Na Ordem do Caos
Capítulo 3 - Laços não acontecem, criam-se.
===== Casa 11h49min =====
Tinha finalmente chegado em minha casa, não havia lugar que mais me sentisse bem e ao mesmo tempo mais preso que o próprio lar. Peguei as chaves no meu bolso e tentei abrir, mas eu era muito impaciente com fechaduras, não raciocinava direito nesses momentos.
— Calma, deixo que eu abro para você. – Lourenço disse pegando no meu braço.
— Não. – respondi seco enquanto tentava abrir. — Não sou criança – completei.
Depois de tentativas repetidas com as mesmas chaves, finalmente abriu.
— Finalmente! – Lourenço expressou aliviado.
Quando entrei, Pólux tinha aparecido bem na porta pra me receber, como de costume. (Pólux era um dos meus gatos, Cástor e Pólux, um branco e outro preto, macho e fêmea. Não necessariamente na mesma ordem).
"Meeeooooww"
— Oi Pólux linda! – cochichava docemente enquanto ficava de cócoras para afagar entre seus pelos. — Cadê o Cástor? – eu questionava ao bichano com uma voz infantil.
— Deve estar na rua – disse o Lourenço adentrando na casa. — Queria poder receber a mesma atenção e carinho que esses animais – comentou ele de relance.
— Quem sabe? – Indaguei enigmático enquanto ficava em pé – Se deixar os pelos crescerem, vai estar perto. – disse eu retirando os sapatos dos meus pés. E de imediato fui à pia da cozinha lavar minhas mãos.
— Ótima ideia – disse ele alegre.
— Não devia se animar tanto assim – dizia enquanto enxugava minhas mãos. — E tira teus sapatos antes de entrar aqui – ordenei rigorosamente.
— Tá bom, senhor certinho. – disse ele irônico enquanto se dirigia ao tapete da porta.
— Não quero minha casa fora de ordem. – expliquei me sujeitando as ironias dele.
— Não é eu aqui a colocaria, tenha certeza disso. – afirmou ele convencido.
— Que seja! – expressei com desdém.
Fui pegando uma vassoura para tirar o pó que entrou da rua que estava em nós e varria o chão. E fui lavar minhas mãos na pia da cozinha novamente.
— Devia tratar dessa tua compulsividade. – disse ele com um tom de voz mais sério.
— Não, obrigado. – disse seco e me dirigindo ao quarto.
— Como pode um ser um estudante de psicologia e ser tão negligente com seu próprio trastorno? – questionou ele me dando um sermão.
— Não sei. Deve ser mais umas das minhas contradições pessoais – disse eu franzindo a testa enquanto guardava meus pertences atenciosamente.
— Não é. É só mais um caso da sua teimosia inconsequente. – disse ele impaciente na porta.
De fato eu não podia me entender, talvez ninguém pudesse. Eu tinha minhas neuroses e TOCs, e claro, minhas pirraças. Fiz o máximo para ser livre das pessoas, que me tornei escravo das próprias condições, em especial da própria liberdade que adquiri. Não o rebati, ele estava mais que certo. Apenas continuei o que eu estava fazendo.
— Vou cozinhar hoje. Pode ir tomar um banho, se quiser. – Sugeriu ele desistindo de uma conversa séria.
— Eu que devia cozinhar hoje – murmurei enquanto abria uma gaveta. E olhei pra ele.
— Depois do que houve, melhor não. – disse ele suspeito. — E eu cozinho melhor.
— Não seja convencido – disse me retirando do quarto com uma toalha.
— Tenho que me gabar das coisas que eu sei fazer bem, né – ressaltou ele orgulhoso seguindo para à cozinha.
— Tá bem. – respondi me dirigindo ao banheiro.
A cozinha se encontrava no caminho para o banheiro. Então me encontrei com Lourenço bisbilhotando minha geladeira.
— Verduras, legumes, frutas, derivados de grãos... – Cochichava ele atencioso. — Só comida de coelho você tem aqui, hein? – comentou ele deselegante. — Nenhuma carninha? – indagou enquanto me olhou ao passar.
— Você cria muitas expectativas em cima de um vegano. – respondi irônico.
— Por sorte encontrei também alguns ovos e leite aqui – Revelou enciumado. — Dá pra fazer pelo menos um omelete pra mim – completou sorridente.
— Não faz dois dias que deixei de ser ovolactovegetariano. – Expliquei envergonhado.
