Nos primeiros dias daquela semana nao vi Mauricio, o cara simplesmente sumiu, nao telefonava e nem atendia minhas chamadas. Pensei em ir ate á casa dele, ao menos para saber se ainda estava vivo, contudo desisti dessa ideia, pressentindo que ele impusera aquela distancia ao farrapo que era nosso relacionamento. Devia estar aprontando alguma coisa pelas minhas costas, e embora eu nao me importasse mais com nossa relaçao, sentia raiva por ser feito de idiota mais uma vez.
Minha atençao estava voltada para Fabinho, para seu restabelecimento. Apos a agressao e o trauma, ele ainda ficou uns dois dias desanimado, sem levantar da cama, o corpo um pouco dolorido; soube dele que Renato tinha fugido da cidade, que os pais mandaram-no de aviao para Sergipe, onde tinham parentes. Assim mesmo o processo fora aberto apos prestarem queixa.
No terceiro dia em que fui visitar o maluquinho jà o encontrei mais disposto, diligente, terminando de organizar o proprio quarto ao som do rádio FM. Vestia uma roupa de um desleixo sensual, um shorts de praia curto, preto, e blusao de moletom largo e liso, na cor cinza-claro.
- Parece que alguem aqui esqueceu que tem namorado _ disse ele, sorrindo e arrumando suas pilhas de gibis.
- Acho que ele esqueceu, na verdade _ falei aborrecido, sentando-me na cadeira giratoria da escrivaninha _ Estou pouco me lixando para aquele cara. Aposto como esta prazerosamente ocupado e sequer se lembra de mim.
- Realmente, foi muito desnecessario voce passar por mais essa humilhaçao dolorosa _ disse ele, terminando sua organizaçao e sentando-se no tapete; apoiou os braços nos joelhos dobrados e o rosto sobre a mao, me olhando; suas pernas brancas e de pelos lourinhos exibiam -se quase que completamente de dentro do shorts curto e lembrei entao do desejo dele em ser o ativo comigo; senti um arrepio de desejo _ Voce foi muito teimoso, Nathan. Quis tirar a prova e quem tirou uma com a sua cara foi ele.
- Eu sei _ suspirei _ Mas nao vim aqui para isso, para falar nesse imbecil... Olha, fiquei contente em te ver bem disposto, de bom humor... Vida que segue, meu querido.
- Ninguem derruba essa bicha aqui! _ ele riu, se levantando num salto, todo entusiasmado, e se jogando na cama, no colchao que pulou chacoalhando; ajeitou-se nos travesseiros, encostado à cabeceira, e pegou do criado -mudo o seu livro de Balzac _ Vem cà, Nathan.
- Seus pais podem chegar, e eu acabei de sair do trabalho, preciso ir embora...
- Que nada! Eles estao em reuniao. Quase todos os dias agora _ ele pegou os oculos de grau da gavetinha do criado _ As açoes da empresa nao estao là essas coisas, voce sabe...
Ele usava oculos apenas para leitura, um modelo de armaçao prateada, muito fina e delicada, lentes grandes e arredondadas. Ao lado dele na cama eu o observava, admirando o modo como seus cabelos lisos e claros caiam sobre sua testa, como seus olhos brilhantes seguiam as linhas do livro devagar e atentamente, como um leitor aplicado. Branquinho, com o arroxeado do soco no rosto clareando gradativamente, os làbios pequenos, rosados, entreabertos. A saliva dele tinha sempre um gosto levemente salgado, mas era fluida, sem espuma; agua de um rio jovem, dourado de sol. Quantas vezes minha alma nao esteve cega face à beleza dele? Quantas vezes meu corpo e minha mente nao clamaram por Mauricio, quando, nos ultimos tempos, minha alma queria outra coisa? Eram duas consciencias vivendo juntas, e ambas digladiando entre si, no seu egoismo imaturo.
Cheguei mais perto, olhando-o, e ele sorriu com o canto da boca. O radio tocava Simply Red, "If You Don't Know Me By Now"; eu nao trocava a voz suave do meu amado Morrissey por nada nesse mundo, porem ali, olhando o meu maluquinho, aquela musica e sua letra calhava tao bem, a melodia leve e sensual enchia o quarto. Beijei Fabinho no rosto e ele sorriu outra vez, fechando o livro, tirando os oculos e os pondo sobre o criado. Virou-se e ficou longo tempo me fitando de pertinho, tao perto que eu enxergava os menores detalhes de seu rosto, como por uma lente de aumento.
