Não importavam os meus motivos pra ter começado aquele namoro, eu já me arrependia. Me arrependia tanto que pensei uma perda de memória e fingir não conhecer aquela mulher.
Queria estar em casa, dormindo. Caminhando sem rumo por aí. Tudo, menos estar naquele restaurante com Érica.
-... que eu nem ia precisar! Você acredita, Leon? -ela exclamou a pergunta retórica e quis fincar a faca no meu pescoço.
Concordei com um "Não" tão sem emoção que podia gelar a deserto do Saara. Érica não percebeu, ou fingiu não perceber minha indiferença. Continuou tagarelando sobre algo que eu não dava a mínima. A voz dela era tão aguda e alta que todos olhavam pra ela com olhares afiados, de maldição. Uma irritante do caralho!
Só conseguia pensar se namorar alguém pra ter status valia tanto. Érica não valia! Com certeza! Chata, pouco atraente e muito ruim de foda! Por Deus! Uma punheta me satisfazia melhor que comê-la!
De acordo com minha mãe, namorar a filha de um grande empresário poderia abrir portas pra nossa família.
Não a contestava. Nunca o fiz! Não seria agora que faria.
Mas namorar aquela mulher seria a primeira coisa que eu fiquei realmente tentado a contradizê-la.
Suspirei ao ver que meu suco havia terminado. Bebê-lo era minha única desculpa pra não comentar nada, tão pouco prestar atenção no que ela dizia. Chamei um garçom apenas levantando o braço, não realmente olhando para ninguém, focando minha atenção em um ponto distante de Érica.
Não estranhei nenhum garçom vir de imediato. Érica humilhou publicamente o último que apareceu porque o coitado não anotou que ela preferia peixe com um molho que me falha o nome.
-Pois não, senhor? -uma voz um tanto grave me deu um susto. Era uma voz quase cantada, com um tom bem discreto de ironia e sarcasmo.
Virei meu rosto para encarar o garçom e percebi que não foi o mesmo que nos atendeu da primeira vez. Ele tão pouco se vistia como garçom.
Era um jovem, de uns dezoito anos, talvez mais. Rosto bem cuidado e preservado, sem nenhuma imperfeição. Bochechas bem rosadas, como se ele tivesse vergonha de algo ou como se alguém tivesse lhe dado um tapinha. Cabelos de um bagunçado muito desconcertante de fios negros caindo charmosamente por sua face e ombros. Porte bem desenvolvido e soube que ele fazia academia...
Mas o que prendeu minha atenção foi os olhos. Azul como o céu de verão e castanho como uma tempertade. Duas cores de olhos distintas. Era lindo e incrivelmente assustador.
-Heterocromia. -ouvi ele murmurar, sorrindo.
Caralho, que sorriso!
-Como?
-Meus olhos de cores diferentes. Chama-se heterocromia. Vi que isso chamou sua atenção... senhor. -ele completou novamente com aquele tom sarcástico. -O que deseja?
-Suco. -minha voz saiu muito fraca. -Suco de laranja! -falei com mais convicção.
-Suco de laranja! -ele acentiu, anotando na minha comanda. -E pra senhorita? -ele virou-se pra Érica.
-Ah, nada, não. -ela sorriu, sem graça.
-"Ah, nada, não". -o homem anotou na comanda, com um olhar incrivelmente sério.
Me dei um beliscão pra conter uma gargalhada ao ver a cara assustada de Érica.
-Não! Não foi isso que eu quis dizer! Eu quis dizer que não quero pedir.
-Infelizmente "eu-quis-dizer-que não-quero-pedir" não temos no cardápio. -ele novamente estava sério, mas eu via nos seus olhos bicolores o sarcasmo transbordando. -Mas eu posso providenciar!
Érica esboçou um pouco de confusão e vergonha.
-Isso é alguma pegadinha?
-Não senhorita! -ele pareceu magoado ao ouvir aquilo. -Seu pedido será providenciado!
