algo que doía mais que o frio.
— Você acha que eu vou embora por ser covarde, né? Mas você ouviu o pai. Ele me acha uma vergonha.
— Não. Ele estava chateado. Se coloca no lugar dele... Ele é Celdo Mazzaro. Líder do Centro de Batalha. Mas ainda é nosso pai. — Julius suspirou, resignado.
— Vai ser melhor assim. — Repetia, como se quisesse convencer a si mesmo. — Vai ser melhor assim...
Antes que o silêncio voltasse, um grito rasgou o ar. Mitty caiu de joelhos, as mãos agarrando os cabelos como se pudesse arrancar a dor da mente com os dedos. Seus gritos gelaram mais que o vento.
— Matar! Acabar! Destruir! — Urrava, possuído.
O grupo entrou em alerta. Armas foram erguidas. Catherine arregalou os olhos, pronta para conjurar um escudo. Mas não houve ataque. Apenas agonia.
Klaudo, o sapo humanóide que até então viajava seguro na bolsa criada por Catherine, pulou para fora com agilidade surpreendente, apesar do ambiente inóspito. Seus olhos atentos não piscavam.
— Ele está enfeitiçado. — Explicou com seriedade.
Mitty continuava a se debater, uivando. Num movimento brusco, partiu uma flecha ao meio e guardou a ponta de ferro como uma adaga.
— Mitty, o que está acontecendo? — Bartolomeu questionou, a espada já em mãos, mantendo distância, mas com o olhar fixo no príncipe.
E então, algo dentro de Mitty quebrou. Seus olhos tornaram-se vermelhos como brasas, veias roxas se espalharam por sua pele e sua voz assumiu um tom gutural, selvagem. Com um único impulso, ergueu-se como um animal acuado, pronto para atacar.
— MATAR! — Gritou, investindo contra Julius.
O choque foi rápido demais. Julius tentou conter o príncipe, mas sentiu a dor aguda em sua barriga antes mesmo de entender o que havia acontecido. Caiu de joelhos, surpreso. O sangue começou a escorrer pelas mãos trêmulas.
— Deus... — Murmurou, as palavras carregadas de incredulidade.
Bartolomeu, em um ato desesperado, lançou uma pedra encantada contra Mitty, que tombou inconsciente.
Todos correram até Julius. Catherine, tomada pelo horror e pela dor, canalizou toda sua energia para erguer um acampamento mágico. As tendas brotaram no campo branco como flores desesperadas por calor.
Romeu e Bartolomeu carregaram Julius até uma cama improvisada, tentando manter a calma, embora o pânico estivesse estampado em cada gesto.
Em outra tenda, Catherine prendeu Mitty com correntes de energia arcana. As faíscas mágicas crepitavam como fogo contido.
Mas o terror não terminou ali. Julius começou a vomitar sangue. Catherine folheava seu grimório com mãos trêmulas, os olhos passando pelas palavras sem compreendê-las. Não havia feitiço. Não havia cura. Havia apenas desespero. Klaudo, observando com olhos experientes, se aproximou.
— Existe uma poção. Mas ela exige três ingredientes raros. E talvez... talvez nem funcione.
— Qualquer coisa. — Implorou Bartolomeu, com a voz falha, lágrimas já escorrendo. — Onde encontramos os ingredientes?
— Folha de Salveira, no morro de Framon. Água das ninfas, na floresta de Carlin. E... cabelo de fada. O mais difícil de todos.
— Eu vou. — Disse Bartolomeu, já se levantando.
— Você é só um. São três ingredientes. Ele não tem tempo. — Clarissa se adiantou. — Eu vou também.
— Eu também. — murmurou Catherine, desviando o olhar de Mitty.
Romeu, por sua vez, estava mudo. O guerreiro que jamais hesitava, agora, encarava as próprias mãos como se fossem inúteis. Ele se culpava. Viu o golpe, mas não agiu a tempo. Bartolomeu o sacudiu.
— Romeu. Ei! Julius precisa de você!
— Eu... eu...
Mais uma vez, Julius tossiu sangue. O som do sufoco cortou o ar como um trovão. Romeu correu para seu lado.
