Confirmado o retorno da anemia do Marquinhos, houve necessidade do medicamento para reposiçao de ferro e dieta rica nesse nutriente. Mas quem disse que consegui fazer aquele teimoso seguir o regime corretamente?
Aconteceu justamente numa epoca dificil, eu estava sobrecarregado de trabalho, tinha pegado um complexo processo no escritorio, trazia o serviço para casa, e enquanto Marquinhos assistia a novela, eu mergulhava de cabeça em folhas e mais folhas da açao penal. Preparava o jantar, que era o mesmo que o dele, para encorajá-lo: bife acebolado de figado, salada de beterraba ralada, arroz e feijao. Eu comia lendo o processo sobre a mesa, e quando me dava conta o Marcos estava enrolando a comida no prato, com cara de nojo.
- Cara, pelo amor de Deus, coma isso. Voce precisa _ eu pedia em tom pesaroso _ Deixe de ser criança, Marquinhos, voce sabe que precisa se ajudar para a coisa funcionar...
Ele fingia comer, beliscava uma coisa ou outra e me enrolava direitinho. Quando eu percebia, ele jà tinha largado o prato e estava se empanturrando de Sonho de Valsa em frente á TV. A minha vontade era de jogar fora aqueles bombons, que ele comprava aos pacotes, mas no final eu ficava com pena e fazia sua vontade; varias vezes fui eu mesmo quem lhe comprei os bombons, nos dias em que ele estava com desejo. Clarice observava aquele mimo quando vinha là em casa.
- Voce dança miudinho na mao dele, ne'? _ disse ela baixinho, certa vez _ Se ele te pedir a coroa da Rainha da Inglaterra, voce e' bem capaz de tentar arranjar.
- Que exagero! _ eu ria; mas nao era tanto assim... ou era?
Sabendo da anemia do filho, e conhecendo melhor ainda a teimosia infantil dele, a mae do Marquinhos veio uma tarde em casa, trazendo uma garrafa de vidro com suco de laranja puro, uma torta de espinafre com mussarela, e um maravilhoso bolo de beterraba, rosado e fofo, coberto com muita calda de chocolate. Foi uma alegria ve-lo comer um pouco de toda essa comida com apetite; a mae o aconselhou a comer o que o medico tinha mandado, que era necessario. Ele ouvia em silencio, mastigando um pedaço da torta; nao gostava de ser censurado, porem se calava por nao ter razao dessa vez. Agradeceu o apoio da mae, jà a abraçava com mais naturalidade do que antes, contudo ainda nao se rendia totalmente.
Como entrou um dinheiro extra com aquele processo que peguei, comprei um videocassete, que meu anjo cobiçava hà tempos. Ele ficou doido de alegria quando viu a caixa com o aparelho, me beijou euforico, amassando meu terno e quase derrubando meus oculos; foi uma festa, pois comprei tambem duas fitas: "Vidas Amargas", com o belo James Dean, e "Bonequinha de Luxo", um filme classico que nos dois amavamos. Viramos a noite assistindo os filmes, e eu já cochilava enquanto Marcos dormia apioiado em meu colo; estava bonzinho essa noite, tomou toda a sopa de feijao com brocolis e macarrao que fiz com muito carinho. Claro que depois se encheu de sorvete de chocolate, mas nao reclamei.
Usavamos aliança desde junho de 1990, quando o presenteei com a joia no Dia dos Namorados. Eram alianças tradicionais de casamento, lisas, de ouro, e que me fizeram passar uma vergonha colossal na hora da compra, pois os vendedores riram na minha cara indiscretamente. Ele usava direto, jà eu escondia no escritorio, para evitar perguntas. Na boate, ostentavamos as peças, porem para alguns caras aquilo nao representava nada; chegavam, principalmente nele, como lobos famintos, apenas desistindo depois de respostas rispidas. Se dependesse de mim, nao iriamos à boate nunca mais. Odiava aqueles assedios em cima dele, porem Marquinhos achava as musicas um barato, sempre gostou de dançar e estar entre amigos, entao eu cedia a vontade dele, como sempre.
Tambem na NostroMondo conheci o patrao dele, o Quin, um ricaço casado com um americano com cara de ator pornografico. Eram simpaticos e nos convidaram para passar um final de semana na mansao deles, no Morumbi; como cresci naquele universo de gente rica e esnobe, o convite simplesmente me encheu de tedio, mas como Marquinhos quis ir, fomos.
Foi bacana a primeira vez, os amigos dele eram bonitos, jovens e alegres; porem da outra vez, no aniversario de um garoto loirinho à beira da piscina, nao gostei quando um cara que era namorado de um amigos do Quin, ficou comendo o Marquinhos com os olhos; um mulato alto, cara de safado. Meu anjo nem percebeu, dormia tomando sol, me jurando depois que nunca tinha visto aquele sujeito antes. Acreditei, pois ele nunca negava quando encontrava com algum conhecido que, no passado, andara dormindo com ele. Depois disso, nao voltamos mais á mansao do patrao dele.
Nos finais de semana em que brigava com Alan, o que era frequente, Clarice vinha dormir na nossa casa. Chegava com seu cobertor cor-de-rosa, seu panda de pelucia, chocolates para Marquinhos e fitas de filmes para assistirmos. Numa noite, trouxe o filme "Tubarao" em VHS, e o assistimos no colchao de casal que pusemos para ela na sala. Deitada entre o Marcos e eu, ela aproveitava para abraça-lo, fazendo piada com ele.
- Se voce fosse heterossexual nao me escaparia, sabia? _ disse ela rindo, beijando-o na bochecha.