-Não quero nada. Entende? -Érica gesticulou, como se tentasse explicar algo que não soubesse como. -Não estou com fome. Não quero nada.
-Ah! Sem pedidos. -o garçom riscou algo na comanda e lançou um olhar de poucos amigos na direção dela. -Por que não disse logo? Não tenho tempo pra perder com você!
E saiu caminhando deixando Érica vermelha como tomate para trás. Com todo o dinheiro que tinha, penso eu, jamais havia sido tratada com tal grosseria.
-Vou falar com o dono do lugar para despedir esse engraçadinho! -ela rosnou, baixinho.
Levantou-se pisando forte e foi até o balcão. Sua voz era alta o suficiente pra que eu ouvisse de onde estava ela pedir para a balconista pra falar com o gerente ou com o dono do estabelecimento.
A balconista sumiu e, quando voltou, trouxe o garçom com seus olhos coloridos.
Érica se encolheu um pouco, mas continuou firme.
-Eu pedi pra falar com o dono do local! -ela falou com a balconista que estava ao lado do homem.
-Então eu o chamei. -a balconista apontou pro homem.
-Qual a sua reclamação, senhorita? -a voz dele estava ácida.
-Você é o dono desse estabelecimento? -ela riu, incrédula.
-Sou.
-Você me tratou mal! Essa é a minha reclamação.
-Não tratei a senhorita "mal". Fiz meu trabalho. Você estava falando alto, perturbando a paz dos meus clientes, expulsando-os com seus agudos.
Mesmo de longe vi a face horrorizada de humilhação de Érica. Ao correr meu olhar pelo estabelecimento vi que todos estavam com sorrisos satisfeitos no rosto.
Veio pisando firme, como uma criança, até minha mesa e depositou ali uma nota de cem reais.
-Vamos embora! -ela grunhiu pra mim.
Recostei-me no acento, olhando-a preguiçosamente.
-Não.
-O quê?
-Não. Vá você!
Fiz uma pausa, sorrindo.
-Vou esperar mais um pouco meu suco de laranja.
Ela saiu do restaurante num piscar de olhos. Suspirei de alegria ao ficar finalmente sozinho.
-Seu suco. -levei um susto quando o dono do restaurante depositou o copo na minha frente.
Ele encolheu um pouco os ombros.
-Desculpe por ter que fazer isso com sua namorada, mas ela sempre vem aqui e trata todos mal. Pensei em pregar uma peça nela, desta vez.
-Ah, tudo bem. Ela não é minha namorada. -sorri. -Pelo menos não mais.
-Sorte a sua.
Virou-se para sair, mas eu agarrei seu braço antes de me dar conta do que fazia.
-Qual seu nome?
Ele fixou seus olhos na minha mão presa nele e depois me encarou com feições fechadas.
-Por que quer saber?
-Curiosidade.
-Solta meu braço.
Só naquele momento percebi que o estava apertando forte demais. Desfiz meu aperto bem devagar e vi que as marcas dos meus dedos ficaram na sua pele. Ele indireitou-se e pareceu pensativo ao depositar seu olhar no meu.
-Xavier. -disse, por fim.
Estendi minha mão meio hesitante a ele, que a apertou polidamente. Sua mão desaparecia por completo no meu aperto.
-Sou Leon. É um prazer.
Xavier apenas soltou minha mão e saiu caminhando, sem retribuir minha fala ou qualquer outra coisa. Apenas saiu.
Fiquei olhando-o se afastar, soltando um longo e preguiçoso suspiro. Tomei o meu suco e, logo após pagar a conta, saí do restaurante.
Os dias vinham sendo à base de chuva e nuvens nubladas. Eu nem lembrava mais que sensação era ter o sol batendo contra a minha pele.
Estacionei meu carro em frente a minha casa e, antes de alcançar a porta da frente, minha mãe a abriu. Ela estava me esperando chegar! Pronta para atacar.
-Leon! -ela rosnou, me puxando pra dentro de casa. -O que você fez?!
-Não fiz nada! -franzi a testa ao perceber que meu pai não estava ali com ela... eles SEMPRE estavam juntos.
