Fiquei no carro por bastante tempo, eu acho. Perdi a noção da realidade.
Não queria entrar pela porta de casa e encontrar com o olhar de raiva ou de tristeza do Dani. Queria poder voltar no tempo e resolver aquela situação.
Minha mão já não doia, mas eu sentia um desespero no meu coração. Eu já não seria o mesmo pro Dani... ele não iria mais me enxergar com os mesmos olhos.
Antes, quando ele olhava pra mim, eu via segurança, satisfação, afeto, paixão no seu olhar. Ele se sentia protegido, amado do meu lado.
Mas e agora? Eu nem sabia se ainda éramos namorados! Ele talvez quisesse distância de mim! O que ele sentia?
Soltei um grunhido ao lembrar daquele olhar raivoso e aquele sorriso malvado na face dele. Ele me odiava! Me odiava porque eu era igual ao pai dele...
Eu não era! Eu... eu o amava! Ele só ouviu coisas desnecessárias. Eu jamais iria forçá-lo a nada. Jamais iria machucá-lo. Primeiro o prazer dele, pra depois o meu.
Eu só faria essa proposta depois de ter certeza que ele não agiria da mesma maneira que ele agiu quando escutou a conversa. Queria ter certeza que ele não surtaria... mas falhei nisso.
Eu prometi a mim mesmo cuidar dele, fazê-lo feliz... amá-lo e respeitá-lo acima de tudo, porque era o mínimo que ele merecia.
Será que falhei com ele? Sim! Falhei.
Liguei o carro e o coloquei na garagem de casa, porque já era tarde. O sol já havia se retirado e estrelas bordavam o céu. A lua jogava aquele brilho prateado sobre tudo, o que me fez ficar mais melancólico.
Saí da garagem e contornei a casa pra entrar pela porta da frente. A abri devagar e adentrei procurando algum sinal de qualquer coisa que fosse.
Suspirei e fui até a cozinha pra tomar um copo d'água.
O silêncio da casa era perturbador. Podia ouvir o som do meu coração batendo pelo silêncio palpável. As luzes estavam apagas e achei melhor as deixar assim.
Tomei a água e subi as escadas. Nenhum ruído na casa toda, além dos meus passos ecoando. Parecia que não havia ninguém, mas então ouvi o chuveiro da suíte ligado quando passei pelo quarto. O Dani deveria ter ido tomar um banho.
Entrei discretamente no quarto e retirei algumas roupas. Não queria desconfortá-lo ainda mais com minha presença. Deixaria pro outro dia o embate inevitável. Saí e fui até o banheiro do quarto de hospedes para tomar outro banho.
Não porque estava sujo, mas porque me sentia sujo. Estava com nojo de mim mesmo por ter desejos tão repulsivos para com o Dani, levando em consideração todo o abuso que ele sofria. Mas eu não podia evitar ter desejos assim...
A água quente desceu em uma cachoeira escaldante sobre meu corpo. Minha mão machucada queimou como se a água fosse ácido e o sangue escorreu ralo abaixo.
Depois de alguns minutos no banheiro, saí novamente vestido e com o cabelo molhado do banho.
Soltei um soluço surpreso quando vi o Dani sentado na cama do quarto, vestindo as roupas que compramos no shopping.
Ele não estava com uma camiseta minha e esse fato subliminar não passou despercebido por mim. Meu cheiro devia causar ânsia nele. Isso pareceu uma faca na minhas costas.
Seus olhos estavam inexpressivos e neutros. Não havia nada neles... nem raiva nem afeto. Apenas aquela imensidão esverdeada e neutra.
Cabelos molhados do banho recente, presos em uma fita. Fiquei tentado a desfazer aquele laço e enfiar meu rosto naqueles cabelos para aspirar seu cheiro.
Estava sexy! Mas ele ficaria sexy até mesmo com um saco de lixo enrolado no corpo.
Seu rosto era uma máscara neutra também, mas notei os contornos vermelhos à volta dos olhos. Quis morrer quando percebi que ele também estava chorando. Eu era um filho da puta asquerozo!
Ele se levantou devagar e caminhou na minha direção. Arregalei os olhos em cada passo. Prendi o fôlego quando ele tocou no meu braço e me puxou até a cama. Deixei-me ser guiado e sentei quando ele me deu um empurrão delicado.
Então notei o quite de primeiros socorros que havia na casa, ali, na cama com ele.
O Dani pegou minha mão machucada e sentou-se do meu lado, colocando minha mão no seu colo.
Daniel não olhou nos meus olhos nem um segundo. Eu nem sentia aquela pulsação magnética que nos atraia. Não senti ligação nenhuma.
Ele abriu a caixa e tirou dali os utensílios e materias que usaria.
Colocou a água oxigenada em um algodão e limpou meu punho com delicadeza. Não ardeu... o toque dele em mim me deixou em êxtase.
Depois colocou um pano em volta e abriu o esparadrapo para cobrir o pano.
Depois de feito ele guardou tudo e se colocou de pé. Virou-se de costas pra mim e foi até a porta.
-Não estou bravo nem tenho raiva de você, senhor Lopes. -sua voz estava muito rouca. -Só estou confuso e preciso de tempo. Não está sendo fácil pra mim. -sua voz engrossou mais ainda e percebi que ele iria chorar. -Só preciso de tempo. Uns dias pra pensar. Só peço isso ao senhor.
E saiu do quarto limpando as lágrimas.
Fiquei ali olhando para porta, sentindo uma vontade enorme de vomitar. Que tipo de monstro eu era?