- Sai pra là! Se eu fosse heterossexual, teria logo nascido mulher para nao ficar sem homem... Coisa muito boa, voce sabe.
- Concordo totalmente com voce, querido. Homem e' bom demais. Mas dà muito trabalho!
- Bom... O meu nao dà, nao _ ele sorriu, me olhando.
- Sorte sua. O Alan me tira do serio _ ela suspirou _ Muda de humor como o vento muda de direçao, se veste mal, e' grosso, gosta de eiogiar as "amigas" na minha frente... Estou a ponto de largà-lo, se bem que... a cama acaba compensando isso tudo. Ah, Marquinhos! Se eu pudesse, viraria homem pra voce namorar comigo!
- Credo! _ ele se levantou, rindo e passando para o meu lado no colchao _ Amor, essa mulher vai acabar me estuprando.
- Deixe de ser chata, Clarice! _ eu já começava a me irritar, achava que as vezes ela exagerava nas brincadeiras.
Fingindo ficar amuada, ela resmungava que nao tinha sorte no amor, que os melhores homens eram gays, que a soluçao seria ela "virar lesbica", que talvez assim arranjasse um amor que valesse a pena. Marquinhos e eu riamos baixinho das queixas dela, irritando-a; o filme acabou e ficamos assistindo a programaçao normal da TV. Passava das onze horas, Marquinhos acabou dormindo encostado em mim, com a cabeça em meu peito. Puxei o cobertor rosa-chiclete de Clarice sobre nos, enquanto ela o observava dormir, conversando baixo comigo.
- E a anemia dele? Já cedeu? _ indagou.
- Ainda esta tratando, mas vamos saber quando o exame for feito... Acho que esta recuando, pois ele esta mais disposto, menos pálido, sem aquela prostraçao de antes. Vou te falar, e' uma batalha fazer esse garoto seguir a dieta, comer corretamente. Se depender dele, e' chocolate no almoço e no jantar. Deixo ele comer, claro, mas antes tem que comer a comida da dieta tambem.
- Coitadinho _ ela tocou-o delicadamente nos cabelos _ Em pensar que poderia ser tudo diferente, voces dois curtindo a vida juntos, sem preocupaçao... E' tao injusto, cara.
E como era! Foi um verdadeiro balde de agua fria em nossa felicidade: comecinho de nosso namoro e logo de cara aquela noticia arrasadora. Parecia ate que era um teste, para avaliar nossa força, nosso amor no momento em que nos achavamos mais felizes. Enfrentamos, claro, mas aquela sensaçao de injustiça ainda persistia.
Clarice comentou que ele tinha "jeitinho de anjo", ate dormindo.
- Tente entao aguentar esse "anjo" por uma semana! _ sussurrei,rindo _ Ele se esforça para controlar o genio ruim, mas nem sempre consegue. Quando esta bravo, me xinga como voce nem pode imaginar, ameaça jogar o remedio fora, grita, parece uma criança birrenta... Tenho que rezar um mantra toda vez que ele esta assim, senao... Geralmente ocorre nos dias em que ele esta mal, sabe? Mas eu nao o culpo. Faço ideia de como ele se sente angustiado com tudo isso, a doença, os efeitos do remedio, o medo de nao conseguir aguentar... Tem hora que ele nao suporta, explode mesmo. Mas sou calmo e teimoso, consigo lidar com ele. Se fosse impaciente e me ofendesse facil, nem teriamos namorado; precisava ver como ele me tratava quando soube do amor que eu sentia, na primeira vez... Foi duro. Suei a camisa pra conquistar esse moleque.
- Ele me contou _ disse ela, sorrindo _ Gosto da personalidade dele, admiro gente assim, brava. Vi umas fotos do antigo grupo de voces... eram uns caras bem gostosos, hein? Ele me mostrou o tal de Tony, e que homem era aquele, meu Deus? Teve razao do Marquinhos ter largado do ruivinho por aquele deus grego... Mas o ruivo era outro tesao, tambem... tem bom gosto meu cunhado... Ele acha que pegou a doença desse Tony, disse que o cara já morreu...
- Sim, eu tambem acho _ respondi, perdido em algumas lembranças rapidas _ Sabe, as vezes penso que se nao fosse por ele, o Marcos agora nao estaria assim... Mas e' tolice pensar nisso. Nao se deve culpar os mortos, e talvez ninguem tenha mesmo culpa de nada...
Lembrei de nosso grupo rapidamente, pedaços de memoria que vinham sem muita intensidade: o Tony fazendo as carreiras de cocaina na mesa de vidro escuro, o Marquinhos se inclinando e aspirando uma dose, o Zeca louco de euforia, dançando na sala, Bruno sem camisa, suado... Foi o auge de uma juventude exagerada, sedenta de vida, de provocaçao. O crime tinha sido viver demais? Nao sei, porem todos eles tinham ido, morreram ou sumiram sem noticias, como Bruno; restamos Marquinhos e eu, e a vida foi generosa me legando o melhor daquilo tudo que era o amor e a companhia dele, mas tambem foi megera, deixando a Aids em nossas maos.
Assumi, de fato, uma responsabilidade gigantesca. Era duro, era uma droga muitas vezes, e como Clarice jà tinha percebido e me dito muito cuidadosamente certa vez, eu amava muito mais Marquinhos do que ele a mim; claro que eu via o quanto ele era apaixonado por mim, grato, dedicado, porem a intensidade de meu amor era maior, eu sentia e sabia disso sem magoa nem remorso. A meu ver, tudo valia a pena, e isso era o que importava no final.
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Obrigada! :) Opinem à vontade!