— Aham, sei. – expressou ele desacreditado. — Ovolá... O quê? – disse ele brincando.
https://youtu.be/s3Bi0sRREzE
Entrei no banheiro com intuito de não lavar só meu corpo, mas como minha cabeça. O banho parecia ser uma experiência energética-espiritual-pessoal muito interessante, e eu podia sentir até as entranhas as águas me limpando. Na esperança de um momento onde não se pensa nada, mas acontece tudo. É primoroso em sua vitalidade e restaurador em sua espiritualidade.
Fiquei uns 15 minutos no banheiro, mesmo tendo acabado de tomar. Abrir uma porta significa encarar uma realidade bastante difusa. Tive de sair, estava com fome.
— Tem um cheiro um bom – elogiei enquanto o observava em prática.
— Melhor ir vestir, o que eu estou fazendo pra você vai demorar mais um pouco. – Disse ele enquanto abria a tampa da panela no fogão.
Nem era preciso dizer, fui eu me vestir, o clima estava muito quente naquele início de tarde, mas não pude de deixar em nenhum momento de me cobrir da cabeça aos pés, e de preto. Me direcionei de volta para cozinha.
— Eu não me surpreenderia se você passasse mal de novo. – disse ele me olhando da cabeça aos pés. — Não precisa ser gótico no verão, tá? – disse ele sarcástico.
— Foda-se. – resmunguei. — Queria um amigo e ganhei um pai/mãe e todo resto de conjunto familiar e social que tanto fugi — disse me sentando. — Você vale por todos.
— Comprou sabendo do pacote incluso. – disse ele confiante. — E está pronto, Voilà! – anunciou como se fosse um mestre cuca. — Fiz uma sopa de abóbora especialmente pra ti. – disse forma carinhosa. — Sei como é apaixonado por abóboras, deixei esfriar um pouco, até soprei. Sei como não gosta de comidas muito quentes – constatou ele, logo se sentando junto a mim. — Deixa eu colocar – disse ele pegando meu prato.
Ele estava tão atencioso, e parece gostar do que faz. Fez questão até de me servir nos meus próprios utensílios (sim, eu só comia nas louças que eu escolhesse, e eram únicas pra mim) sabia até que quantidade eu conseguia comer, mesmo eu exagerando em dados momentos. Antigamente eu não tinha outras louças, porque eu morava sozinho, só cozinhava pra mim quando eu podia, mas à 4 anos ele conseguiu me fazer uma mudança drástica. Comprei outros utensílios pensando nele, ele frequentava mais minha pequena casa. E considerei ser necessário, na primeira vez ele comeu na própria panela que cozinhou.
Quando me servia, percebia como ele estava acostumado a cada neurose e caprichos meus. Isso o faz parecer um escravo meu, mas no dia que eu o aceitei, tinha aceitado ser mais dependente de alguém do que alguém de mim.
— Obrigado. – proferi realmente muito agradecido. — Parece delicioso. – olhei aquela sopa de tom alaranjado e cheiro atrativo. — Vai ficar só com seu omelete mesmo? – questionei.
— É o que tem e prefiro. Mas achei fofo sua preocupação – disse ele sorridente.
Apenas o ignorei sua gracinha que era tão comumente. Peguei minha colher e a analisei minuciosamente, pronto para colocar no prato.
— Espera um pouco! – exaltou ele pegando na minha mão com a colher. E fiz uma expressão confusa. — Antes temos que orar para Ceres e agradecer por esse almoço. – disse gesticulando e juntando as duas mãos.
— Pára, seu palhaço – disse rindo dele.
— Satã é melhor pra você, né? - indagou ele ainda na palhaçada.
Eu ria muito com aquilo, ele era bom. Lourenço era uma das poucas pessoas que conseguia me tirar risadas.
— É bom te ver assim. – comentou ele mais sério me observando.
Era uma situação estranha. De repente percebi que por um momento estava feliz, era uma felicidade simples e contagiante. Felicidade por felicidade, eu não lembrava de perceber ou ter momentos assim, uma pintura vaga e monocrática sozinha em uma parede de um enorme salão. Contudo, logo percebi que ela durou até questioná-la, pensar era uma maldição. E meu sorriso acompanhou toda sua breve trajetória.
"Miaaaaauu"
Cástor tinha aparecido, e ficou se enroscando nas minhas pernas embaixo da mesa, e miava. Então direcionei minha atenção à sopa na minha frente, olhando fixamente e mexendo com a colha como se tivesse procurando imperfeições, examinando. Quando senti a mão de Lourenço em minha mão de novo intervindo, e eu vi seu olhar de reprovação.