-Érica me ligou dizendo que você a deixou sozinha e ficou naquele restaurante. Ela disse que foi muito destratada e vai processar o lugar.
Fiquei em silêncio observando-a. Marli precisava urgentemente diminuir a quantidade de maquiagem. Ela parecia uma boneca de voodoo.
Esse pensamento me fez soltar uma risada, que não consegui conter a tempo. Minha mãe estreitou os olhos.
-Qual a graça?! Não vê que, por sua atitude, você pode perder essa chance?!
-Mãe, Érica é muito... nada a ver comigo. -choraminguei, me jogando no sofa. -Ela só fica tagarelando sobre coisas que eu nem quero saber! Não temos nada em comum! Não gosto dela.
-Não faça por você! -ela me cortou, com sua língua afiada. -Faça pela nossa família! Você não tem ideia do poder que os pais da garota têm!
Novamente fiquei em silêncio por um tempo. O que eu poderia fazer? Viver do status da família era minha única saída... eu tinha vinte e oito anos e nunca trabalhara na vida. Se começasse iria conseguir algo com o salário baixo... a ideia de trabalhar por quinhentos reais por mês me fazia rir na época.
Tinha inveja de Homero... meu irmão mais velho. Tinha muita inveja dele! Mais que eu admitiria em voz alta. Deus! O homem saiu da nossa família com um dinheiro gordo da nossa avó e fez esse dinheiro quintuplicar.
Minha mãe o odiava por ter se dado tão bem sem ela... meu pai, por outro lado, sempre sorria discretamente quando falávamos de Homero.
-Onde o pai está? -perguntei, de repente, lembrando que ele não estava presente.
-Ele saiu. De novo! -ela bufou. -Está estranho. Não fala comigo e quando digo algo, ele briga.
Ela fez uma breve pausa, falando mais consigo mesma do que comigo.
-Jonas está bem estressado ultimamente, Leon. Ele nunca foi estressado. Nunca foi ausente. Está faltando compromissos. Ele não é assim!
Franzi ainda mais a testa. Minha mãe era uma megera. Estávamos todos cientes disso. Ela só servia para soltar farpas em cima de todos. Mas meu pai jamais brigava ou discutia com ela, tão pouco se ausentava daquela maneira.
Alguma coisa de muito diferente ocorreu com ele.
A porta se abriu e minha mãe e eu viramos a cabeça no mesmo.instante para ver meu pai entrar. O sorriso que estava em seu rosto morreu no mesmo segundo que ele colocou os olhos na minha mãe.
Seus cabelos castanhos escurecidos bagunçados estavam mais bagunçados que o normal. Seus traços que sempre estavam relaxados e tranquilos, estavam tensos.
-Onde estava, Jonas? -minha mãe exigiu saber.
-Fui caminhar por aí. -a voz dele era muito grave. Ecoava por todos os cantos quando ele falava.
Ele se direcionou pras escadas, mas parou quando minha mãe segurou seu braço.
-Caminhar? Você está estranho, Jonas! Está saindo todo o tempo, faltando os compromissos do comitê de caridade. Estão todos perguntando! O que há de errado com você?
Meu pai pareceu nem notar minha presença. Suspirou de irritação e lançou um olhar mortal a minha mãe.
-Cansei. -disse. -Cansei, Marli! Foi isso que aconteceu!
Ele subiu as escadas e ela foi atrás dele. Pelos gritos eles estavam brigando. E brigando feio!
Eles jamais brigavam.
Levantei do sofá de onde estava atirado e me direcionei pra fora. Não queria ficar em casa para participar daquela festa dos gritos. Dei partida no carro e dirigi por aí, sem rumo. Nem via pra onde estava indo, apenas ia.
Quando estacionei, vi que estava novamente no restaurante onde fui mais cedo. Fiquei ali, olhando o movimento, até meu celular tocar.
Praguejei de irritação antes de atender.
-Alô. -disse, secamente.