— Eu conheço uma poção que pode colocá-lo para dormir. — Informou Klaudo, já mexendo nos frascos e ingredientes do acervo de Catherine.
Julius esticou a mão, buscando a de Romeu.
— Romeu... eu não quero morrer... — Sussurrou, com olhos marejados.
Romeu segurou firme.
— Calma, amor. Vai dar tudo certo. Vai dar certo...
— Klaudo, eu imploro... — A voz de Romeu embargou. — O coloque para dormir.
Klaudo assentiu e se apressou. A noite havia chegado de vez sobre Framon. Mas, para aquele grupo, o frio já não era o maior inimigo.
A dor havia se instalado dentro deles — e parecia determinada a não partir tão cedo.
A tensão pairava como uma névoa densa sobre o acampamento. Não havia tempo para hesitações. Julius agonizava entre a vida e a morte, sua respiração entrecortada, e cada gemido parecia sugar a esperança dos que o cercavam. Três ingredientes. Três caminhos. E uma só chance de salvá-lo.
Bartolomeu foi o primeiro a agir. Determinado e com o rosto franzido pela urgência, virou-se para Catherine, sua voz firme, mas carregada de inquietação.
— Me mande de volta à vila. Preciso de um cavalo. E da folha de Salveira.
Num lampejo mágico, Catherine atendeu ao pedido. Instantes depois, Bartolomeu surgiu sobre o telhado de uma velha casa, no vilarejo que haviam deixado para trás. O frio cortante e a queda brusca o deixaram cambaleante, mas ele não se permitiu fraquejar. Seus olhos varreram o lugar, captando rostos e sussurros, enquanto buscava qualquer informação sobre a tal folha milagrosa. Todos apontaram para a mesma direção: a Montanha Solitária, uma formação rochosa isolada, encoberta por névoas eternas e lendas perigosas.
Com o cavalo emprestado do ancião do vilarejo, Bartolomeu cavalgou sem descanso. A cada galope, a paisagem tornava-se mais desolada, e o vento sussurrava presságios de dor. Sentia-se dividido — salvar Julius era prioridade, mas não podia ignorar a sensação incômoda de que aquilo atrasava a verdadeira missão. Mesmo assim, pressionava os calcanhares contra os flancos do animal. Não haveria perdão se chegasse tarde demais.
Enquanto isso, nos céus tempestuosos de Framon, Clarissa enfrentava os ventos como uma flecha de luz em meio à tormenta. A água sagrada que precisava buscar estava longe, e a tempestade não dava trégua. As nuvens, pesadas e negras, pareciam monstros prontos a engoli-la. Um tufão a alcançou, arrastando seu corpo esguio com violência. Ela girou no ar, perdeu o fôlego, mas se recusou a ceder.
Com esforço, desviou do vórtice e pousou cambaleando à entrada da Floresta Violeta. O cenário era sombrio — árvores retorcidas, folhas púrpuras úmidas com a chuva, e um silêncio sepulcral, quebrado apenas pelo estalar distante de trovões. O medo arranhava sua coragem, mas a lembrança do sorriso de Julius, da esperança em seus olhos, fortaleceu sua determinação. Respirou fundo e adentrou o único caminho visível, passos firmes apesar do tremor em suas mãos.
No acampamento, Catherine se aproximou de Romeu. Havia cansaço em seus olhos, mas também serenidade.
— Fiz uma barreira de proteção para o Mitty. Ele está coberto. Pode fazer uma fogueira perto dele? — Perguntou com gentileza.
Romeu assentiu, embora seu semblante estivesse fechado. Ele ainda segurava a mão de Julius, os olhos fixos no corpo ferido, como se temesse que ele desaparecesse a qualquer instante.
— Vou ver o que posso fazer.
— Sei que está zangado, mas o Mitty está enfeitiçado. Cuide de tudo aqui — Disse Catherine, pousando a mão no ombro do guerreiro antes de desaparecer com um feixe de luz azul.
Romeu apertou os lábios com raiva contida, mas não disse nada. Julius arqueou o corpo de dor, e sangue escorreu de sua boca pela terceira vez.