— Eu confio. – cochichei olhando nos olhos dele. E engoli uma colherada da sopa.
Ele sorriu pra mim. Tanto tempo juntos, eu tinha que mostrar o mínimo de confiança nele.
— Era ele? – questionou-me mexendo no seu prato.
— Sim, era. – respondi angustiado.
— Surpreendente. – comentou prontamente. — Imaginei que fosse, quando disse o nome, e me lembrei das coisas que me contou quando se abriu comigo faz 3 anos. - dizia ele enquanto comia.
Eu abaixei a cabeça e comecei a lembrar de tudo.
— Você não precisa me dizer tudo se não deseja assim – disse ele tocando na minha mão. — Seja o que for, você pode fazer melhor agora do que não fazer o que queria como antes – eu concordei e fiz sinal de positivo com a cabeça.
Não conversamos mais até acabar, não gostava muito de conversas nas refeições, silêncio era uma virtude muito valiosa.
— Deixa eu pelo menos lavar minhas próprias louças – disse me levantando e juntando as louças na mão.
— Tá certo. – respondeu ele se afastando da mesa. — Vou enxugar então – apenas concordei.
A verdade era que ele se ofereceu para enxugar para me fiscalizar, era de um de seus hábitos para me perturbar.
— Você não cansa. – murmurei meio incomodado.
— Você nem sempre limpa direito as coisas – reclamou ele sincero.
— Intrometido! – exclamei ríspido. — Eu não estou em meu estado normal. Em outros a preguiça é uma doença minha e sabe do meu complexo de procrastinação – expliquei enquando usava a esponja com força em um prato.
— É intrigante como alguém tão obsessivo com limpeza consegue ser tão descuidado com a mesma às vezes. – proferiu uma verdade sobre mim.
— Sou um poço de contradições, e daí? – respondi ríspido. — São só coisas que só afetam a mim. – complementei enxaguando a louça.
— Isso não é verdade... – Cochichou ele com um olhar triste. — Passa pra cá! Deixa eu fazer isso por você. – Pediu ele seriamente.
Larguei a pia, resolvi trocar de lugar com ele, eu enxugaria as louças e as guardaria. Estava aprendendo a lidar e evitar conflitos inúteis. Observar ele quando não estava me importunando, me acalmava de certa forma. Foi quando ele cortou o silêncio:
— Você podia vim morar comigo. A minha casa é grande. – disse ele fixado nas louças. — Poderia trazer o Cástor e a Pólux.
— Não, gosto de ficar sozinho. – respondi seco.
— Já te disse que não precisa ficar sozinho sempre e tentar parecer forte na minha frente. – indagou ele ainda fixo na pia. — Você seria uma ótima companhia, e eu te ajudaria em tudo que você é faltante. – justificou ele impaciente.
— As coisas não são assim... – respondi introspectivo enquanto enxugava uma colher e me via no seu reflexo. — Não poderia te jogar um fado tão pesado como eu – respondi guardando a colher. — E você só está morando sozinho há 3 meses, se não achar companhia ainda, pode se acostumar – sugeri tentando fugir da situação.
Ele ficou calado após isso.
Lourenço morava com a família, que era no mínimo nobre desde que nasceu, aos 29 anos, há 3 meses ele conseguiu uma casa bastante grande e confortável. Quando ele comprou, a primeira coisa que fez foi me ligar e me convidar para morar com ele, algo que neguei imediatamente.
— Fora que morar juntos, seria praticamente estarmos casados. – eu disse ainda tentando justificar.
— Qual o problema? – questionou ele lavando o último utensílio. — Me parece uma boa ideia. – ressaltou ele entusiasmado.
— Sério? Nossa relação já é boa como está. – disse confiante a ele e guardava um copo.
— Está nada. Nem tem sexo. – disse ele mal humorado me entregando a louça.
— Exato. Estamos em uma relação assexuada. – repliquei explicando a situação. – E você pareceu ter aceito bem. – Indaguei indignado.
— Ah, devia olhar pelo meu lado. Eu não imaginei que era tão difícil ter um amigo íntimo e não poder tocá-lo, sabe? – disse ele cínico.
— Não, eu não sei. – respondi desacreditado nele enquanto guardava a última louça.
— Devíamos reformar esse horário, então – sugeriu ele enxugando as mãos. — Aí posso namorar comigo mesmo, e você pode dar uma de voyeur, que acha? – disse ele com um sorriso safado.