- O que passa nessa cabecinha teimosa? _ ele riu, preguiçosamente _ Ou... na outra...
- Tontinho _ dei risada, alisando seu rosto com os dedos _ Estava me dando conta de algumas coisas...
- Nao me diga! _ disse, ironico.
- Estou falando serio _ sussurrei, meio atrapalhado _ Eu gosto muito de voce... Na verdade, amo...
- Que raiva de voce, sua bicha tonta, cega, teimosa! _ ele exclamou, tentando me estapear seriamente, para meu espanto; mas segurei seus braços, virando sobre ele e encarando seu semblante irritado, ofegante _ Voce, Nathan, seria tao burro ao ponto de usar uma roupa velha e rasgada tendo outra nova e bonita no armàrio... E tao cego que correria os olhos por todo seu armario e nao veria essas peças novas, vestindo as velhas... E tao tonto que iria perceber isso mais tarde, mas nao daria importancia... E tao teimoso que nao jogaria a roupa velha fora... Nao ria de mim!
- Eu te adoro, maluquinho _ falei, me inclinando e tentando beijà-lo, porem ele virou o rosto.
- Nao. Voce namora _ murmurou, corando, ainda irritado _ Acabe com isso primeiro.
- Tem razao _ suspirei, saindo de cima dele e olhando as horas _ Tenho que ir. Tchau.
Aproximei-me da porta para ir embora, mas ele me saltou às costas, me abraçando com força num sussurro umido em meu ouvido.
- Joga fora aquela roupa velha, depressa!
- Pode dexar _ sorri, olhando-o; ele retribuiu o sorriso, me beijando o pescoço devagar e se afastando, saltando no colchao outra vez.
Nao precisou grande esforço para dar fim àquela minha esquisita relaçao com Mauricio, pois assim que cheguei em casa na tarde do dia seguinte o encontrei à minha espera, na rua em frente ao edificio, sem querer subir. Aquilo me pareceu um recado claro. Estava encostado em seu Monza e, assim que desci da moto, vi William sair de dentro do carro, furioso, avançando para mim. Mas Mauricio o segurou, irritado.
- Voce prometeu que nao ia bater nele! _ exclamou.
- Vai defender essa bicha idiota? _ o outro me olhava, espumando como um cachorro preso na corrente.
- Voce prometeu, caramba! Honre a merda da tua palavra! _ disse Mauricio severo, e me olhou _ Sinto ter essa conversa aqui na rua, na sua porta, Nathan, mas... nao vi jeito de subirmos ao seu apartamento... Queria dizer que...
- Que ele voltou para mim! _ William interrompeu, exultante, me provocando _ Eu nao disse? Ninguem toma o que me pertence, garoto, aprenda! Ele precisa de um homem de verdade, que o ama, e nao...
- Cala a boca, William! _ gritou Mauricio; olhou para os lados: a rua estava com movimento razoavel para o horàrio, algumas pessoas passavam nos olhando e um homem barrigudo, encostado numa Brasilia, ria enquanto fumava, nos observando.
Eu encarava aqueles dois ordinarios com um desprezo misturado à raiva. Que casal de canalhas! Feitos um para o outro...
- Entendi tudo! _ falei, irritado _ Nao tem que me explicar! Que sejam muito infelizes juntos, que aproveitem! Estou fora dessa palhaçada. E voce, Mauricio, saiu da minha vida na hora certa, parece ate coisa encomendada... Que dessa vez voce suma de uma vez por todas!
Preparei-me para subir ao apartamento.
- Ainda pego voce na porrada, bichinha desgraçada! _ exclamou William.
- Tente pegar seu namorado no flagra _ falei, sorrindo altivo _ Nao sou eu quem dà para o namorado dos outros dentro de bibliotecas...
Entrei no saguao com um singular sentimento de vitoria, como o alivio que sentimos ao livrarmo-nos de trastes e coisas velhas acumuladas no porao. Como na musica do Belchior que ouvi outro dia no ràdio, " o passado e' uma roupa que nao serve mais".
*
*
*
*
Ah, galera, muito obrigada, viu? As opinioes de voces sao mega importantes :)
Um forte abraço em cada um!