Evento de efeito reverso
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Especial para a "Casa dos Contos".
PIFÔNIO DENTADURA CHEGOU NO APARTAMENTO mais quebrado que bagaço de cana. Não andava, capengava. Todo torto, a carroceria corrida, dava a impressão de ter sido esmagado por um trator. Ao vê-lo naquele estado, Xingau o amigo com quem dividia as despesas de moradia, correu a acudi-lo:
- O que houve com você?
- Nada, cara. Nada.
- Como, nada? Parece que um Pit-Bull te rasgou da cabeça aos pés!
- Mais essa. Estou fedendo a cachorro?
- Claro que não!
- Acaso estou me coçando como se estivesse cheio de pulgas?
Xingau tentou acalmar o companheiro:
- Pelo amor de Deus, Pifônio. É apenas uma maneira de expressar.
- Desculpe. Não estou no meu melhor momento. Só quero cair na cama e apagar.
- Antes me conta o que houve! Algum problema lá no quartel?
- Não, tudo bem.
- E por que sumiu uma semana? Aprontou alguma? Estava preso?
- Quem dera! Estive internado!
- Já sei. Não foi bem nos exercícios. Ferrou a carcaça de verde e amarelo nos testes de sobrevivência?
- Engano seu. Correu tudo às mil.
- Não é o que parece. Se tudo estava nos conformes, por que voltou em pandarecos? Olhe para você, meu camarada... Parece um velho de cem anos nas costas.
Pifônio se deixou cair no sofá e começou a chorar. Parecia um garoto que acabara de perder um brinquedo de estimação e queria urgente o aconchego de um colo de mãe.
- Fale homem, rasgue o verbo. Sou seu amigo.
- Prometa que não rirá de mim e o que vou contar não sairá destas quatro paredes.
- Prometo!
- Jure.
- Juro!
- Jure por Deus.
- Juro por Deus.
- Junte os dedinhos em forma de cruz e beije.
Xingau fechou o rosto numa carranca:
- Está duvidando de mim? Qual é meu?
- Faça o que estou pedindo ou não direi uma só palavra.
- Ta legal. Juro por Deus. Podemos ir em frente agora?
Pifônio se ajeitou tirando os sapatos e recostando a cabeça num dos braços do assento. Esses gestos lhe arrancaram urros de dor.
- Tem certeza de que não quer ir ao pronto socorro?
- Não, seu idiota. Acabei de sair do hospital. Agora me escute. O sargento Punhetinha, que comanda a minha tropa cismou com a minha cara. Desde o dia em que nos vimos pela primeira vez, logo na formação do regimento. O desgraçado vem tentando me prejudicar de todas as maneiras com o coronel Boró Curumé. Desta vez, o desgraçado conseguiu.
- O que foi que esse infeliz aprontou?
- Me chamou na sala dele, depois que saí do refeitório. Assim que me apresentei, pediu que o acompanhasse até o alojamento dos oficiais. Não vi mal nenhum. Chegando lá, entramos em seu quarto. Os graduados têm essas regalias. Aposentos com banheiros separados, TV, net, chuveiro quentePula essa partePunhetinha trancou a porta e me pediu que tirasse a farda.
- E para quê?
- Calma, eu chego lá.
- O que você fez?
- Ora bolas. Tirei. Afinal de contas, o sujeito é meu superior.
- Sei. E você, enquanto se despia, não procurou descobrir o motivo desse gesto estranho?
- Claro, mas Punhetinha foi imparcial: “tire essa porra de farda logo e não faça perguntas”. Pois bem: fiquei como vim ao mundoE...?
-... Nesse momento alguém bateu. Ele correu abrir. Sem que eu tivesse tempo de me tampar com alguma coisa, uma galera varou porta adentro. Na frente da leva, encabeçando, nada mais que o coronel Boró Curumé em pessoa. Tudo havia sido combinado as minhas costas. Pura armação. Tomei conhecimento da merda depois de ter caído como patinho.
- E com que intenção o desgraçado agiu dessa forma vil e infame?