— Pode fazer o que quiser desde que não me envolva, querido. – rebati sorrindo também.
E a questão ficou por não ser. O tempo diria o resto.
Era tarde de domingo, um dos horários mais preguiçosos e entediantes da história da humanidade, não tínhamos nada para fazer como de praxe. Porém o Lourenço quis ficar mais, disse que poderíamos descansar um pouco e conversar um pouco no sofá. Acabou que ele colocou uma music ambient que tinha uns timbrais expressivos e vagamente me relembrava a areia e um pôr-do-sol, e se jogou no meu colo no sofá. Ao ponto que comecei a acariciar seus cabelos. Era uma circunstância agradável.
— Como vai ser de você e ele? – indagou ele.
— Eu não sei... – repentinamente quando pensava nisso tudo, ficava cada vez mais obscuro. — Mas eu vou me encontrar novamente com ele, disso eu tenho certeza – respondi sério.
— Ele me deu uma impressão de impetuoso. – comentou ele ingenuamente e se levantando para Televisão e voltando para meu colo.
— Quer saber? – Indaguei animado. — Está proibido falar ou pensar nele – murmurei seguro de si. — Parasitas não causam danos enquanto não tem posse sobre seu hospedeiro. – afirmei.
Aquele momento a sós pareciam raros, nunca nos sentíamos realmente estar somente os dois juntos. Era sempre uma sensação de observação e julgamento, sem privacidade. E estava tão gostoso sentir os cabelos negros, macios e sedosos na minha mão, poderia passar dias assim com ele. Sentir sua respiração, seu movimento, suas batidas... Ele tinha trocado a playlist que ele conectou o smartphone dele à TV. Colocou uma playlist de um coral belga de vozes femininas, chamado Scala & Kolacny Brothers, faziam versões de clássicos do Rock. E a música deles era um conforto na alma, não poderia ser mais perfeito para ocasião. Eu relaxava e ficava satisfeito por ter alguém comigo.
— Às vezes me pergunto porque alguém tão maravilhoso, prestativo e carinhoso seria amigo, não só amigo, mas tudo pra ela, uma pessoa tão torta e problemática como eu. – sussurrava com angústia nas palavras.
— Pode ser uma incógnita. – Cochichou ele sereno. — Uma coisa que eu sei que é que coisas acontecem e pessoas simplesmente são. – dizia ele reconfortante enquanto virou a cabeça e sorriu pra mim.
https://youtu.be/ZICJ2ZPh63Y
Aquele momento tocava a música versão de "Every Breath You Take" do " The Police.
"Cada suspiro que você der
Cada movimento que você fizer
Cada laço que você quebrar
Cada passo que você pisar
Eu estarei te observando
Todo santo dia
Cada palavra que você disser
Cada jogo que você jogar
Cada noite que você ficar
Eu estarei te observando
Oh, você não enxerga?
Você pertence a mim
Meu pobre coração sofre tanto
Com cada passo que você dá
Cada movimento que você fizer
Cada promessa que você quebrar
Cada sorriso que você fingir
Cada direito que você reivindicar
Eu estarei te observando"
E eu o acompanhei, comecei a cantarolar.
"Desde que você se foi, eu tenho estado perdido sem direção
Eu sonho à noite e só consigo ver seu rosto
Eu olho em volta, mas é você que eu não consigo substituir
Eu sinto tanto frio e desejo seu abraço
Eu continuo chorando, querida, querida, por favor"
E cantamos juntos o resto.
"Oh, você não enxerga?
Você pertence a mim
Meu pobre coração sofre tanto
Com cada passo que você dá
Cada movimento que você fizer
Cada promessa que você quebrar
Cada sorriso que você fingir
Cada direito que você reivindicar
Eu estarei te observando
Cada movimento que você fizer
Cada passo que você pisar
Eu estarei te observando
Eu estarei te observando..."
— Espero que você se lembre de como nos conhecemos... – murmurou ele sonolento.
— Eu me lembro... – E me entreguei aos afagos.
**************** 4 Anos atrás.
Calouro na faculdade de psicologia, 4 anos atrás, um começo difícil depois de turbulências anteriores, um lugar muito novo pra mim, que vim do interior e estava numa grande universidade, encantado com que aquele lugar poderia oferecer de melhor, mas ainda sentindo o pior de tudo. Eu nem tentava me enturmar, apesar de alguns colegas se aproximarem, eu afastava qualquer tipo de aprofundamento nessas relações, não deveriam passar do limite do 'coleguismo', uma situação mais egoísta do que altruísta que eu podia notar em amizade. Mas vou me ater ao dia que conheci Lourenço.
