Quatro dias mais tarde Elias chegou da temporada em S. Paulo. Veio numa tarde de chuva, trazendo roupas novas que sua mae havia feito, um par de sapatos lustrosos, e os meus doces que ele tinha prometido, mas que no entanto acabou comendo vàrios ao longo da viagem de trem. Quando veio me beijar, notei que ele fedia a sovaco e roupa suja, o que fez meu estomago se revirar como nunca; comentei que ele precisava de um banho.
- A frescura de sempre, nao? _ respondeu de cara feia _ Voce e' mais cheio de nove horas do que uma garota, Afonso.
"Seu cu, seu porco!", pensei com raiva, roendo os restos de doce que ele trouxe para mim. Custava muito aquele idiota tomar banho todos os dias? Era um esforço tao grande assim? Garoto mais nojento... Imaginei o estado das partes intimas dele, me perguntando se nao se lavaria antes de se deitar comigo; evidentemente, ele estava ávido por isso, afinal um mes inteiro sem fazer amor... Observando-o descarregar suas coisas, seu andar manco, duro, a cabeleira desgrenhada, sua voz e cheiro nauseabundo, compreendi que jà o detestava, que tinha asco dele, e que precisava deixa-lo o quanto antes.
Nessa noite, enquanto ele me penetrava numa suadeira estranha como se estivesse em vias de se gripar, evitei olhá-lo, tenso, nauseado do seu cheiro, sem excitaçao nenhuma, pensando em Miguel. Havia uns dois dias que nao dormiamos juntos, por certo respeito a casa de Laura, e tambem por uma persistente culpa que ele nao conseguia esconder completamente; porem nao estava arredio como no começo, nao mais me fugia pelas maos. Ainda conversavamos no pier, e quando a noite caia passeavamos pela areia morna da praia, quase em silencio. Era em momentos assim que eu podia sentir como se fossemos as unicas pessoas vivas no mundo inteiro, que eu estava nele e ele em mim de um modo misterioso que talvez eu nunca fosse entender por completo. Laura, que por esforço proprio e teimosia estava tambem se tornando minha amiga, disse que "vibravamos a mesma cor de aura" quando estavamos juntos. O que diabos aquilo significava eu nao sabia, e Miguel ria, sem acreditar em nada. Mas tambem nao sabia explicar porque, segundo ele, sonhava comigo toda noite desde que nos conhecemos.
- Nossa... Como eu precisava disso... _ sussurrou Elias apos terminar, escorregando para o lado e retomando o folego; estava tao fissurado que sequer percebeu minha frieza e expressao de asco assim que me levantei e fui tomar outro banho; o porcalhao dormiu assim mesmo, suado, fedendo a semem e pele suja.
Um novo dia trouxe, entretanto, maior lucidez e perspicácia a Elias. Foi logo cedo, e apesar de ser um sàbado nos levantamos ás seis horas, em silencio. Nao sei ate que ponto minha frieza e contrariedade estava assim tao visivel, mas quando me dei conta ele me observava atentamente, desconfiado.
- O que houve? _ indagou _ Voce esta estranho ou e' impressao minha? Esta calado, distante, quase nao me olha na cara... Achei que estivesse morrendo de saudades minhas...
Nao vi porque adiar a verdade, ou omiti-la. Assim, falei de modo firme, encarando-o sem medo:
- Estou apaixonado por outro homem.
Com uma certa satisfaçao perversa, vi as cores do rosto de Elias sumirem e sua boca se entreabrir de espanto. Ele tirou os oculos para me ver melhor, e nos seus olhos assustados, incredulos, o odio veio se avolumando, subindo rapido como leite fervendo.
- Como e' que e'? _ exclamou _ Voce me trocou por outro?
- Eu me apaixonei por um dos estivadores do porto, Elias _ disse simplesmente.
Num salto desajeitado, quase perdendo seu parco equilibrio, Elias levantou da cadeira, avançando para mim aos gritos.
- Seu puto, seu cachorro desgraçado! Andou dando para outro enquanto estive fora?
Antes que ele me alcançasse sai da sala, entrando no quarto e já arrumando minhas coisas atropeladamente, jogando-as de qualquer jeito dentro de minha mala de papelao esfolado. Como a porta nao tinha tranca, nem me dei ao luxo de fecha-la, e por esse motivo Elias rompeu no quarto, claudicando, rubro de odio, me cobrindo de tapas e socos nas costas.
- Quem e' esse maldito para quem voce esta dando? _ gritava, ofegante _ Fala! Seu boqueteiro de merda!
- Me solta! _ ele me agarrou e rolamos pela cama, aos safanoes _ Nao vou dizer nunca!
- Eu vou te matar! _ resmungou ele, armando um soco para mim; nesse momento empurrei-o da cama com toda a força, e ele caiu no tapete imundo, tendo trabalho para se erguer. Terminei de pegar minhas coisas, que eram mesmo muito poucas, e nao me esqueci do meu caderno de desenhos, e' claro.
- Era outro pau que voce queria, nao era? _ Elias se levantou com esforço, me encarando dum jeito feroz, apoiando-se na cabeceira da cama _ Nao sou homem o suficiente para voce, sua bicha sem vergonha?