— Klaudo, a poção! — Gritou Romeu, sua voz embargada.
Klaudo, ofegante e cambaleante, estendeu o frasco de líquido cinzento.
— Está aqui.
Com mãos trêmulas, Romeu segurou a cabeça do amado e verteu a poção entre seus lábios. O efeito foi imediato: os olhos de Julius se reviraram e ele desmaiou, respirando mais lentamente. Romeu chorou em silêncio, aliviado, mas com o coração em cacos. Com cuidado, limpou a ferida e estabilizou a flecha. Não podia tirá-la — Klaudo avisara que isso poderia causar uma hemorragia fatal.
Longe dali, Catherine materializou-se em um redemoinho de partículas prateadas. Seu desejo de estar onde a magia reinava fora atendido, mas não da forma que imaginava. Ela se viu no interior gélido do castelo de Cen, cercada por tapeçarias antigas, paredes de pedra negra e o eco de feitiços adormecidos.
Assustada, escondeu-se atrás de pesadas cortinas na sala de estar. Sua respiração estava rápida, mas ela a controlou com esforço. O castelo exalava poder sombrio e lembranças dolorosas, mas ela sabia o que tinha que fazer. Saiu do esconderijo e começou a explorar o lugar com cautela.
Nas profundezas do castelo, o feiticeiro das trevas entrava em estado de torpor. Exausto após os últimos embates, sua consciência se apagava num sono mágico, deixando Lin, seu aprendiz, à solta.
— Que delícia! — Exclamou Lin, lambendo os dedos sujos de essência de carrapato. — Saboroso...
Catherine se esgueirava por corredores de pedra úmida, os olhos atentos a qualquer movimento. Precisava encontrar o laboratório. Onde mais poderia haver um frasco de cabelo de fada?
Quando ouviu Lin falar sozinha, praguejando animadamente sobre suco de perna de rã e baba de camelo, soube que estava perto. Esperou escondida, até que ele deixou o laboratório com frascos nas mãos. Então, deslizou para dentro.
O ambiente era um caos encantado — frascos fumegantes, livros flutuando, ingredientes grotescos em potes de vidro. Uma prateleira, em especial, chamou sua atenção: antiga, coberta de poeira e etiquetas amareladas.
— Agora. Cabelos de fada. Cabelos de fada... — Murmurava para si, os dedos percorrendo freneticamente os frascos, o coração martelando no peito.
Ali, no castelo do inimigo, em meio a perigos invisíveis, Catherine sabia que cada segundo contava. E que a salvação de Julius dependia do que seus dedos encontrariam a seguir.
As montanhas de Framon estendiam-se como muralhas vivas, vestidas em tons intensos de verde que dançavam sob o vento suave. O céu, de um azul límpido, parecia quase zombar da inquietação que crescia dentro de Bartolomeu. A cada passo do cavalo marrom, o ranger das selas e o som das ferraduras na terra eram os únicos ruídos que o acompanhavam.
Sentado ereto na sela, Bartolomeu mantinha os olhos atentos, mas não conseguia evitar os pensamentos que o levavam de volta ao grupo. Sentia falta das piadas inoportunas de Julius, das provocações de Clarissa, até do olhar crítico de Catherine. O silêncio da jornada pesava, quase sufocante. Sozinho, sentia-se menor, menos invencível.
Ao chegar ao ponto indicado no mapa mágico, uma caverna escura e estreita o aguardava. Era como se a própria montanha guardasse um segredo antigo, prestes a ser desenterrado. Bartolomeu desceu do cavalo com cuidado e embainhou a espada. O cheiro de terra úmida e musgo o envolveu assim que entrou. As paredes da caverna pareciam pulsar, vivas e conscientes da presença dele.
Lá dentro, quase como uma joia protegida pelas trevas, estava ela: a árvore de Salveira. Alta, de tronco prateado, com folhas douradas que brilhavam suavemente no escuro. Um santuário. Bartolomeu sorriu, aliviado.
— Fácil. — Soltou, rindo ao se aproximar. — Como tirar um doce de...
