O silêncio foi quebrado pela menina que trabalha na lanchonete.
.
Moça: Está pronto. Vocês desejam algo mais?
Eu: Não, não. Muito obrigada. Paguei e peguei o nosso lanche. Fui em direção à porta do carona e entrei no carro. Ela entrou logo em seguida, ligou o carro e fomos embora. Estávamos descendo uma avenida e ela acelerou. Estranhei. A Thy dirige muito bem, mas aquilo tava me assustando. Ela acelerou mais e do nada freiou de maneira brusca.
.
Eu: Você tá ficando louca?
Ela: Tô Mah, eu tô ficando louca sim.
.
Estávamos agora uma de frente pra outra. A rua estava deserta, e ela havia parado o carro bem embaixo de uma árvore. De dentro do carro só se ouvia nossa respiração eufórica. Ela por raiva de mim, eu por medo dela. E o que já estava tão óbvio que iria acontecer, aconteceu. Nos beijamos. Diferente de todos os meus primeiros beijos com alguém, beijar a Thy não foi como beijar um estranho. Nosso beijo se encaixou, como se nossos lábios fossem amigos íntimos. Os lábios dela eram macios e doces, e o cheiro que a pele dela exalava, estava incendiando meu corpo.
.
Mas ela desengatou nossas bocas, como se despertasse de um transe. E nesse movimento, eu também despertei. Fomos tomadas por uma vergonha desnecessária. Ela ligou o carro outra vez, agora numa velocidade comum. Dobramos a rua e ela parou o carro na frente de casa. Peguei a chave e desci do carro. Ela manobrou enquanto eu abria o portão. O carro entrou, eu fechei tudo e entramos em casa. De cara, a Ruth estava na sala. Eu acostumada que sou com essas coisas, fingi que nada havia acontecido. Falei alguma coisa e fui direto pro meu quarto. A Thy passou pra cozinha, e depois veio me chamar pra comer. Eu não tava mais nem lembrada do lanche. Eu tava pensando mesmo era no nosso beijo. Cheguei na cozinha e ela tava sentada de cabeça baixa. Sentei do lado dela, coloquei o refri no copo e deu uma mordida no meu pastel de frango, milho e catupiry (eu sempre vou na mesma lanchonete e peço a mesma coisa kkkkkk). Ela comia em silêncio e não me olhava.
.
Eu: Durma no meu quarto hoje.
Ela me olhou com cara de assustada
Eu: Eu não vou te agarrar, criatura. Aff!
.
Volta e meia a Thy dormia no meu quarto. A gente adorava assistir TWD juntas. As vezes algum filme também. Coisa de amiga mesmo. Ela fazia pipoca e a gente acampava lá. Íamos dormir às 2h da manhã, e eu acordava um lixo no dia seguinte, pra ir trabalhar. Mas era legal. Acontece que agora as coisas haviam mudado, e eu entendia a cara de preocupação dela.
.
Eu: Olha, tudo bem. Esquece o que eu falei.
Ela: Eu vou.
.
Silêncio outra vez. Mordi meu pastel pra disfarçar meu sorriso. Terminei de comer, levei meu prato até a pia, lavei e fui para o quarto. Tomei um banho pra tirar qualquer vestígio da Luana. Queria mesmo é que a lembrança dela descesse pelo ralo. Mas assim que eu sai do chuveiro e visualizei o Whats, havia um mensagem dela.
.
Luana: Nem acredito que isso aconteceu. Ainda consigo sentir seu cheiro.
.