-Leon, onde está? Não te encontrei em casa. -a voz de Érica me enjoou. -Seus pais pareciam estar discutindo quando cheguei.
-E daí? Deixe-os!
-E daí?! Leon, o que você tem?
-Nada. -suspirei.
-Onde está? Precisamos conversar.
-Érica, realmente precisamos conversar, mas não vai ser hoje. Tô cansado, com a cabeça do tamanho do mundo. Amanhã a gente se fala.
Ela respirou pesadamente antes de dizer um "Tá!". Desliguei e voltei a olhar pro restaurante. Levei um susto ao ver que havia um par de olhos coloridos me observando da porta.
Xavier parecia um falcão me observando e eu tinha certeza que eu também parecia um, a observá-lo. Meus olhos se arregalaram quando ele apontou o dedo indicador na minha direção e sinalizou um "vem aqui!" mexendo os dedos.
Meu estopor foi tão grande que só saí dele quando Xavier parou ao lado do meu carro, batendo no vidro. O baixei e ele colocou a cabeça dentro do carro.
-O que faz aqui? -ele disparou.
Fechei os olhos e quando os reabri ele ainda me encarava com firmeza. Seus olhos bicolores me assustavam um pouco... eram tão grandes. Tão brilhantes e diferentes.
-Sei lá. -admiti. -Apenas parei aqui. Algum problema com isso?
Ele pareceu surpreso, mas logo juntou as sobrancelhas como se pensasse algo de muita dificuldade.
-Você veio pelo anúncio de emprego? -ele indagou.
-Como?
-O anúncio de emprego. Estou precisando de gerente. Você veio por causa disso?
-Não. Mas... bem, eu gostaria de tentar. -completei antes de perceber.
-Ótimo! O emprego é seu. -ele disse, à queima-roupa.
Fez uma pausa, talvez pra me deixar digerir a informação.
-Como é que é? -pisquei, surpreso.
-Você não queria o emprego?
-Sim...
-Conseguiu! Vem comigo.
Me vi obedecendo-o e saindo do carro. Fui seguindo-o por todo o restaurante. Foi uma sessão de milhares de apresentações de empregados, desde cozinheiros até faxineiros. Fui familiarizado com a cozinha, o banheiro, a dispensa e outros cômodos. Xavier me entregou uma agenda com números de entregadores de mantimentos, mercados de entregas 24h e junto com isso uma chave de um armário, onde havia ternos e sapatos.
-Você deve cuidar de tudo aqui. Ser tudo! -ele disse, rapidamente. -Se algo está fora do lugar, mande arrumar ou arrume você mesmo. Se alguma coisa der errado, a culpa será completa e absolutamente sua. Você vai ser meus olhos e ouvidos nesse restaurante.
Acenti com a cabeça, de olhos arregalados.
-Você é um patrão aqui. Por isso use o terno o tempo todo. -ele continuou. -Sorria sempre pros clientes, assim como os funcionários. Você vai precisar de favores de todos os empregados, por isso seja simpático e atencioso. Se eles têm alguma reclamação coerente, escute e resolva! Seu salário não é muito, mas creio que o suficiente. Conversamos sobre isso mais tarde, assim como seu horário. Alguma dúvida?
Quase ri, dado o seu tom tão normal.
-É muita responsabilidade pra alguém que você não conhece. Por que está fazendo isso?
Ele me deu um leve sorriso enquanto depositava o molho de chaves do restaurante em minhas mãos.
-Estou experimentando essa coisa de confiança à primeira vista. Sinto que você não irá trair essa confiança.
-Não irei! -prometi, agarrando com unhas e dentes a oportunidade louca que surgiu de repente.
...
*Oi, galera! Tudo bem com vocês?
Como prometido, postei o primeiro capítulo do conto! Vocês terão que ter paciência para lê-lo todo, pois meu tempo está corrido. Terá um pequeno intervalo de dias entre alguns capítulos, pois não quero postar qualquer coisa. Pra vocês, só o melhor. Espero que tenham gostado desse começo!
Aliás é bom estar de volta!*