O restante da frase morreu em sua garganta. As folhas começaram a vibrar, dançando ao som de um vento que não existia. Em questão de segundos, algo gigantesco se movia atrás da árvore. Bartolomeu recuou um passo, e o ar ao seu redor pareceu congelar. O chão tremeu quando um dragão surgiu.
Não era como os dos contos de fadas. Era real. Monstruoso. Sem asas. A pele grossa lembrava um crocodilo ancestral, de olhos âmbar que o observavam com uma inteligência selvagem.
— Vocês são reais... — Sussurrou, quase em negação. — Bichinho bonzinho...
O dragão respondeu com um rugido, o suficiente para fazer as paredes da caverna estremecerem. Um jato de fogo cortou o ar, passando rente ao guerreiro, que se jogou para o lado, rolando no chão de pedra.
— Céus! Tá... não vai ser como tirar doce de criança!
Cada respiração vinha acompanhada de suor e adrenalina. Bartolomeu lutava não para vencer, mas para sobreviver.
Enquanto isso, Clarissa enfrentava sua própria provação em meio à floresta encantada. Árvores antigas, com troncos tortuosos e raízes expostas, a cercavam. A luz do sol mal conseguia atravessar as copas densas. Ela andava atenta, quando uma raiz se enroscou em sua bota.
No início, pareceu um tropeço comum — até que os galhos se moveram. Vinham de todas as direções, vivos, famintos. Clarissa sentiu o pânico subir, mas não cedeu.
— Chega!!! — Gritou, os olhos brilhando.
Com um impulso poderoso, ela se lançou ao céu. Flutuava como uma flecha, veloz e determinada. Os galhos tentaram alcançá-la, mas se emaranhavam entre si, derrotados.
Ela pousou em uma clareira banhada pela luz suave do entardecer. Ali, um pequeno lago cristalino refletia o céu alaranjado. Um cervo solitário bebia água na beira, alheio à correria do mundo.
Clarissa se aproximou, com ternura nos olhos.
— Oi, amigo. Será que posso pegar um pouco dessa água? — Disse, rindo ao perceber que falava com um animal.
O riso morreu depressa. O cervo estremeceu e, diante de seus olhos, se transformou em um lobo. Os pelos surgiram como labaredas negras, os olhos brilharam como carvão em brasa. O lobo rosnou, e Clarissa deu um passo atrás. O tempo era curto. Julius precisava dela.
— Eu não posso ter medo. O Julius depende de mim.
Com os pés levemente acima do chão, ela ergueu o frasco vazio. Respirou fundo. E voou. O lobo rosnava, mas esperava. Preparava o bote final.
Clarissa girou no ar, como uma bailarina de guerra. Abriu os braços, e com um movimento preciso, mergulhou o frasco no lago. Água prateada girou lá dentro. Ela escapou no último segundo.
— Isso!!! — gritou, ao ver o lobo uivar antes de desaparecer em direção às montanhas.
A tarefa de Catherine foi a mais simples, mas não menos importante. Em menos de dez minutos, ela segurava um frasco com fios luminosos — cabelos de fada, raros e delicados como esperança.
Mas a tranquilidade durou pouco.
O castelo onde antes reinava o caos, agora era silêncio e sombras. Klaudo havia abandonado seu posto. Lin, entediado, fazia suco. E Cen dormia em seu sarcófago.
Catherine se esgueirou pelos corredores como um fantasma. Seus passos não faziam som. Desceu até as masmorras e parou diante de uma cela. Lá dentro, seus pais e o rei.
Os olhos de Celdo se arregalaram. Melody ofegou. O rei Nilo, desacreditado, ergueu-se com dificuldade.
— Papai, mamãe! — Soltou Catherine, emocionada.
— Não pode ser... minha filha? — Celdo murmurou, apertando sua mão entre as barras.
— O Julius... — Começou ela, a voz trêmula.
— O que houve com meu filho?! — exigiu Melody, aflita.
Catherine respirou fundo e contou tudo. O feitiço. O veneno. A última chance.
— Eu vou tirar vocês daqui.
