Fiz uma mochila rápida e liguei pra Thy.
Ela: OI.
Eu: Adivinha.
Ela: O que? Fala logo.
Eu: Encontrei os números do RG dela.
Ela: Sério? Como?
Eu: Ainda guardava nossas passagens.
Ela: Manda pra mim. Vou mandar pro Guto.
Eu: Tô indo praí. Melhor.
Ela: Ta bom.
Nos despedimos e peguei um táxi até lá.
Embora o Guto precisasse confirmar que aquilo era uma grande mentira, no fundo, no fundo... Eu já sabia mesmo. Mandamos o nome e os dados dela para ele e agora era hora de aguardar. Como agora eu sabia que a história tava pra ser confirmar, decidi que era hora de falar com a Malu. Já estávamos na quarta pela manhã, e nada do Guto falar nada. Essa demora me dava uma ansiedade absurda. Liguei pra Malu.
Ela: Fala branquela.
Eu: Olha o respeito, menina. Sou da cor do pecado.
Ela: kkkkkkkkk queria nem rir uma hora dessas.
Eu: Olha, preciso falar com você.
Ela: Que foi? É grave?
Eu: Mais ou menos.
Ela: Fala logo.
Eu: Por telefone não dá. Vai pra UF hoje?
Ela: Vou sim.
Eu: Tô indo lá agora também.
Ela: Eita, deve ser grave então. Pra você querer falar comigo a essa hora da manhã.
Eu: É sim. Só queria lhe pedir uma coisa.
Ela: O que você quiser.
Eu: Você confia em mim?
Ela: Sim. Confio.
Eu: Então você vai levar em consideração o que vou lhe dizer.
Ela: Pode deixar.
Já na universidade, encontrei com Thy e ficamos do lado do auditório, esperando a Malu chegar. A vi de longe, magra que só ela kkkkk
Ela: Anda, desembucha.
Eu: Calma, neh? Bom dia!
Ela: Bom dia. Fala.
Eu: Malu, o papo é grave. Na verdade, quero sua ajuda pra descobrir uma coisa.
Ela: Pode falar.
Eu: Seguinte, você lembra que faz um tempo que Ci vem dizendo que está fazendo uns exames e tal, neh?
Ela: Sim. Ela é teimosa. Já pedi pra ir com ela, ela nunca deixa.Diz que é coisa de rotina. Mas ando bem preocupada.
Eu: Então... Eu também. Acontece que essa semana, Thy colocou ela na parede, e ela finalmente disse o que tem. Ela anda fazendo quimioterapia.
Ela baixou a cabeça e ficamos em silêncio um tempo. Fiz intencionalmente. Quis que ela sentisse a mesma dor que eu senti, pra só então ter a mesma raiva pra querer saber a verdade a todo custo.
Ela: Desde quando? E onde é?
Eu: Então, ela começou faz pouco tempo. É um tumor, no seio.
Quando percebi que ela estava se emocionando, entendi que era a hora de dizer.
Eu: Acontece maga (chamo ela assim)... que nós entramos em contato com um amigo da Thy, que é químico do hospital, e pra nossa surpresa, ela não tem cadastro lá.
Ela levantou a cabeça.
Ela: Como assim?
Eu: É isso que queremos descobrir. Primeiro ela nos disse isso, aconteceu um dia antes do seu aniversário. Nessa noite, ela dormiu lá em casa, e a Ruth sentiu o espírito dela. Disse que ela não tem nada de doente, e que fôssemos atrás, pra descobrir a verdade. Então entramos em contato com o Guto, e ele pediu o nome dela. Nos dados, não havia nada que constasse um simples exame de sangue. Já pedi para ver os exames dela, ela não mostra. Ninguém pode acompanhar ela a quimioterapia, ela não nos deixa contar pra família, bebe, anda usando drogas. Como alguém que está se tratando, pode ter um comportamento assim?
Ela tava abismada com tudo aquilo: Cara, não é possível. Como alguém faz algo assim? Essa menina é um monstro.
Eu: Calma. Ainda precisamos confirmar mesmo. Hoje pela manhã eu encontrei os dados do RG dela, quero tirar qualquer possível dúvida, mesmo que no íntimo eu tenha certeza que seja mentira.
Ela: Mah, quantas vezes ela já mentiu pra você? Tá na cara que isso é mentira. Tá na cara.
Eu: Eu sei. Claro que eu sei. Mas não quero acusar ninguém sem provas.
Ela: Cara, se isso for mentira, Deus queria que eu não a encontre mais, porque sou capaz de subir em cima dela e arrancar os cabelos dessa menina.
Eu: kkkkkkkk então, mas nós temos que ser rápidas, porque ela está pra fugir.
Ela: Como assim?
Eu: Ela disse pra Thy que falou com a ex-patroa dela, e que está pensando em ir pra SP, se tratar no hospital de Barretos.
Ela: Que coincidência. Logo agora ela quer voltar pra SP? Muito cômodo mesmo. Ela vai pra lá, volta curada e tcharam... milagres são reais.