Queria morrer quando li aquilo. Mensagem visualizada e ignorada com sucesso. Já fora do banheiro, coloquei um pijaminha, perfume e sentei no colchão. Com a porta aberta do quarto, vi ela saindo do outro banheiro só de toalha. A verdade é que agora eu me sentia como uma cega que havia sido curada. Como eu nunca havia notado aquela menina antes? Menina não, mulher. E uma mulher e tanto, que por várias vezes dormiu ao meu lado, e eu como uma topeira não consegui notar. Ela entrou no quarto, logo após seu perfume penetrar minhas narinas. Vestia um shortinho curto e uma blusa de alças. Eu nem sabia pra onde olhava primeiro, se para o bico dos seus seios eriçados por conta da baixa temperatura ou se para suas lindas coxas, enaltecidas naquele short curto. Ela parecia querer morrer de vergonha. Deitou ao meu lado no colchão dela e me perguntou se poderia apagar a luz. Lhe disse que sim. Levantou outra vez e desligou. Agora estávamos outra vez, uma de frente pra outra. Só podia ser visto um brilho intenso nos nossos olhos, que refletiam a luz da laterna/abajur, ligada próximo a nós. Nos olhamos por muito tempo. Aqui não cabia palavras, tudo que precisava ser dito, estava sendo gritado no nosso olhar. Se eu gostaria de beijá-la? Sim. Era tudo que eu mais queria naquele momento. Mas eu precisava primeiro entender o que de fato era aquilo. Eu já vinha de uma relação na qual eu muito me doei. O fim da minha relação com Ci estava apenas cicatrizando, e agora estava em risco outro relacionamento. Afinal, se eu estivesse errada, eu não perderia só uma futura companheira, mas uma das minhas melhores amigas. Então baixei minha bola. Peguei sua mão, e ela correspondeu apertando a minha da mesma forma. Me senti num filme daqueles de antigamente, em que pegar na mão já era muita coisa. Eu sempre valorizei o contato físico. Mas com a Thy, parecia que bastava a presença dela pra me fazer feliz naquele exato momento. Sua mão me proporcionava sensações indescritíveis, e ela estava apenas repousando na minha mão também. Se você está lendo esse conto na expectativa de que eu chegue a dizer que nós transamos, lhe aconselho a parar aqui. Procure algum outro que deva ter algo sexualmente mais interessante. Esse momento foi sublime pra nós. Embora nossos corpos estivessem a alguns centímetros de distância, era possível sentir que nossas almas estavam ligadas. Ela me transmitia o amor mais puro através do seu toque, e eu olhava para minha melhor amiga, como nunca antes a havia visto. Ela dormiu enquanto eu lhe fazia cafuné. Fiquei admirando-a ainda por um tempo, mas acabei pegando no sono também. Acordei na madrugada meio assustada, e ela ainda segurava minha mão. Agora havia puxado um pouco do meu ante-braço para si. Como se fosse um travesseiro que apertava junto ao corpo. E olhando essa cena linda, voltei a dormir.
.
Os dias foram passando e nós não tivemos coragem de tocar no assunto outra vez. Da minha parte, tudo o que se referia a Thy passou a ser diferente. Antes de ir ao trabalho eu sempre dava um pulo numa conveniência pra comprar algo pra levar. Numa dessas vezes passei na frente da prateleira de chocolates, e pensei: ela deve gostar desse. Tudo o que me envolvia, passou a envolvê-la indiretamente. Já não levava coisas só pra mim, eu passeia pensar em "nós", mesmo que "nós" não existíssemos ainda.
.
Minha relação com Ci era bem social. Mas ainda mantida. As vezes perguntava como ela estava, e estranhei quando ela me disse que estava fazendo alguns exames. Insisti muito para saber quais exames eram esses, mas ela dizia apenas que de rotina. Uma noite me chamou dizendo que estava indo a UPA, pois teve uma raiva e estava colocando sangue pelo nariz. Perguntei o que havia acontecido, e ela me disse apenas que problemas no trabalho. Embora nossa relação estivesse bem resolvida para mim, eu me preocupava com ela. Passei a ligar e a me fazer mais presente, na esperança de descobrir como poderia ajudá-la e o que de fato ela tinha. Mas ela sempre me dizia que estava tudo bem.
.
Numa noite de quarta-feira, dia comum, eu larguei do trabalho e o carro da Thy estava estacionado na frente do prédio. Tomei um susto quando ela businou.
.
Eu: O que você tá fazendo aqui?
Ela: Vim te ver.
Eu: Mas já estou indo pra casa. Por que não me esperou lá?
Ela: Porque senti saudades.
Meu coração se encheu de alegria. Dei um sorriso bobo, no canto do rosto.
Eu: Bom, se incomoda de me levar ao banco então?
Ela: Não. Vamos.
Fui ao banco, saquei um dinheiro para pagar o aluguel e algumas contas.
Ela: Queria conversar com você.
Eu: O que houve?
Ela: Vamos pra um lugar mais tranquilo.
Eu; Tudo bem então.
.
Perto do meu trabalho tem uma pracinha. Seguimos pra lá.
.
Ela estacionou o carro e eu disse: Pode falar. O que aconteceu?
Ela: Mah, você sabe que faz um tempo que Ci tem nos dito que anda fazendo uns exames, não é?
Eu: Sim. Eu sei. Ela te contou algo mais?
Ela: Eu passei lá hoje. Ela tinha me dito ontem que passou mal, e que havia ido à UPA. Então fui lá hoje conversar com ela.
Eu: E aí?
Ela: Olha, ela tá bem. Ela já tá se tratando.
Eu já tava com a voz embargada: Se tratando do que?
Ela: Ela tá com um tumor pequeno no seio. É câncer!
.
.
.
Boa noite, pessoal. Alguém perguntou se o que eu escrevo é verídico. Olha, infelizmente ou felizmente é sim. Eu narro minha vida aqui na casa desde o Caminho das Borboletas, que é outro conto meu, do qual eu acabei perdendo a senha e não pude dar continuidade. Escrever o Sankofa é revirar algumas coisas do passado e aprender a recomeçar com tudo de novo que está acontecendo. Agradeço a todos que andam acompanhando, e embora a média de leituras seja ótima, gostaria que vocês comentassem mais vezes. Perguntem, digam se detestam ou se adoram. O feedback de vocês é muito importantebeijo.
.
Mah
.
Sankofa