— Não pode. Só Cen pode abrir essas grades. — Explicou Melody, firme. — Mas há algo que você pode fazer. Pegue a bola de cristal dele. Está na sala principal. Com ela, ele não poderá mais rastrear vocês.
— Filha... — Celdo apertou sua mão, os olhos marejados. — Diga ao Julius que... que todas as palavras duras foram ditas da boca pra fora. Eu o amo. Não importa quem ele ame.
— Eu direi, papai. Eu juro.
Catherine afastou-se aos prantos, mas determinada. As lágrimas escorriam, sim — mas seus passos não vacilaram. Ela estava pronta para salvar o irmão. E nada, nem magia negra, nem feras, nem dor, a impediria.
A caverna respirava um silêncio pesado, cortado apenas pelo som cavo das garras do dragão arranhando a pedra. Umidade escorria pelas paredes escuras como lágrimas esquecidas pelo tempo. Bartolomeu se movia como uma sombra, atento a cada som, a cada tremor do chão, como se a própria montanha pudesse traí-lo.
Era um jogo de gato e rato, e Bartolomeu sabia que um erro o transformaria em cinzas.
No entanto, havia um brilho nos olhos do garoto, o mesmo de quando corria pelas planícies ao lado de Julius, fingindo que eram cavaleiros lendários derrotando dragões de papelão. Em meio ao perigo real, ele sorriu.
— O Julius vai ficar maluco quando eu contar. — Pensou, antes de lançar uma pedra para o lado oposto da caverna.
O estrondo ecoou como um trovão abafado. O dragão girou o pescoço num movimento brusco, os olhos faiscando com fúria. Bartolomeu aproveitou a brecha, correu até a árvore prateada no centro da caverna e arrancou as folhas com dedos trêmulos.
— Desculpa, seu dragão, mas um grande admirador seu precisa dessas folhas.
Enquanto fugia, o chão estremeceu com o rugido da criatura. Pedras se soltaram do teto, rachando no impacto contra o chão. Uma rajada de fogo passou a poucos metros de Bartolomeu, tingindo as sombras com um vermelho ameaçador. Mas ele escapou. Inteiro. Vivo.
Lá fora, o sol espalhava seus raios sobre um vasto campo verde. Bartolomeu montou em seu cavalo, o vento empurrando seus cabelos para trás como um chamado à liberdade.
— Vamos! Precisamos ir, rápido!
As montanhas de Framon recebiam os primeiros flocos de neve, que caíam lentos e indiferentes, cobrindo o solo de branco como se quisessem apagar os passos de quem ali havia passado. Mas o frio não conseguia calar os gritos do príncipe Mitty, que debatia-se em sua cama, possuído pelo feitiço de Catherine.
Seus olhos pareciam não ver, sua boca pronunciava nomes com desespero: “Julius”, “Romeu”... as palavras saíam misturadas ao medo. Klaudo observava, impotente, o corpo do jovem príncipe contorcer-se sob o peso de uma magia que vinha das profundezas da alma.
— Esse feitiço é forte. — Disse Klaudo, com a voz embargada, enquanto colocava um pano quente sobre a testa de Julius, que repousava em silêncio ao lado.
Ao seu lado, Romeu segurava a mão do amado, seus olhos marejados. A dor da impotência pesava mais do que qualquer inverno.
— Não é só o feitiço. Ele já não gostava muito da gente. Sabe, Klaudo, o Julius é o amor da minha vida. Eu fui o primeiro homem que colocou os olhos sobre ele. Desde esse dia, jurei que o protegeria. E aqui estou eu, um verdadeiro zero à esquerda...
— Romeu. — Klaudo aproximou-se. — O amor de vocês é puro. Não precisa de magia para perceber isso. A opinião dos outros sempre nos afetará de um jeito ou de outro. Infelizmente, o que é diferente assusta. O amor pode sobreviver a tudo, inclusive, ao tempo.
Mas suas palavras foram interrompidas por um chiado abafado. Julius respirava com dificuldade. Klaudo correu até o caldeirão, os olhos atentos ao líquido que ali fervia. Era hora.
