Conflitos de conversação
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Especialmente para "Casa dos Contos".
O telefone toca insistentemente até que o rapaz que está ao lado dele, ocupado, pregando um fio na parede atende a ligação.
— Bom dia! O senhor tem aí Venocur Triplex DRG CT/6X10? E quanto é?
— Quem fala, por favor?
— Odair.
— De onde?
— Da “Zizinha”. Sou marido da “Zizinha”. - Lembrou, agora?
— “Zizinha?!” - Que “Zizinha?”
— Mãe da Elizabete, - A “Loira...”
— Elizabete?
— Isso, irmã da Valdirene, - A “Chorona”.
— “Chorona?!" “Loira?!” “Zizinha...?!”
— Meu Deus! Quem está falando?
— Pedro Propionato de Clobetasol.
— Como?
— Pedro! Pedro Propionato de Clobetasol.
— Que diabo de nome mais desgraçado esse seu, meu amigo. Por acaso é da farmácia do Trombofob?
— Perfeitamente.
— E o senhor, quem é?
— Já lhe disse: Pedro Propio...
—... Eu sei, eu sei. Não precisa repetir tudo de novo.
— O companheiro está nervoso. Quer falar com quem?
— Droga. Aí não é da farmácia?
— Falei para o senhor, não tem dois segundos que, sim. É da farmácia...
— Cadê o Trombofob?
— Está atendendo um freguês. Quer aguardar só um instantinho?
— Merda...
— Isso fede!
— Como, cavalheiro?
— Desculpe, pensei alto.
— Me chama o infeliz do Trombofob...
—... Meu senhor, ele está no balcão, atendendo um freguês. Não pode esperar?
— E o senhor saberia dizer, enquanto espero se já chegou o Venocur Triplex DRG CT/6X10?
— Não, meu amigo.
— Que saco! Afinal, quem é o senhor?
— Pela última vez: Pedro Propionato de Clobetasol. Satisfeito?
— Não grite! Sou bom de ouvido. Passe o Trombofob ou vou desligar essa bosta.
— Faço isso para o senhor com todo prazer. Passo para o Trombofob, mas veja bem, sem a bosta.
— Cidadão, por gentileza, pare de me faltar com o respeito. Sou cliente dessa espelunca, há vinte anos. De mais a mais, tenho idade para ser seu pai. Agora, deixe de brincadeiras e me ponha na linha a porra do Trombofob.
— Um instante, por obséquio.
O proprietário, solícito, atende a ligação.
— Alô?
— Quem é?
— Trombofob, às suas ordens! Com quem falo?!
— Sou eu, o Odair. Graças a Deus, meu amigo, graças a Deus! Quem é esse imbecil e abestalhado que você colocou aí, que nem atender direito um telefone o intelijumento sabe?
Risadas.
— É o Pedrinho, filho do Clobetasol, lembra dele? Trabalhou seis anos como motorista da "Transportadora Manda que Chega". Vocês pilotavam carretas por esse mundão afora.
Houve um pequeno silêncio.
— Sei, sei... Acho que agora me recordo. Veja bem, não tenho nada com seu negócio, meu velho amigo Trombofob, mas se esse coió e paspalhão continuar atendendo seu telefone, você chegará às portas da falência em duas passadas. Mesmo sendo filho do... do... não importa. Quem sabe, se fosse o pai, a coisa até deslanchasse e seu comércio melhorasse! Não que seu estabelecimento seja ruim, pelo amor de Deus, longe disso. O problema é esse rapaz aí. Droga, o bordalengo fez a maior hora com a minha cara. Tratou a mim como se eu fosse um chavasqueiro da laia dele. Queria, na verdade, saber se você tinha recebido o Venocur Triplex e o safado tirou o maior sarro da minha cara. Nem ao menos respeitou os meus cabelos brancos. Se estivesse aí lhe dava uns bons tabefes no pé da orelha. Você me conhece de longa data e sabe como tenho o pavio curto.
— Desculpe pelo transtorno, amigo Odair, mas o garoto não está aqui para atender ninguém.
— Ainda bem!
— Ele só deu azar de falar com você porque trabalha na empreiteira que presta serviços à Companhia Telefônica. E você ligou justo na hora que eu estava com um freguês.
Risos de ambos os lados.
— O moço é instalador e veio consertar meu aparelho, que começou a dar umas chiadeiras estranhas desde ontem. Coincidentemente, é filho do nosso colega, o Clobetasol, que eu, como disse, trabalhou com você na transportadora. Mas, diga lá, meu companheiro, quantas caixas você quer que lhe mande, do Venocur?
— Duas.
— Como está a comadre?
— “Zizinha” vai levando. Um pouco cansada, por causa da idade. Nada sério, acredite.
— E a Bete?
— Estudando para as provas. Quer tentar vestibular para medicina.
— Valdirene?
— Viajou com o namorado, para o Rio de Janeiro. Devem voltar na segunda.
— Odair, meu amigo, vou mandar o moto-boy entregar em sua casa dentro de 15 minutos. Está bem assim? Deixa só eu conferir o preço. Enquanto isso, vou te passar novamente para o Pedro. Não o queira mal. Agora que já se conhecem, e o gelo foi quebrado, o papo entre vocês dois vai ficar bem melhor.
Apesar do Odair gritar quase a ponto de se esgoelar que nada tinha a tratar com o tal do Pedro -, mesmo sendo filho de um seu velho amigo de trabalho -, Trombofob passou o telefone às mãos do rapaz.
— Fale com ele. É o Odair. Gente finíssima. Trabalhou com seu velho, na transportadora. Puxe conversa enquanto atendo a moça que acabou de entrar.
Pedro retornou ao telefone.
— Então, seu corno de uma figa, o senhor conhece o meu pai? Por que não disse logo, seu filho de uma égua?
— Olhe meu simpático mancebo. Prefiro ficar por aqui, em silêncio, aguardando a boa vontade do Trombofob em voltar a me atender.
— Ora, fale comigo. Deixe de bancar o burrego orelhudo. Quando vou conhecer Elizabete, a “Loira”, ou a “Chorona” da Valdirene?!
— Desculpe, meu filho. Não quero levar adiante nossa conversa. Se continuarmos com esse papo, você acabará descobrindo que comi muito a bundinha da senhora sua mãe.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 62 anos, é jornalista.