Passei o domingo com Georgiana e os sogros na chacara deles, suportando com uma impaciencia crescente aquelas conversas monotonas, os chàs no jardim cimentado e a insuportavel presença de minha noiva que, bastante desconfiada, indagava a toda hora sobre como eu tinha gastado meu sabado.
Em dado momento, o casal de velhos foi para a sala recepcionar alguns amigos que chegaram para o lanche da tarde. Georgiana nao perdeu tempo, agarrou minha mao num frenesi, e num ato reflexo eu a repeli com asco.
- Mas o que foi isso agora? _ ela me olhou, espantada _ Nao aceita mais os meus carinhos?
- Desculpe _ murmurei num constrangimento, disfarçando mal o incomodo e permitindo afinal que ela segurasse levemente meus dedos _ Estou um pouco nervoso por esses dias... Um processo dificil chegou ao escritorio... estou sobrecarregado.
- Imagino _ ela me olhou lentamente, perscrutando ainda mais meu semblante.
"Cara de peixe seco", dissera Fleury. Os cabelos eram grossos, escuros e oleosos como barbatanas de bagre; a derme de uma palidez doentia, seca como pergaminho. Pequena, nervosa, de gestos energicos e impacientes. Cheirava à naftalina e a uma nauseante essencia de flores silvestres. Dentes amarelados, grandes como dentes de cavalo; beijos pretensamente castos, com gosto de leite azedo. Nua deveria ser ainda pior, pois era magra como uma cadela abandonada, obcecada pelo proprio peso, como a imperatriz Sissi. Nao jantava... Que mulher horrorosa...
- Se houver outra mulher eu vou descobrir, Julio _ ela me fitou com seus grandes olhos negros analiticos, desconfiados, maus _ Tao certo quanto este sol nos ilumina, eu vou descobrir.
- Nao hà ninguem _ eu desconversava.
Naquela noite, entre absintos, piano e gargalhadas embriagadas, a ceia na "Pequena Sodoma" ocorreu depois de uma cena absurda e ao mesmo tempo hilaria envolvendo Fleury e o "enfant terrible", o pequeno Antinoo. Como eles se odiavam e viviam às turras, dessa vez Fleury o apanhou rasgando de proposito um de seus albuns de selos antigos. A surra com o chicotinho de equitaçao foi imediata e o garoto, debaixo das vergastadas furiosas do loiro, para se defender mordeu-o no braço, com força, tirando sangue. Meio embriagado, Emanuel nao pode evitar nada daquilo e quando cheguei, encontrei Fleury chorando de raiva, aplicando um pano com iodo no lugar da mordida. Estava possesso.
- Eu mato esse fedelho, Emanuel! Mato! _ dizia, apertando os olhos de dor; o garoto, refeito da surra, olhava-o e ria, sentado numa das belas poltronas, cobiçado por um dos convidados, um homem de bigodes pontudos.
Aos domingos eu sempre acabava sendo deixado de lado pois havia constantemente um outro que ele preferia, ou dois ao mesmo tempo. Como a fama da "Pequena Sodoma" corria por baixo dos panos entre aqueles homens que preferiam o anonimato absoluto, numa especie de sociedade secreta, aparecia regularmente uma meia duzia deles. Acabavam se arranjando entre si, ou escolhendo algum garoto que Emanuel trazia para que nao mexessem com seu Antinoo. Ele, aliàs, na epoca em que o garoto andou doente com caxumba, arrumou um mulatinho de doze anos com o qual se divertiu por uns dez dias mediante uma boa gratificaçao aos pais do menino. Exceto Fleury, seu gosto era mesmo centrado nos meninos ainda na puberdade.
Dessa vez, o loiro preferiu dois rapazolas que aceitaram em te-lo juntos, ao mesmo tempo. Eram belos filhos de oligarcas paulistas e estavam no Rio para estudar; num refinamento quase excessivo, a riqueza saltava de suas vestes de dandis modernos, impecaveis.
O velhote que devorava o Antinozinho com os olhos, falou a certa altura que era uma pena ele nao se chamar Adriano para assim ter "por direito"' uma noite com aquele esboço de pederasta. Emanuel mirou-o num olhar de odio, mas foi gentil nas palavras.
- O Adriano dele sou eu e mais ninguem _ declarou num sorriso altivo.
Eu nao podia compreender o que me levava ali naquelas noites de farra sexual. Para ver Fleury cortejar e arrastar outro homem para cama? Havia mesmo necessidade disso? Quando eu saia de là, as cenas penumbrosas de homens seminus engalfinhados nos cantos da sala, nos sofàs ricos que acabavam, no final, sujos daquela brincadeira, eram imagens que se colavam às minhas retinas sem proposito, por varias horas. Alguns homens daqueles me cobiçavam, contudo, com estranhos eu era muito retraido, nao conseguia aquele desprendimento necessario para algumas horas de diversao, como eles.
Ao menos, a expectativa de te-lo apenas para mim no dia seguinte, me consolava. Podia entao extravasar a paixao inutil que sentia por ele possuindo-o, tendo-o para mim naquelas horas de sol arrastado e frio. Um dia, quem sabe, todo aquele tonel de transbordante e desesperançado amor por Fleury secasse em mim, e entao minha vida talvez seguisse pacata e em paz como antes.
Mimando Bibi enquanto lia o jornal, ele me aguardava, agora abrigado do inverno em roupoes de veludo. Este de agora era cor de cobre, luzidio, maravilhoso; conforme o sol corria pela sala, ele ia arrastando o canape', seguindo o astro. Sorriu quando entrei, dobrando o jornal que lia. De um modo manso, talvez fraternal, Fleury me amava à maneira dele. Beijei-o na boca, enquanto Jean foi providenciar o chà.
A casa era so' nossa nessas horas, pois Emanuel passava o dia todo fora. Ouvindo Jean ao piano, num Bach delicioso, Fleury sentou-se no meu colo, meigo. Eu nao sabia se durante o dia outros homens vinham visita-lo, ele nunca me disse e eu preferia nao perguntar.
- Voce e' um grande amigo, Julio. _ sussurrou ele, me beijando o rosto e a boca _ Valorize isso, assim como eu valorizo.
Pensei em responder algo apropriado para o momento, porem fomos surpreendidos por um baque pesado e cheio, à porta de entrada da sala que estava escancarada. Jean gritou, e Fleury saiu de um salto do meu colo, olhando atonito para a porta: desmaiada de um jeito torto e estranho sobre o tapete persa, estava Georgiana. Tinha visto tudo.
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Valeu! :)
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