Fechei minha mala, trancando-a, e sai do quarto. Mancando horrivelmente, Elias me seguiu. No caminho pegou um copo no armario e o atirou contra minhas costas, num baque dolorido; o copo saltou para o chao e se espatifou em tres pedaços. Continuei andando.
- Seu filho da puta... Eu te amava _ ele disse numa voz embargada, em seguida histerico outra vez _ Vá embora! Maldito. Desapareça daqui!
Atirou ainda um sapato que veio bater no meu ombro no instante em que eu saia. Doeu bastante, sai esfregando o local atingido enquanto Elias bateu a porta num estrondo, às minhas costas, praguejando consigo mesmo. Na rua algumas crianças e mulheres curiosas me olhavam, atentas á briga, e nao soube ate ponto ouviram da discussao. Passei altivo por todos eles, me dirigindo ao porto sem pensar muito; talvez precisasse procurar um quarto barato de pensao ate o fim do dia, mas antes preferi abrandar toda aquela tensao na contemplaçao do mar, no meu lugar favorito, o pier.
Os estivadores trabalhavam meio periodo no sabado, vi Miguel entre eles mas o deixei quieto por enquanto, sem querer atormentá-lo com meus problemas. Entretanto, apos meia hora que passei ali, ele se aproximou de mim, preocupado, indagando o porque daquela mala e minha presença ali no porto, naquele horario. Contei que tinha saido da casa de Elias e Miguel, que sabia por alto de minha relaçao com o garoto, já que nunca me abri muito sobre aquilo, apenas perguntou se ele nao me fizera nenhum mal.
- Estou bem, nao se preocupe _ olhei-o com carinho _ Preciso procurar um lugar barato para ficar, Miguel, se voce puder me indicar algum...
O chefe dos estivadores gritou com ele, mandando que retornasse ao trabalho.
- Tenho que ir agora _ disse _ Olha, vá para a casa de Laura. Fique lá ate eu voltar, certo? Depois resolveremos isso.
Fazendo como ele pediu, encontrei Laura em casa, lavando roupa no quintal. Veio me abraçar, a pele dos braços magros e nus umida e fria da agua do tanque, euforica como sempre ficava quando me via. Ajudei-a a estender as peças nos dois varais, enquanto contava em voz baixa sobre minha saida brusca da casa de Elias. Quando falei que precisava de um lugar para ficar, ela encerrou a questao de modo firme:
- Voce vai ficar aqui, está decidido. Coloco um colchao no quarto de Miguel, arrumo suas roupas num bau velho que tenho, e estamos arranjados. Vai ficar ao lado do seu amor, meu querido _ ela sorriu _ E vou adorar ter voce morando comigo.
Constrangido, nao recusei, agradeci brevemente, ainda estendendo os lençois e camisas que ela ia torcendo. Ela nao investia muito como eu esperava, exibia vez ou outra um olhar carinhoso, tocava no meu rosto ou me beijava nos cabelos quando estavamos proximos; era, porem, algo quase fraternal, um tanto triste pois refletiam ecos de um amor sem esperança. Nessa manha ela usava um dos seus longos vestidos à cigana, rosa-claro estampado de pequenas camomilas soltas, os compridos cabelos escuros ornados com flores de cetim branco e lilás, miudinhas; nesses momentos em casa ela nao aparentava ser a prostituta do bordel de Dona Marlene, e sim uma moça, uma jovem cigana como tantas.
Depois que terminamos de estender a roupa lavada, Laura buscou na cozinha uma bacia de louça com arroz cru, e sentados num banco rustico de madeira pintado de verde, separamos os graos limpos dos ciscos e graos estragados. Logo seria hora do almoço, e ela disse que Miguel chegava faminto.
- Sabe o que ele gosta de comer? _ ela indagou, sorrindo _ E' muito simples: arroz, feijao e carne, muita carne bovina. Tambem e' louco por cafe', acho que isso voce percebeu.
Era engraçada essa ideia de ter um homem inteiro para "descobrir", ou decifrar. Na verdade, sentia que o conhecia profundamente, porem essas particularidades eram coisas nas quais eu nao pensava muito, mas mesmo assim era interessante saber delas.
No meio dessa conversa inteiramente futil, notei o semblante de Laura ficar sombrio de repente. Ela deixou o arroz limpo de lado, observou a roupa que secava sob o sol forte, gotejando sobre a grama rasteira e irregular, e depois olhou para suas maos, as unhas curtas pintadas de vermelho intenso, começando a descascar nas extremidades.
- Voce ouviu falar na guerra, e' claro _ disse, sem me olhar _ Todos so' falam nisso.
Evidente que eu sabia disso, era o fato que convulsionava o mundo lá fora hà anos. Aquilo, no entanto, me parecia algo distante demais, algo que nunca me atingiria e de que eu nao me ocupava.
- Claro, Laura. E o que tem isso?
Ela me olhou diretamente nos olhos, com uma mescla de compaixao e duvida.
- O Miguel _ disse em voz baixa, suspirando _ Ele quer ir para a guerra, Afonsinho.
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Um thanks a todos que estao lendo.
Abraços!