Clarissa foi a primeira a surgir, envolta em um manto azul-claro coberto de neve. Em suas mãos, o frasco reluzente com a água das ninfas parecia pulsar como um coração.
— Trouxe o que pediu. — Avisou ela, ofegante.
Klaudo pegou o frasco com cuidado e despejou o conteúdo no caldeirão. As águas borbulhavam como se ganhassem consciência. Logo em seguida, Catherine atravessou o véu da tenda, com olhos determinados e um objeto nas mãos.
— Aqui. Os cabelos de fada. — Disse, estendendo-os para Klaudo. Em seu outro braço, uma esfera brilhante, carregada de magia — a bola de cristal roubada de Cen.
— Pronto. Agora falta só o seu Bartolomeu. — Klaudo comentou, concentrado.
— Não mais. — Respondeu Catherine, fechando os olhos. Seu desejo atravessou planos, chamando o irmão até ali.
Um clarão, um estrondo.
— AAAAAHHHH! — Gritou Bartolomeu, caindo sentado no chão da tenda, ofegante.
— Cadê?! — Catherine se aproximou de imediato.
— Doeu. — Reclamou ele, mas entregou as folhas preciosas.
— Rápido, Klaudo. Faça essa maldita poção. — Implorou Romeu.
As mãos do monstrinho voaram como se tivessem vida própria. Em segundos, a mistura ganhou cor, cheiro e força. Klaudo pegou uma pequena concha e levou o líquido até os lábios de Julius.
O silêncio caiu sobre a tenda. Todos observavam. Um minuto. Dois. Então, Julius estremeceu. Seus olhos se abriram, confusos, como se despertassem de um pesadelo distante.
— Onde estou?
— Amor... graças aos céus... Você está bem. Isso que importa. — Romeu apertou-lhe as mãos e as beijou com ternura.
Bartolomeu se aproximou, os olhos marejados.
— Nunca mais faça isso. — Pediu, apertando o ombro do irmão com força.
A cura parecia um milagre. Julius se sentou com a ajuda de Romeu. Klaudo, animado, pediu que ele levantasse a blusa de linho. O ferimento — antes uma chaga escura — agora cicatrizava em ritmo acelerado. A esperança era visível nos olhos de todos.
Clarissa, mais prática, rompeu o momento.
— Agora, a pergunta que não quer calar. E o que vamos fazer com o Mitty?
— Não podemos deixá-lo sozinho. Ele vai congelar. — Julius respondeu, olhando para a porta com preocupação. Bartolomeu pigarreou.
— Gente, antes de resolvermos isso. — Anunciou Catherine. — Tenho duas coisas para contar. Primeiro: encontrei os nossos pais.
— E como eles estão? — Julius endireitou-se, o coração disparado.
— Bem. Cen não fez nada com eles. Estão presos na torre do castelo. Eu consegui chegar lá.
— E por que não os libertou? — questionou Bartolomeu.
— Cen. — Klaudo respondeu antes que ela pudesse. — Só ele pode abrir as portas do calabouço.
Enquanto limpava os frascos usados, Klaudo parou por um instante. Julius o abraçou com força.
— Eu não te agradeci por salvar a minha vida.
— Catherine — disse Bartolomeu, voltando-se para a irmã. — Qual é a segunda novidade?
Longe dali, no interior sombrio do castelo de Cen, trovões ecoavam em fúria. O feiticeiro despertou em sobressalto. Seu corpo parecia saber que algo fugia de seu controle.
Caminhou até o salão principal. A luz do luar entrava pelas janelas, iluminando um altar vazio.
A bola de cristal havia sumido.
— Cadê a bola de cristal?! — Seu grito ecoou como um trovão. O céu respondeu com relâmpagos que atingiram as torres do castelo. Lin apareceu hesitante à porta.
— Eu... não sei.
— Esses bastardos vão me pagar bem caro. É a guerra que eles querem. É a guerra que eles vão ter!!! — Rugiu Cen, abrindo uma gaveta selada com símbolos antigos. Ali dentro, dormia o que restava de sua última esperança. — Dessa vez, eu não vou errar.