Acabara de ser incluído em um grupo do meu curso, no meu segundo mês ali, jogavam conversa fora sobre suas vidas pessoais e outras futilidades que não requeriam o mínimo do meu interesse, porém também discutiam diversos assuntos sobre cultura, ciência, religião e política em geral. Portanto ficava a maior parte do meu período alheio a eles, principalmente afastado e sozinho. Nesse dia específico, estavam na sala mesmo depois de ter acabado uma das aulas de Introdução à Psicologia. Eu estava interessado na conversa, falavam sobre doenças... Até enfiarem religião no meio.
"Gente, eu acho a psicologia super importante para ajudar as pessoas, mas não podemos esquecer Jesus, Ele quem realmente cura", uma das garotas da classe comentou em meio à roda.
Foi o gatilho para uma discussão acalorada, onde discutiram e questionavam a importância de deus contra doenças, apenas um dos colegas no meio que questionava a deus, mas ainda não apresentando crítica razoável nenhuma à religião, até que ele falou:
"Se Deus existe ou não, eu não sei, e se o tal efeito placebo tem eficácia, a religião vai ser necessária e muito importante", argumentou ele tentando convencer os outros.
Argumento que me deixou bastante indignado aquele dia, talvez não possa explicar os N fatores que me fizeram ficar assim, mas de facto, o jovem questionador não era um ateu, no mínimo um agnóstico teísta, onde consegui ver que ele preferia não ver os defeitos da religião. Entretanto a gota d'água foram os comentários seguintes, acusando-o de 'ateu à toa' , 'neoateu' e afins. A sequência de comentários me deixou profundamente irritado com meus colegas, não podia mais aguentar aquela sala, tive de sair veementemente. Não que eu fosse ateu, porque é algo que não sei, me considerava ateu a maior parte do tempo, e havia momentos onde eu podia ser outro "eu", e ser um pouco mais mítico. Em outras palavras, a questão da existência de deus não tinha importância alguma diante da minha própria existência, e era assim que eu vivia, sem ao menos precisar de um deus ou lembrá-lo.
Caminhava rápido e desordenado, não sabendo onde ir, ignorando todo mundo em volta, naquela época eu ainda tentava controlar minhas emoções, mesmo que elas saltassem pra fora como um grão de milho pipocando, então tentava não me intrometer em discussões para não sair mais chateado, e eu guardava tudo pra mim. Só sei que não encontrava lugares menos vazios naquele horário, até que vi o banheiro masculino, um lugar fechado de fácil acesso de um corredor aparentemente vazio. Eu sempre tive uma repulsa imensa de banheiros de uso compartilhado ou 'público' , por achar nojento demais e de históricos assustadores, por assim dizer, no entanto passei a usar o da faculdade somente quando achava estarem vazios para lavar minhas mãos, mas como eu tava sob domínio da raiva, tinha que desabafar:
"São todos os imbecis!", esbravejei cheio de cólera, assim que entrei, a primeiro momento não avistando ninguém e fechando. Foi um alívio.
"Eu não sou imbecil.", de repente afirmou um sujeito estranhamente com uma maquiagem de palhaço, que surgiu de uma das cabines.
Eu não consegui olhar na cara dele, apesar de achar muito constrangedor, ainda estava encolerizado. O que de imediato me dirigi a uma das pias do local.
"Não devia generalizar tanto assim, assim você pode ser incluído entre os imbecis", comentava o sujeito atrás de mim.
Ele fez minha irritação aumentar no momento, sequer tinha alguma intenção de rebatê-lo, meu plano seria ignorá-lo. Entretanto fiz 'cara feia' pra ele.
"Por que está tão bravo?", questionou ele ao meu lado.
"Isso não é da sua conta!", respondi seco enquanto lavava minhas mãos na água corrente na tentativa de me acalmar.
Ele não respondeu, apenas vi em seguida que ele pegou um bloco de notas no bolso com um lápis e começou rabiscar. Questionava-me o que estava fazendo. A essa altura eu já estava secando minhas mãos.
"Toma", disse arrancando uma das folhas do bloco e me entregando.
Era um desenho, caricatura, nada muito detalhado, por ser feito rápido, porém era perceptível os traços e o que elas representavam. Era eu resmungando afogando alguém na água, que conclui ser ele.
"Não gosto que me desenhem sem minha permissão", rebati ríspido e amassando a folha na minha mão e jogando no lixo.
