Recuei um passo, olhando atônito para Miguel. Este suspirou, puxou uma cadeira e se serviu de café que estava sobre a mesa, muito à vontade.
- Que historia é essa agora, Laura? Conheceu o garoto hoje... _ disse.
- Miguel, voce nao sabe de nada _ ela nao parava de me olhar, aquilo já estava me amedrontando _ Sonho com esse menino desde os quinze anos, vejo seu rosto quando olho o mar, quando contemplo as estrelas da janela do meu quarto, quando abro as cartas... É ele, sim.
- Que idiotice! Nao me diga que se apaixonou pelo fedelho sem conhece-lo! _ disse Miguel com certa irritaçao.
- O que? _ afastei-me com outro passo, a pique de sair dali correndo, horrorizado; era o que me faltava, uma prostituta louca encantada por mim!
- Calma, nao vá _ ela segurou meu pulso, sorrindo; tinha dentes pequenos como de criança, os labios pintados de vermelho intenso; era mesmo muito bonita, exalava um odor de perfume ordinario, mas assim mesmo nao parecia tao vulgarmente escandalosa como as outras; para quem gostava, ela era um prato cheio _ Pode ficar, eu nao vou fazer nada, Afonsinho. Sei que voce e' inatingivel para mim... Querido, o destino brincou comigo direitinho!
Voltou-se para Miguel com um sorriso radiante.
- Ele e' lindo, nao e', Miguel? _ perguntou.
Inquieto, ele virou o resto do cafe' na boca e limpou os labios no pano de prato bordado, se levantando da mesa.
- E eu lá sei, Laura! _ resmungou, acendendo outro cigarro.
Ela me olhou confidencialmente, dizendo baixinho:
- Ele sabe, sim... Ah, se sabe!
- Nao escute os conselhos dessa maluca, Afonsinho _ disse Miguel sem ouvir o que ela dissera _ Essa bruxa tem sangue cigano, por isso diz essas besteiras. Olhe o cafe', esta servido?
- Nao, eu... quero ir pra casa _ respondi meio atordoado com tudo aquilo.
- So' o espere o tempo de eu tomar um banho, sim? _ disse ele apagando o cigarro no cinzeiro lotado de guimbas _ Estou grudento de suor. Eu levo voce, há uns tipos suspeitos por essa rua, depois que anoitece... Melhor voce nao ir sozinho.
Se enfiou pelo curto corredor, desaparecendo nos comodos sombrios lá do fundo. Sozinho com Laura, sentei na cadeira que Miguel deixara, ainda um tanto tenso com tudo; a prostituta destampou um pote de vidro com biscoitos grossos, me oferecendo alguns com cafe'. Mastiguei-os sem muito interesse, tinham um gosto pesado de manteiga rançosa e particulas de algo que julguei ser amendoim triturado.
- Que ironia do destino _ disse se sentando a minha frente, me observando _ O unico homem que vou amar nesta vida jamais poderà corresponder, jamais me amarà como um homem ama uma mulher... Voce nao sabe, mas te amo desde os quinze anos, desde quando coloquei as cartas para mim, perguntando sobre quem seria meu amor verdadeiro, e vi seu rosto, um menino louro, da minha idade. "Inatingivel", foi a palavra que me veio na cabeça naquele momento. Mas porque?, eu me perguntei. Acaso ele amaria outra pessoa? Ou nunca nos encontrariamos? Mas entao vi voce e Miguel chegarem juntos e entendi tudo, tudo...
Quase cuspi sobre a mesa aquele biscoito horrivel, corando violentamente, sem onde enfiar a cara. Laura sorria, me fitando.
- Ele e' o seu amor verdadeiro _ sussurrrou, segurando minha mao.
- Nao sei do que esta falando _ disse, aflito, tentando me soltar; seu toque era macio e quente, mas dava uma sensaçao desagradavel, era como se ela sugasse qualquer coisa minha.
- Estou falando da sensaçao que voce teve quando ele olhou para voce, a sensaçao de que seu coraçao parou de bater, de que o mundo todo pareceu ter parado por um momento, e de que voce começou a viver de verdade naquele instante _ disse ela de um jeito estranho, como se olhasse para dentro de mim e dela propria ao mesmo tempo _ Falo da certeza de que a vida toda voce esperou por ele e o encontrou. Falo da sensaçao de estar se afogando dentro dos olhos dele, Afonsinho. Tambem sinto isso tudo olhando para voce. Mas ao contrario de nos dois, voce e ele existem para ficarem juntos... E quando foi que esse amor começou? Quando os homens olhavam para as estrelas á procura dos deuses e nem sabiam falar? Quando o universo ainda era jovem?
