No primeiro momento em que me encontrei sozinho com ele, abordei com muita perplexidade aquele assunto, furioso ao perceber o quanto ele me tinha em um patamar tao baixo ao ponto de esconder de mim a decisao de ir embora. Aquela franqueza luxuriosa e expansiva que Fleury revelava na cama, comigo, era totalmente infima se comparada à sinceridade do nosso cotidiano, de nossa "amizade".
- Tomei essa decisao anteontem _ respondeu ele com pouco caso ante minha indagaçao nervosa _ Nao suporto essa cidade, esse pais! Uma "elite" baixa, mesquinha, horrenda, inculta, tola ate à alma... Nao me habituei, ora essa! Sinto uma falta terrivel de Paris, dos passeios na Bois de Boulogne ao cair de uma tarde gelada, com Manduca, sendo odiado, invejado e admirado por gente realmente refinada. Aqui apenas me odeiam, com um odio burro e injustificado. Para mim jà chega, Julio.
Para ele era facil demais deixar tudo, voltar ao continente onde residia seu coraçao. Apos passar por minha vida feito um tornado de verao, arrasando tudo, dissipava-se sem remorso nenhum, quase sem consciencia da destruiçao que causara em meu destino.
- E nao vai sentir minha falta? _ sussurrei, tomando-o nos braços com uma tristeza antecipada, deitando meus olhos jà saudosos por sua face suave, de uma ironia branda.
- Muita, e voce sabe disso _ respondeu baixinho, pressionando seu quadril voluptuosamente ao meu; esboçou um sorriso de vaga malicia _ Porem, nao aguento mais ficar aqui. Me entedio terrivelmente, todas as "diversoes" deste lugar sao horriveis, os passeios, os espetàculos, as pessoas... Logo vem aquele calor insuportavel e eu nao tolero aquilo, nao mesmo. Observo as ruas, Julio, as pessoas...Me parecem muares andando sobre duas patas, mulas espartilhadas, de braços dados com asnos de cartola e bengala, zurrando por todos os lados, fadados a uma vida asquerosa, insipida, ridicula, nesse pais abjeto e infame, uma mera sombra fetida do mundo civilizado!
- Deve ter me enxergado assim tambem, na ocasiao de La Traviata, quando nos vimos pela primeira vez _ falei com certo sorriso ironico.
- Nao _ ele suspirou, acariciando meu rosto com um dedo, lentamente _ Vi um homem maravilhoso cercado por porcos. Profundamente entediado e infeliz.
Nao havia realmente o que fazer, ele estava decidido a partir. Arranjaria tudo em dez dias, e o pouco de tempo que nos restava assumiu de repente uma cor toda nova e brilhante, por ser o ultimo que teriamos juntos. Eu estava bebendo demais e nao conseguia arrumar trabalho, porem queria usar aqueles poucos dias ao lado de Fleury, conversando com ele, ouvindo Jean fabuloso ao piano, como sempre, deixando todo aquele painel de breve sonho ir se fixando à minha memoria... A sonata de Beethoven me marcaria etenamente como uma lembrança de tardes frias, melancolicas e compridas, onde a cada hora meu coraçao parecia se comprimir mais, se despedindo aos poucos daquele loiro maravilhoso que virou minha vida pelo avesso em tao pouco tempo.
- Preciso me certificar se nao estao sendo desleixados com o tumulo de meu Pierre _ disse Fleury certa tarde, bebendo o chá de funcho _ Mandei fazer tudo em marmore rosa, e um grande Arcanjo Miguel sobre a làpide, pois era o anjo de devoçao de meu amor. O coveiro e' pago para deixar tudo limpo, com flores silvestres sempre frescas. Se estiver relaxando nesse trabalho ele vai se ver comigo.
Apenas Deus sabia a inveja que eu sentia daquele jovem morto, o Pierre. Nas minhas cada vez mais frequentes bebedeiras pelos bares e tavernas, às madrugadas, procurava mergulhar numa especie de devaneio doloroso, no qual Fleury se declarava a mim, prometendo me levar com ele a Paris e deixar Emanuel para tras. No quarto estreito, umido, escuro como um calabouço, e onde roedores corriam pelo teto de forro de madeira embolorada, meu abatimento e prostraçao de embriaguez e tristeza pareciam interminaveis. Tendo escrito a meus pais, comunicando-os sobre o rompimento de meu noivado devido à uma "incompatibilidade de genios", indagando ainda se poderiam me receber de volta pois estava sem trabalho, esperava deles uma resposta, com uma indiferença sinistra pelo que viesse pela frente. Residiam em Guaratinguetá, numa pequena propriedade rural de onde tiravam o sustento, vivendo de modo mediano. Como eu esperava, responderam positivamente ao meu pedido e, como Fleury, comecei a arrumar minhas coisas para deixar o Rio de Janeiro no mesmo dia que ele.
Sem necessitar insistir demais, Emanuel conseguiu que Fleury consentisse na ida do pequeno Antinoo com eles à Paris. Aquilo era um caso extremo: ou o garoto seguia junto com eles, ou Emanuel ficaria no Brasil por causa dele, abdicando de toda sua luxuosa vida ao lado do loiro. Irado, Fleury nao resistiu à chantagem, e sem que ele nunca declarasse, compreendi o quanto Emanuel era importante em sua vida. Talvez o amasse muito tambem, nao como o falecido Pierre, mas algo bem proximo disso. Tive a impressao de que Emanuel conhecia esse sentimento, o poder sutil que ele exercia sobre seu amante; isso explicava aquela ousada chantagem.