O dia não tava pra mim, um sujeito que não conhecia surgiu só pra me perturbar. Parecia ser uma maré de azar, sem pensar no que tava fazendo, entrei numas das cabines com intuito de sair dali, sim, confundi com a porta. Quando dei por mim, tava naquele lugar que evitava entrar e com um cheiro e ambiente desagradáveis. Foi quando ouvi ele lá fora:
"Desculpa então, não vou te desenhar mais", disse ele do lado da cabine.
Eu podia sentir ele se movimentando e batendo na cabine, foi quando ele me entregou mais uma folha. Uma nova caricatura, mas só dele. Descrevendo, se tratava dele ajoelhando no milho me pedindo perdão, um tanto sarcástico. O desenho em si era divertido. Guardei na minha mochila.
"E aí?", perguntou ele ainda de fora.
Não o respondi, mas logo mandou outro, desta vez dele alegre celebrando algo. Era como ele soubesse que eu tinha gostado do desenho. Em seguida sai da cabine para lavar minhas mãos e rosto.
"De novo?", perguntou ele surpreso quando liguei a torneira.
O palhaço tão Intrometido voltava a me perturbar, e eu tentando me controlar e me acalmar com a água, até que ele interveio e fechou a minha pia.
"Você é maluco? Eu ainda não terminei", reclamei indignado com tamanha audácia.
"Não, você já terminou", disse o sujeito com a mão ainda na torneira. "Não devia desperdiçar tanta água", explicou ele me olhando profundamente.
"Tanto faz, só não se intrometa", disse me dirigindo ao secador.
Naquele momento ele pegou começou a mexer na sua mochila, e pegou uma flauta transversal. E começou a tirar Trem de Ferro do Manuel Bandeira da flauta. Parecia representar algo. Naquele momento entrava outros no banheiro, o que deixava a situação mais constrangedora ainda.
"Você é estudante de música", cochichei supondo. Mesmo com a maquiagem, podia ver que era jovem.
"Não, professor", respondeu ele parando a música.
"Não perguntei", rebati grosseiramente.
"Não, mas apenas te corrigi, petit", disse ele pondo a mão no meu ombro.
Não entendia como ainda estava o aturando aquele sujeito, talvez eu estivesse mais entretido do que irritado.
"Vão namorar em outro lugar, viados!", uma voz gritou de dentro de umas cabines.
Não sabia ou não havia percebido se tava alguém ali há tanto tempo. Apenas sai do banheiro rapidamente após isso. E o sujeito me seguiu.
"Aquilo foi engraçado", dizia ele rindo enquanto tentava me acompanhar. "E aí, vai me dizer por que estava daquele jeito?", falava ele de modo mais normal.
"Não", neguei prontamente. "E homofobia nunca é engraçada", reclamei impassível.
"Tá bem, senhor sem humor", disse ele aceitando com deboche. "Qual o seu nome?", perguntou ele interessado.
"Por que tantas perguntas, cara? O que quer?", Indaguei exasperado com a situação.
Ele parou de me acompanhar, e seguidamente eu também esperando uma resposta, ela parecia extremamente reflexivo.
"É uma pergunta difícil, cara", falou ele enquanto pensava, "pensando bem deve ser assim que se sente, não ter a resposta para todas as perguntas, parece frustante", completou em seguida.
Fiz uma cara de poucos amigos, coisa que eu já era/tinha. Muito abusado aquele palhaço. E continuei andando sem destino. Senti ele seguindo ainda.
"Quando faço perguntas, eu não espero respostas necessariamente", indagou ele atrás de mim. " Pelo menos não essas que a maioria imagina", continuou ele enquanto eu parava de andar. "Sabe, lá no banheiro, eu perguntava porque além de curioso, especialmente sabendo que a pessoa não vai responder, eu continuava perguntando porque me fazia sentir perto da pessoa, suas reações são minhas respostas. Quando pergunto e não posso ver, eu não a sinto viva", dizia ele reflexivo.
Aquele momento foi um dos mais intrigantes da minha vida, porque ele era como eu fora um dia. Já estive na mesma situação que ele, e me fez questionar o sentido que escolhi para mim. Fiquei parado olhando para frente.
"Não precisa se sentir pressionado por elas", comentou ele em seguida. "Sei como é irritante", ressaltou.
"Eu te entendo", murmurei para ele.