Eu: Exatamente o que pensei. Agora precisamos ter cautela, e segurar ela aqui até o Guto confirmar tudo.
Nos despedimos e fui trabalhar.
A quarta passou, e nada do Guto dar notícias. Mal dormi de tanta ansiedade. Já na quinta pela manhã, estava indo para o trabalho e decidi tomar uma atitude mais radical e arriscar tudo logo. Não dava mais pra esperar. Então a chamei no whats.
Eu: Oi Ci. Tá melhor? Foi a quimio hoje?
Ela: Oi Mah. Tô sim. Só enjoada. Você sabe... reações da quimio.
Eu: Huuuum... foi de ônibus?
Ela: Fui sim, mas voltei de táxi.
Ela: Passei perto do seu trabalho ainda a pouco. Fui recarregar meu passe. Quase fui lhe ver.
Ela: Ah... eu estava chegando, acho.
Eu: Deu tudo certo, lá?
Ela: Deu, deu sim.
Eu: Achou seus documentos?
Ela: Não. Ainda não.
Eu: Huuuum... olha, achei os números deles. Caso você necessite, eu tenho.
Silêncio reinou. Eu tava rachando de rir já kkkkkkkk
Ela: Sério? Como você tem meus números?
Eu: Esqueceu que nós namoramos? E que viajamos muitas vezes? Guardo nossas passagens. Achei. Caso você necessite, eu tenho.
Ela: Tá bom. Obrigada.
Saí e deixei ela refletindo kkkkkk mas claro que ela sabia que o cerco tava fechando. Minutos depois ela me chamou.
Ela: Mah, eu acho que vou raspar meu cabelo logo. Vai cair mesmo. Não vou mais retardar o que vai acontecer.
Eu: Menina, as vezes nem cai. Relaxa!
Claro que eu sabia que aquilo era o fim da linha pra ela. O desespero havia batido já. Game over.
Ela sumiu, e do nada chegaram as fotos. Gente, como eu ri. Que palhaçada. Até que ponto vai uma pessoa, pra sustentar uma mentira. Acreditem: Ela raspou mesmo. Que nojo que eu sentia de tudo aquilo. Falava que todo mundo estava chorando no salão, embora nos fundos da foto tivesse uma mulher super tranqüila deitada num sofá. Foi uma das coisas mais bizarras que vi na vida. Até que eu decidi que era o fim mesmo. E que não seria mais conivente com aquela palhaçada toda. Então, fiquei em silêncio por horas no Whats, e enviei minhas últimas palavras pra Ci. Seguem abaixo:
Fiquei um tempo me perguntando se ainda teria coragem de escrever. Ensaiei algumas coisas, mas meu coração estava amargurado, ferido, apunhalado. Então fiquei em silêncio! Respirei, olhei pro céu, ouvi uma canção. Lembrei de quem sou.
Ao longo desses tantos dias, que já se aproximavam dos 2 anos, por inúmeras vezes eu esqueci de mim. Abri mão de muitos dos meus preceitos e virtudes, por amar você. Passei a mão na tua cabeça como uma mãe que se arrepende de castigar um filho, não sabendo ela do mal que poderia causar a ele. Sabe Cibely - já me dirijo assim à você, porque entendo que hoje não passas de um ser estranho pra mim -, me pergunto: como pude ser enganada tanto tempo? Se eu me arrependo? Não. Dizem que toda experiência é válida. Então essa vai fazer parte do tijolinho que coloco sobre o alicerce da minha vida. Agora me dispus a cobrir com cimento, acrescentar outros, dá um retoque... Logo, ele vai ser um pedaço pequeno de uma parede. Vai desaparecer, como todos os outros. Desde que soube da sua “doença”, me perguntei muitas vezes se tinha feito a coisa certa. Fui no íntimo do meu coração, para saber se nossa história tinha de fato acabado. E tinha mesmo. Mas você sempre seria importante pra mim. Jamais pensei que sentiria a aversão que senti por Daliana, por qualquer outra pessoa. Principalmente por uma pessoa na qual eu tivesse amado. E por falar em amor, como eu amei você Cibely. Amei tanto, mas tanto, que você não fez idéia. Se fizesse, não acredito que teria feito o que fez. Porque quando a gente ama, ama de verdade, a gente se alegra com a felicidade do outro, mesmo que esse outro não seja mais nosso. Uma vez lhe disse que escutei uma história engraçada. Alguém me disse: “Mah, se um dia alguém amar você, pergunte se essa pessoa conseguiria viver sem sua presença. Se ele disser que não, fuja. Porque não é amor, é doença”. Eu não vim aqui pra explicar os motivos pelos quais eu estou te escrevendo isso. Nós sabemos. Você sabe que eu sei. No começo eu duvidei até de Deus, mas apesar da minha infidelidade, Ele continuou fiel a mim. E por mais óbvio que fosse, eu só lembrei-me disso ontem: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). A verdade é de fato libertadora. Não demorou muito também, porque já diz o ditado popular: Mentira tem perna curta. E como tem. Então fui investigar mais a fundo, outras tantas coisas. Arrastar da memória aquilo que passou despercebido. Mas que dava sinais