Levantei da cadeira bruscamente. Tinha ouvido historias de prostitutas que enlouqueciam devido à amargura de sua profissao, e aquele me pareceu ser um caso claro.
- Acho que vou sem o Miguel _ disse, saindo.
- Nao, ele já deve estar terminando...
- Entao espero là fora _ falei já descendo a escadinha de concreto sujo.
Felizmente ela nao veio me fazer companhia ali fora, entao aguardei Miguel, observando a noite envolvendo aquela rua feia e miseravel. "Vadia louca", pensei, sacudindo a cabeça. Mas como ela soube que eu queria Miguel? Estava tao na cara assim?
Enfim Miguel apareceu, cheirando a sabonete, os cabelos negros molhados e penteados, a camisa branca bem passada. Fiquei louco de vontade de beija-lo enquanto caminhavamos de volta para minha casa, ah se eu pudesse... Ele me disse que Laura tinha aquelas conversas estranhas às vezes, que era "clarividente" e sempre acertava uma penca de coisas.
- Entao porque ela nao acerta os numeros da loteria? _ perguntei debochado.
- Bem, ela diz que ve o que lhe mostram, nao o que ela quer ver, sabe? _ ele riu _ Quem nos dera se ela acertasse a loteria, Afonsinho! Tirariamos o pe' da lama!
- Mas voces sao... namorados? _ perguntei afinal, com receio do que ia ouvir.
- Nos? Nao! _ ele pareceu surpreso _ Voce teve essa impressao? Olha, nao digo que já nao fomos, voce sabe... Ela e' muito bonita, e por um tempo estivemos juntos, mas foi uma coisa superficial, nao durou muito. Somos mais amigos do que qualquer outra coisa. Ela trabalha no bordel da Dona Marlene, os homens vao como tigres para cima dela, precisa ver...
"Que nojo", pensei comigo, imaginando a cena.
- E parece que ela gostou de voce _ caçoou ele, me empurrando de leve _ Nao ficou interessado, nao? Porque ela disse que voce e' inatingivel?
- Sei lá! _ respondi desconcertado _ Ela me pareceu uma louca, Miguel, me desculpe.
- Tudo bem. Coitada, e' boa gente, Afonsinho. Voce vai ver.
"Quero e' ver seu pau duro esfregando na minha cara", refleti vagamente, suspirando, chegando em casa. Convidei-o para entrar, eu tinha um licor de pitangas que Elias comprou mas de que nao tinha gostado, dissera que tinha sabor de fruta podre. Acendi a lampadazinha suja e sua luz desmaiada iluminou parcamente a saleta, o sofá rachado no assento, o tapete desfiado, a mesa atulhada de livros e papeis de Elias. Miguel se sentou no sofá, e pude ouvir a madeira do movel rangendo sob seu peso. Na cama seria assim tambem? Aquele cavalo galopando, fazendo entrar tudo, fazendo sumir meu corpo de moleque magricela debaixo do dele...
Sentei perto dele, sorvendo o licor devagar. Ele me parecia inquieto, respirava ruidosamente e nao me olhava. Podia ouvir o Chopin tocando na minha mente, tao triste nos seus acordes doces. "Amor verdadeiro", disse Laura. Era ele? Por isso eu sentia aquele choque quando o tocava? Por isso meu coraçao parava quando ele me ohava nos olhos? Por isso eu tinha a sensaçao de ter encontrado algo importante que procurei durante muito tempo? Algo? Era ele?
"Amo esse homem, meu Deus", pensei sentindo meus olhos marejarem. Eu era tao jovem, o que sabia sobre amor? Era aquilo? Aquela avalanche interna, aquela agonia mesclada á paz, á completude? Um sentimento mais velho do que as montanhas, do que os continentes, do que a primeira gota de chuva sobre a Terra... Miguel, eu te amo desde o inicio de tudo.
- Miguel... _ sussurrei, chegando meu rosto mais perto do dele.
À luz amarelada da lampada suja, pude ver seus olhos brilhando, confusos, surpresos consigo mesmo. O que sera que ele estava sentindo? Porem se deixou aproximar lentamente, os labios entreabertos num halito quente de alcool e pitangas... Encostei minha boca na dele, sentindo seu sabor, a aspereza de sua barba mal feita, e o choque que percorreu meu corpo todo como um raio, disparando meu coraçao, me fazendo chorar em silencio enquanto sentia Miguel. Foi poderoso, tao poderoso quanto dois mares que se encontraram na furia da natureza e misturaram suas aguas tornando-se um so'.
*
*
*
*
Obrigada pessoal!
aline.lopez844@gmail.com