Seguiu-se um instante de silêncio em meio o corredor, eu não continuei e esperava alguma reação dele. Por mais irritante que aquele palhaço estivesse sendo, algo nele me fazia ver semelhanças, e isso era estranho. Eu não tinha tantas expectativas assim desde que conheci uma pessoa.
"Poderia me esperar alguns minutos por favor? volto logo", disse ele apressado correndo para trás de costas.
Eu podia fugir, simplesmente sair dali e não vê-lo novamente tão cedo. Mas decidi esperá-lo, eu queria esperar por alguém que disse que voltaria, algo que fazia em vão desde sempre, talvez sentisse uma esperança ainda, pelo menos naquele desconhecido. Depois de 6 minutos ele voltou todo cansado e bem diferente.
"Ainda bem que você não fugiu", arfava ele ofegante. "Pronto", anunciou ele todo molhado, se ajeitando.
Ele estava sem a maquiagem, eu pude ver então seu rosto, ele era uma pessoa bonita, com barba por fazer, um pouco mais alto, traços encantadores.
"Certo", disse eu concordando.
"Vem, vamos conversar direito em outro lugar", disse ele me guiando.
Eu queria conversar com ele, eu não estava sendo pressionado, eu não vi más intenções em seus olhos, ele era deveras interessante.
Fomos para uma das entradas da universidade, onde naquele horário não havia tanto movimento. Um lugar bastante espaçoso e livre, parecia bem limpo também. Sentamos no chão, perto da escadaria. Eu encostado em uma coluna e ele na outra em minha frente.
"Lugar calmo, não? Tem uma boa vista daqui", disse ele olhando para o campus.
Eu olhava para ele e depois para o campus, com ansiedade de passar pessoas por ali em algum momento. Em um momento ele pegou sua mochila afim de como procurasse algo mais não achasse.
"Sua mochila é uma bagunça", comentei.
Ele pegou uma pequena bola, não sei porquê teria uma bolinha, mas jogou pra mim e fez sinal para repassar de volta e ficamos nessa.
"O que quer de mim?", perguntei direto e objetivo.
"Eu não sei." respondeu ele de imediato. "Ser seu amigo?", inferiu ele modesto mandando a bolinha de volta.
"Não iria desejar ser meu amigo se me conhecesse ", comentei amargamente" E não devia usar pronomes de posse ao tratar de pessoas, é como se você tivesse sob posse da pessoa pra mim", completei observando.
"Desculpa, foi só um modo dizer", justificou ele me olhando e recebendo a bolinha. "E eu só saberia se quero ou não ser seu amigo depois de te conhecer", ressaltou ele seriamente e jogando de volta.
"E se conhecer e não gostar? ", Indaguei curioso jogando de volta.
"Daí eu não sei, eu já gosto de você.", respondeu ele seriamente. "Amigo é pra ficar sempre do seu lado, mesmo nos piores problemas", dizia ele atenciosamente.
Ele sabia me derrubar, aquilo me deixava cada vez mais pensativo e desconfiado também, era muito bom pra ser verdade, eu estava confuso com o desconhecido, mais queria mais dele...
"Talvez devesse escolher melhor seus amigos", sugeri levianamente, jogando de volta.
"Tá querendo dizer o quê? Que não sei fazer bons amigos?", indagou ele.
"Não me entenda mal", tentei me justificar. "falo de mim", expliquei.
Ele me via com um semblante confuso, por um momento parado, e eu tentava decodificá-lo. Até que ele falou:
"Melhor escolher do que não escolher nenhum", disse ele sorridente e mandando a bolinha. "Amigos acontecem", suspirou ele.
Eu poderia dar mil motivos para discordar dele, mas eu não conseguia manter nexo nos meus pensamentos, de fato ele exercera grande influência sobre mim. E isso se tornava cada vez mais perigoso pra mim...
"Como se chama?", perguntei mudando de assunto, e joguei de volta.
"Finalmente!", Exclamou ele. "Mas eu fiz essa pergunta primeiro.", disse ele devolvendo a bolinha.
"Me chamo Claus", disse timidamente. E ele recebeu de volta.
"Interessante, petit", comentou ele simpático. " Lourenço, a seu dispor", apresentou-se gesticulando uma cortesia mesmo de longe e liberando a bolinha.
Em dados momentos, pessoas passavam por entre nós, e aquele foi desses, o que me fez ficar envergonhado, mas não tanto. Ter alguém ao seu lado torna tudo mais corajoso de se enfrentar. Parecia tão semelhante a um amigo...