Feri a pessoa que eu mais amei nesse mundo... e feri por um capricho!
Me odiava!
...
As nossas pequenas férias se tornaram um inferno.
O dia seguinte a nossa briga eu não vi o Dani um minuto sequer no dia todo.
Batia na porta e pedia pra entrar, mas ele apenas dizia que queria ficar sozinho.
Eu, contrariado e infeliz, voltava pro quarto procurando alguma coisa que o tirasse de lá ou que melhorasse o espírito dele.
O chamei pra passear, ir ao shopping, na praia, comer algo... nada! Nenhuma reação.
Ele só queria pensar e ficar sozinho.
No segundo dia ele saiu do quarto com uma expressão que eu jamais tinha visto. Ele estava com olheiras enormes de quem não dormia a dias e com uma expressão horrível.
Perguntei a ele se ele estava bem enquanto o via tomar um copo d'água na cozinha e ele me respondeu sem me olhar:
-Estou tão bem quanto a situação me permite estar.
Senti o tapa da resposta em cheio.
No terceiro dia eu já não aguentava mais aquilo. Não podia tocá-lo nem conversar com ele. Ele apenas dizia um "sinto muito" quando se afastava de mim e se trancava no quarto.
Eu estava a ponto de rastejar aos pés dele e implorar que ele me perdoasse. Eu já não dormia direito e também não comia... assim como ele.
Fui até o quarto e bati na porta. Ele novamente me recusou e eu pedi que ele abrisse.
-Por favor, vá embora.
-Daniel, abre a porta!
-O que você quer?
-Quero conversar com você! Dani... por favor. Eu não aguento mais! Eu não aguento mais! Me deixa entrar!
-Vá embora.
Respirei profundamente e não consegui segurar meus impulsos. Arrombei a porta com um chute e me deparei com um Daniel só de cueca, chorando e pintando.
Sua expressão continuava a mesma e ele empunhava o pincel enquanto dos seus olhos vermelhos e inchados escorriam água. Parecia que havia levado um choque quando o vi em tão vunerável situação.
Havia dezenas de quadros espalhados pelo quarto todo e a cama continuava arrumada. Ele não havia nem sentado na cama, quem dera dormido. Ele estava a três dias sem dormir!
-Dani, o quê...? -comecei a perguntar então soltei um "ahhh!" de horror quando vi o conteúdo das pinturas.
Se eu tivesse comido algo, com certeza teria vomitado tudo que havia no meu estômago.
Neguei com a cabeça em desespero enquanto via pintura a pintura.
As pinturas, todas, eram sobre ele e o pai dele. Todas!
Em uma pintura o pai dele o estava penetrando com força enquanto ele estava com um pano preso à volta da boca pra não gritar. Em outra ele estava sofrendo uma dupla penetração do pai e de um tio, eu supus, pela aparência. Em outra ele estava sendo espancado... mordido... em outras ele estava sofrendo uma convulsão e o pai dele batia nele com um cinto enquanto ria.
Cobri a boca com mais força quando um grito de incredulidade e horror quis escapar. Olhei novamente pra ele com um horror que eu jamais pensei sentir.
-O que eu fiz com você, meu amor? -senti minhas próprias lágrimas caindo dos meus olhos.
Ele olhou pro quadro que estava pintando e depois olhou novamente pra mim.
-Ele disse que eu não mereço ser amado. -sua voz estava infantil. Como se ele tivesse cinco anos de idade. Daniel estava delirando. -Eu sou tão inútil quanto ele disse que sou, senhor Lopes? Será que não mereço o amor dele?
Dani voltou a pintar. As lágrimas caiam dos seus olhos como um rio. Suas mãos tremiam e seu queixo também. O quadro que ele pintava ilustrava o pai dele o violentando com um pedaço de madeira.
Me inclinei e senti meu corpo se convuncionar em várias ânsias. Mas não havia nada pra vomitar. Quis que tudo aquilo fosse um sonho ruim. Que quando eu acordasse eu teria o anjo mais lindo do universo em cima de mim, com o rosto no meu pescoço e o meu rosto no seu pescoço.
Levantei os olhos e o Dani continuava pintando. A voz infantil dele me dizia que ele estava sofrendo uma alucinação... que ele estava realmente delirando.
-Eu sou tão fácil de ser amado. Sei que sou. Eu sou um garoto bom. -sua cabeça se balançava em afirmação, infantilmente. -Sou um garoto bom. O garoto bom do papai. -sua voz começou a mudar pra um tom mais grave. -O garoto sujo do papai. O puto do papai.
Ele riu e eu senti um medo que jamais havia sentido. Meu Daniel havia sumido. Aquele ser na minha frente não era ele.
Daniel pegou o quadro na mão e o jogou na parade. Ele soltou outra risada e pegou outro quadro.
Ele destruir tudo que via pela frente enquanto gritava em uivos horríveis frases como: "Sou o viadinho inútil do papai!", "Sou o imundo imprestável do papai!", "Sou o putinho rabudo do papai!"
Não conseguia mover um musculo pra fazer qualquer coisa. Assisti a verdadeira identidade do amor da minha vida. Assisti ele se tornar a pessoa traumatizada que o pai dele o transformou.
Fiquei em um canto vendo-o destruir seus quadros e destruindo a si mesmo. Só consegui chorar e assisti-lo.
Então, do nada, ele parou com um quadro na mão. Estava de costas pra mim, olhando para fora. Eu ouvia, mesmo de longe a respiração dele.
Largou o quadro e disse: "Eu não sou nada!"
E desmaiou.