- O objetivo maior, meu prezado, me prejudicar. Ele me odeia. Na verdade, me detesta. O coronel Boró perguntou o que se passava e ele, pasme o sargento Punhetinha, na maior, respondeu que eu o vinha assediando há tempos. Vê se pode! Inventou que eu fora até o quarto dele para... Esquece. Não quero mais lembrar daquela cena. Passou! O coronel Boró me pegou pelo pescoço e explodiu cheio de raiva: - “O exército não admite pederastas em suas fileiras. Vista sua roupa de civil e vaza. Quero você no meu gabinete em dois minutos”.
- Estou de queixo caído...!
- A melhor parte vem agora. Assim que o coronel virou as costas, a rapaziada se achegou ao sargento. Todos riam como se estivessem diante de um palhaço. Na verdade, eu era o bobo da corte.
-... “Mocinha” -, disse o sargento em tom malicioso. – “Posso dar um jeito de você continuar aqui. Contudo, existe um pequeno detalhezinho. Uma condição. Terá que nos ajudar para sermos bonzinhos com você...”.
- “Bonzinho?” – Balbuciei numa interrogação muda. – “O que o senhor quer que eu faça?”.
- “Como veio me propor deitar com você, e eu me recusei... A meninada está de prova... A gente quer que nos faça um favorzinho. Em troca, eu converso com o coronel e tudo volta ao normal. Pense na sua família. Se você for pro olho da rua, como de fato irá, sua ficha ficará suja. Mais que pau de galinheiro. Sem contar com o fato de que todo mundo saberá da verdade e...
Desandei em lágrimas de terror e desespero.
- O que é que eu preciso fazer sargento Punhetinha? - Consegui finalmente soltar o que restava da voz. – Pelo amor de Deus, fale de uma vez!
Sargento Punhetinha de maneira curta e grossa concluiu:
- Dar.
- Dar?... Dar o quê? Não tenho nada que lhe interesse...
- Não se faça de besta, mocinha. Queremos o seu caneco...”.
Gelei. Entrei em pânico. Meus pés sumiram. Fiquei cego. A tropa em peso estava ali. Ao todo, meu brother, ao todo, dezoito.
- Pelo visto você deu um piti e pagou geral. Encarou os filhos da puta na porrada. E como estavam em maioria, se deu mal. Levou a pior. Ao invés de bater, apanhou mais que tapete em dia de limpeza. Isso explica ter ficado internado. Diz ai, meu herói: quebrou a fuça de quantos?
- Você não entendeu. Não quebrei a fuça de ninguém. Eu me vi sem saída, num beco cheio de leões famintos. O que poderia fazer? E depois, que decepção para meus pais, meus irmãos, meus amigos e para Bebel, minha namorada?
- Você não fez o que estou pensando! Diga que está zoando comigo... Certo?
- Errado. Fiz sim Xingau. Eu dei. Dei com força. Liberei meu furisco pro batalhão inteiro. Me senti como aquela ave solitária, indo, indefesa, para um bando de répteis asquerosos que a iria devorar.
- Isso é... Isso é horrível!
- Bota horrível nisso. Por mal dos pecados, o último recruta, um negrão metido a gostoso, na hora agá, fez tanta palhaçada, que a camisinha estourou. Acabou gozando dentro...
Xingau não se conteve com essa revelação. Ao invés de se solidarizar com companheiro, por tamanha asquerosidade e safadeza, caiu numa estrondosa gargalhada. Pifônio se enfureceu:
- Do que está rindo?
- Do negrão. A camisinha não agüentou o tranco? Será que você não corre o risco de ter engravidado e dar à luz daqui a nove meses a um lindo bacurizinho?
Pifônio Dentadura embora estivesse aos cacos, como impulsionado por molas, saltou do sofá igual fera faminta e partiu com tudo para cima do amigo. Mesmo desengonçado e alquebrado, cuspindo marimbondos a torto e a direito, desceu o braço com vontade, com força, ódio e gana. Só não acabou com a raça de Xingau, porque os gritos do desditoso chamaram a atenção de outros residentes, que acorreram apavorados e botaram a porta da quitinete abaixo desapartando os dois.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 62 anos, é jornalista.