"Você desenha bem", elogiei espontaneamente. "Quer dizer, eram desenhos simples, mas consegui perceber uma beleza em seus traços", explicava corado me atrapalhando. E repassei.
"Você é engraçado", disse ele rindo. "Gostou mesmo, que até os guardou.", completou ele. "Eu aprendi quando criança, sei alguma coisa então", explicou ele. E a bolinha estava de novo comigo.
"Eu desenhava e pintava também", revelei inteirado no assunto. E joguei de novo.
"Sério? Me mostra alguns desenhos seus", indagou ele entusiasmado.
"Não. E não os tenho aqui.", justifiquei inflexivo. Eu estava com a bolinha.
"Por quê?", questionou me olhando com curiosidade. "Poderia achar que seja uma mentira", inferiu ele. Ele recebeu e jogou.
"Não vou responder. Acredite se quiser.", respondi ríspido. Joguei de volta.
Eu realmente não queria falar sobre aquilo, desenhar e pintar talvez fossem as únicas coisas que conseguia fazer adequadamente bem, mas ainda era bastante crítico comigo mesmo, eu tinha muitos problemas de inspiração e vergonha. E tudo se diluiu quando desenhei para uma pessoa, eu já não tinha mais vontade alguma de desenhar. O desconhecido não fazia parte da minha vida para me impor nada.
"Tá certo, eu acredito em você.", Rebateu ele. Era vez dele.
"Por que agora?', Indaguei desconfiado. E joguei.
"Não sei, pode ser ingenuidade minha, talvez", dizia ele olhando para o lado. "Mas eu quis acreditar em você.", e ele olhou pra mim. E me repassou a bolinha.
Regente, o desconhecido que eu acabara de conhecer, já depositando uma grande confiança em outro desconhecido. Um fato estranho, que só fazia meu lado racional e defensivo desconfiar cada vez mais, mas eram guerras dentro de mim em relação a situação.
"Eu não desenho e nem pinto mais...", sussurei angustiante. "Desisti de tudo", completei convencido.
"Por quê?", perguntou ele interessado.
"Não é algo que eu queira contar.", disse medindo minhas palavras. "Eu perdi a inspiração. Aconteceram muitas turbulências", contei triste e agarrando a bola com as duas mãos e olhando fixamente.
As lembranças tristes voltavam, eu já não tinha tanto controle, mas tudo era suportável com o tempo.
"Talvez eu possa compreender...", Cochichou ele de forma serena. "Mas enquanto você estiver vivo, tudo pode acontecer, Claus", completou pedindo que eu jogasse a bolinha para ele.
Joguei. Joguei tão forte e longe, que sumiu entre os arbustos detrás dele. O que fez ele rir absurdamente. Logo fui contagiado por seu espírito alegre e virtuoso. Eu estava um pouco menos triste.
"Que pena, estamos sem bola agora", comentou ele se divertindo.
"Desculpa", me desculpava rindo. "Então vi que você é flautista", comentei cortando o momento.
"Sou músico e cantor", disse ele pegando sua flauta transversal.
"Entendi. Gosto muito de música, flauta é um dos instrumentos que cria uma das sonotas mais bonitas", comentei sinceramente.
"Que bom que acha isso. É o meu primeiro instrumento e preferido." contou ele entusiasmado.
"Apesar de gostar mais de flautas de bambu. Elas compõem músicas orientais que me afetam por dentro", dizia eu interessado.
"Bom, eu não tenho a de bambu aqui. Mas tenho a minha transversal, e posso tocar pra você uma linda música oriental", sugeriu ele posicionando a flauta para tocar.
https://youtu.be/Ce3BeSI8Wrk
A música era Flowers In a Riot Color. Uma música melancólica, e uma das mais belas que eu ouvira. Em seu instante, não percebia nada ao redor, exceto aquela linda música, sem noção de tempo e espaço. Estava eu em outro mundo viajando por aquele som mágico. E eu me encolhia com meus braços entre os joelhos, e direcionava um olhar vazio e desfocado.
"Já estive aqui uma vez", sussurei a mim mesmo.
A melodia de timbres doces e suaves, que dançavam ao vento me traziam pensamentos já esquecidos, uma vida que eu acreditara ter acabado. Não sobre eu ou quem, e sim o que o todo que se unia para formar cada pedaço que constituía a vida. Era melancólico, mas não triste. Era um estado pleno onde você pode ver tudo, e perder a percepção dos problemas. Onde você se encontra, mas não pode se conhecer. Devaneios em si, e futuros se construindo.