de estar errado. Ai meu Deus, tonta que sou. O que você pensou, hein? Não, nem explica. Mas responde pra tu mesma: Achou realmente que eu nunca ia saber? Achou que eu era tão idiota assim pra engolir esse conto da carochinha? Você tá doente mesmo Cibely, mas é da alma. Eu ainda lamento muito por você, porque tu perdeu gente que de fato gostava de você, sem pedir nada em troca. Que colocava suas próprias dores no bolso, pra atender “as tuas”. Mas de fato, numa coisa eu preciso concordar contigo: você está bem! Você está muito bem, graças a Deus. Sua saúde está ótima. O que tá ruim mesmo é tua alma, e essa solidão que tu se encontra agora, já que os “idiotas”, agora ficaram “sabidos”. Aproveita teus “novos amigos”, que te arrastam pra essa vida que você mesmo procurou ter. Eu espero que dê tempo, que Deus ainda tenha piedade de ti, e não permita que teu corpo passe a depender dessas porcarias. Mas talvez você suma, comece a vida num lugar novo, onde ninguém saiba a verdade sobre quem é você, onde outros idiotas possam ser enganados. Ciclo vicioso. Já estou chegando ao fim, dessa última carta. Sei que você não tem paciência pra gastar seu tempo com minhas palavras. Das últimas coisas que quero dizer, a primeira é: deixa a mim e aos meus amigos em paz. Não nos escreva, não nos ligue, não nos procure. Ninguém acredita mais em você. Toda a sua credibilidade foi por água abaixo. Coisa que eu já deveria ter feito desde muito tempo. Desde quando você mentia olhando nos meus olhos. Não importa se a mentira é grande ou pequena. Quem mente sobre uma conversa, mente sobre uma doença, mente sobre tudo. Não existe mentira pequena ou grande. Existe MENTIRA. E eu abomino qualquer uma que seja. No mais, melhoras. Que tua alma seja curada. Que teu coração saiba o real sentido da amizade e do amor. Que Deus tenha misericórdia da tua família, porque tua vó e tua mãe não merecem passar por um sofrimento desses.
Quanto a mim? Vou te dizer a mesma coisa que disse quando nos conhecemos, e mais algumas coisas:
Eu vou recomeçar, com a graça de Deus, como sempre fiz.
“Andar sem sair do lugar. Sem sair do lugar. Andar na frágil ponta do talvez. Talvez, esperar de novo. Esperar: o novo de novo de novo no novo. Fechar o círculo. Fechar o cerco. Estar fechado no cerco. Cada mentira leva a uma verdade que não pode ser dita sem ser mentida. Medida rompida”. (Ericson Pires)
Adeus
A resposta que tive, depois de horas em silêncio, foi essa:
Adeus, mah. A única coisa que menti foi sobre a quimio. To com exames, to com tudo em mãos, minha mãe não sabe ainda, viajo pra lá dentro de poucos dias. Não sou mal caráter. Um dia saberás que o que fiz, foi o melhor. Adeus!
Dias depois, o Guto confirmou os dados com precisão, e com os números dos documentos. Ela nunca havia dado entrado naquele hospital. Tudo foi um teatro, de muito mal gosto por sinal. Onde ela anda hoje? Não sei. Se a encontrasse, atravessaria a rua. Todo o meu amor transformou-se em nada. Não sinto mais raiva dela, isso já passou. O que sinto, é pior que raiva. É nada mesmo. Essa ausência de sentimentos é pior do que um sentimento ruim, penso eu. Segui minha vida. Estou caminhando para o segundo mês, sem notícias dela. E assim pretendo continuar. Um tempo atrás, a mãe dela me ligou, pedindo noticias. Disse a ela que se encontrasse com Ci na rua, nem a cumprimentaria. Como a vi chorar de preocupação, porque viu a foto dela careca no face, decidi contar o que havia descoberto. Apesar dos pesares, a velha sempre me tratou muito bem, e tenho muito carinho por ela. Ela chorou de desgosto, e disse que fiz bem e não querer mais contato com ela, porque mesmo sendo filha dela, a vó tinha toda razão quando dizia: Ela é sua filha, mas você não a conhecesse. Nos despedimos, ela me abençoou, e também partiu. Eu voltei ao sul, lavei a alma, recarreguei as baterias e agora estou aqui. Meus amigos saíram pra passear, e eu decidi ficar pra terminar isso de vez. Gostaria de colocar esse cadeado aqui, e não voltar pra casa com esse fardo. E nesse recomeço eu vou. Pode nem parecer, mas eu só tenho 23 anos. E se Deus me permitir, uma vida toda pela frente. Há tantas coisas pra se viver, não tenho tempo pra reclamar daquilo que se perdeu. Sankofa não é estagnar. É entender que sempre podemos recomeçar. Eu entendi.
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“Há um ledo engano em não querer ver que é dom recomeçar”. (OTM)
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FIM