Custou um pouco caro à Fleury a partida do Antinozinho com eles: um sobrado em bom estado para os lados de Petropolis, onde ele possuia varias casas para aluguel. A mae do garoto exigiu isso, ou nao permitiria que levassem o pequeno. Tinha ainda mais cinco filhos, com diferentes homens, e ganhava a vida na cama, ao cair da noite, como tantas outras.
O garoto tinha crescido nos ultimos tres meses. Alcançava o ombro de Emanuel, que era alto, e jà se vestia como um pequeno cavalheiro, usando ternos elegantes, chapeu, bengala com cabo de bronze imitando uma pata de leao e fraque nas ocasioes sociais. Embora fosse um completo ignorante, possuindo um ensino escolar basico, emocionava-se sinceramente nas noites de espetaculo no teatro, aplaudindo as operas efusivamente, com um espicaçante rubor de alegria no seu belo rosto grego. Fazia-se mais bonito conforme o tempo passava, uma verdadeira encarnaçao do celebre amante adolescente do imperador Adriano nos tropicos; seria, na certa, uma sensaçao toda aquela beleza em Paris. O "enfant terrible" que desvairou Emanuel, e que, por sua vez, era objeto da clara devoçao do garoto, numa admiraçao respeitosa, com traços de franca sensualidade e paixao pre- adolescente contendo estranhos lances de desejada submissao.
O dia da partida deles amanheceu cruelmente belo e ameno. Embarcariam no vapor do meio-dia, e desde cedo, um certo tipo de nervosismo crescente me dominava. Chegando ao palacete, vi Jean fechando as janelas e portas; a volumosa bagagem jà aguardava, reunida na sala. Os dois advogados de Fleury que cuidavam de suas propriedades no Brasil acabavam de sair e ele, todo empolado num terno negro, bengala de cabo de marfim apoiada ao lado, calçava as luvas cinzentas. Junto dele no sofá, singularmente quieto, o pequeno Antinoo mexia com deslumbramento nas suas abotoaduras de ouro e rubi recem-colocadas.
- Bebeu de novo, Julio? Ainda sao dez horas... _ disse Fleury apos me beijar na boca _ Tome cuidado com isso, rapaz.
Nao respondi coisa alguma. Fitava-o com tristeza sem que ele notasse. Vindo lá de fora, Emanuel chegou com os encarregados do transporte da bagagem para uma carruagem à espera na rua. Os empregados começaram a levar as coisas, malas e baus, ordenados por Jean.
- Vai ao porto se despedir de nos, Julio? _ indagou Emanuel subitamente alegre.
- Nao. Tambem saio dentro de algumas horas _ esbocei certo sorriso infeliz _ Vou para a propriedade de meus pais, em S. Paulo.
- Nao sei se o felicito ou se lastimo _ disse Fleury.
- Nem eu mesmo sei _ suspirei.
Em quarenta minutos, estava tudo providenciado para que eles fossem. Emanuel se despediu de mim com um aperto de maos breve, um sorriso e votos de sorte e felicidade forçados; chamou seu "petit" e saiu com ele para a carruagem que jà aguardava. Fleury me fitou com um olhar limpido, sereno, sem choro nem grandes lamentos.
- Adeus, meu bom amigo _ disse, me abraçando _ Sabe que serà muito bem vindo em minha casa em Paris. Quando puder, apareça...
- Quem sabe um dia ... _ sorri sem muito proposito, esforçando- me para nao chorar.
- Nunca vou me esquecer de voce _ sussurrou ele, tocando meu rosto com a mao enluvada; beijou-me levemente sobre os lábios, um beijo quase casto, diferente da despedida frenetica sobre sua cama, na vespera.
Nao soube o que responder, estava quase no meu limite, qualquer coisa a mais dita e eu faria um feio papel diante dele. Felizmente Jean o chamou para partirem, precisava ainda trancar a porta principal da "Pequena Sodoma", fechada agora por tempo indeterminado. Saimos, e observei Fleury adentrar a carruagem logo depois de seu criado; me acenou da janelinha do veiculo, sorrindo, um aceno de luva cinzenta, seu rosto feliz, branco e belo, se fixando para sempre em minha lembrança. O condutor estalou o comprido chicote e os cavalos se moveram, levando-os com pressa pela rua afora.
Voltei para a pensao, num coche, chegando e observando minhas coisas tambem arrumadas. Houve tempo para um cigarro, e enquanto eu olhava pela janela aberta a horrivel paisagem de telhados enegrecidos, de casas pobres, de crianças miseraveis, cachorros, galinhas e charretes pela rua empoeirada, senti as làgrimas descendo em silencio; filetes mansos de um rio represado, transbordando. "Adeus, meu belo sibilino". Respirei fundo. O cigarro acabou, e quando o empregado da pensao veio recolher minha bagagem pois o coche estava à espera para me levar à estaçao, enxuguei o rosto, levantei-me e desci. Parti às duas horas da tarde, sob um sol forte, incomum para o inverno. Seria melhor se estivesse chovendo.
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Imensos agradecimentos aos que acompanharam! Aos comentarios gentis e leituras :)
Beijo grande! Ate algum dia, pessoal!