3. SUBESTIMEI AS LEMBRANÇAS DO PASSADO.
Minha avó me surpreendeu com o seu chamado, me fazendo me sentir um gato ladrão, quando é flagrado, espreitando, tendo um comportamento furtivo e suspeito. Minha primeira reação foi desviar o olhar de Giuliano, que parecia não acreditar que estava defronte a mim. Ele segurava um copo, com suco até o meio, e a jarra de onde se servira. Estava paralisado, como eu. E longos minutos se arrastaram, sem que ninguém dissesse nada, até que a minha avó quebrou o silêncio:
- Vão ficar brincando de estátuas, olhando um para o outro, ou vão dar logo um abraço e matar a saudade de dez anos?
Não ajudou. A ideia do abraço me parecia muito perigosa, então continuei na mesma posição, em que estavam, mas Giuliano atendeu o pedido da nossa avó, e quando me dei por mim, já estava sendo abraçado por aquele peitoral largo, e queimado do sol. Fechei os meus braços nas suas costas, mas antes que pudesse desfrutar daquele monumento de homem, ele se afastou de mim, e perguntou:
- Tudo bem, com você? – o tom de voz dele foi mais frio do que os dos clientes do nosso escritório.
- Sim... – eu respondi, sem fôlego nem para devolver a pergunta.
- E quando chegou? Vovó não me disse que você vinha. – ele olhou para ela de uma forma, que me passou a ideia de uma leve censura.
- Cheguei faz pouco tempo – eu respondi a primeira pergunta, depois completei: - ela não sabia que eu vinha. Quis fazer uma surpresa.
- Imagino que tenha sido, depois de dez anos sem ela saber muito sobre você – ele disse, ainda olhando para nossa avó, e bebendo todo o suco do copo.
Senti como se tivesse levado um soco no estômago. A voz dele havia perdido totalmente a doçura que eu conhecera. Claro, eu não poderia esperar encontrar tudo intacto, exatamente como era, desde a última vez que eu havia conferido.
- Bom, se você me der licença, eu vou tomar um banho, e tirar essa roupa molhada – ele disse, passando por mim, como se cruzasse por um completo desconhecido. Talvez eu tivesse me tornado isso mesmo.
Confesso que fiquei me sentindo muito mal com aquela recepção, e percebendo isso, a minha avó tentou justificar.
- Ele está cansado e faminto. E quando fica assim, só volta a civilidade depois de saciar ambas as necessidades.
Não disse nada. Não tinha o que dizer. Na verdade, queria que ela não tivesse percebido o meu desapontamento. O melhor a si fazer, era me concentrar apenas no intuito que me levara a fazer aquela viagem.
- Quer um suco? – Rosa me ofereceu.
- Eu aceito – respondi, indo em direção a jarra que Giuliano deixara sobre a mesa da cozinha. Por impulso, me servi no mesmo copo que ele havia usado. Isso causou olhares entre Rosa e minha avó, mas eu fingi não perceber.
Fui para a sala e sentei no sofá, pegando o controle da televisão, e procurando alguma coisa interessante para ver, o que era muito difícil em um domingo à tarde, principalmente na tv aberta. Mas acabei achando um documentário sobre formigas, que eu particularmente gosto muito, e fiquei ali, quase deitado no sofá, me distraindo.
Estava tão confortavelmente acomodado, que nem percebi quando Giuliano pulou no sofá, com o peso de um touro. Ele trazia uma tigela cheia de comida, e devorava tudo sem a menor cerimônia. Eu apenas me ajeitei na ponta extrema oposta do sofá, lançando de vez em quando, um disfarçado olhar de soslaio para ele, mas o mesmo parecia nem notar a minha presença.
- O que tá assistindo? – ele me perguntou, sem desviar o olhar da tevê.
- É um documentário muito interessante sobre formigas – eu disse meio empolgado, aproveitando para olhá-lo completamente.
Giuliano estava usando apenas um calção cinza, curto e de malha fina, abaixado bem no limite da base do púbis. Uns pelinhos tímidos saltavam para fora do cós. O cabelo molhado, havia removido toda a tímida ondulação natural capilar, que ele tinha. E seu dorso, ainda tinha umas leves gotinhas de água. A correntinha prateada permanecia no pescoço. Acho que ele podia se vestir com trapos, que ainda assim ficaria deslumbrante. Ele sempre fora bonito, mas nunca imaginei que chegaria a aquele resultado.
- Sabia que o sistema de refrigeração utilizado no ar-condicionado, é uma imitação dos mesmos mecanismo utilizados nos formigueiros, e... – antes que eu completasse, ele já havia mudado de canal, sem a menor consideração.
Ótimo! Aquele era um sinal que ele não estava nem aí para o que eu pensava, ou que eu gostava e tudo mais. E que as formigas se fudessem. Giuliano havia mudado para um canal de leilões de gado. “Interessantíssimo”.
Olhei para cozinha, para ver se avistava minha avó e Rosa, e poder ter uma desculpa para sair dali, mas não vi nem sinal das duas. Então resolvi enfrentar a fera.
- Você faz o que dá vida? – perguntei.
- Trabalho – ele disse. Nossa que resposta fantástica aquela. É, eu percebi que estava sobrando ali.
Já que não tinha espaço para conversar e nem paciência para venda de vaca, levantei e resolvi dá um passeio pelo sítio. Mal ergui minha bunda do sofá, Giuliano jogou as pernas no meu lugar, se esticando todo, e como era enorme, não ficou um vão nem para eu por um dedo, caso quisesse voltar, mas aquele era um claro sinal de que ele não me queria por perto. Pus uma roupa e saí pela varanda.
A chuva havia passado, mais ainda caía um finíssimo sereno vaporoso. As frondosas pareciam estar muito satisfeitas com a chuva, e, apesar de ainda não ter terminado o dia, o sol resolveu desaparecer mais cedo.
Assim que saí do sobrado, avistei Inácio ao longe, conversando com um vizinho de cerca. Ele não me viu, e eu achei até melhor, pois não queria ser reapresentado para mais ninguém naquele dia. Segui para o fundo da casa, e caminhei por uma curta vereda, lentamente, sorvendo o ar fresco e úmido. Algumas estrelas, débeis, já despontavam no céu sem sol. Correndo os meus olhos para leste, avistei, em uma distância razoável, uma construção longa e branca, lembrava um barracão de alvenaria. Quando reconheci do que se tratava, senti o meu corpo tremer. Era o casarão que eu havia sonhado. Ao vê-lo, foi impossível combater o fluxo de lembranças. Então fechei os olhos e me deixei levar.
“Você me paga seu safado, vou te pegar!”, eu gritava, enquanto corria atrás de um garoto mais velho do que eu, por longos corredores, cheios de espelhos quebrado para todos os lados.
“Benjamim, não é de nada, corre feito uma menina. Não me pega! Não me pega! Não me pega!”, um Giuliano de catorze anos, corria de costas, zombando da minha cara, que estava vermelha de tanto correr. Apesar de ter treze anos, meu condicionamento físico era muito mais inferior do que o dele. O nosso único ano de diferença, parecia valer por cinco.
Abri os olhos subitamente, e girei para esquerda, chocando a minha visão com uma cajazeira solitária e majestosa, erguendo-se em meio a grama baixa. Estava a poucos metros de mim, então corri lá. Eu sabia o que ia encontrar lá. Pelo menos, esperava que ainda estivesse.
Já quase chegando na árvore, fui tomado novamente pelas lembranças.
“Benjamim, tenho uma surpresa para você, vem logo”, o Giuliano de catorze anos me puxava pelo braço, correndo em direção aquela mesma cajazeira.
“O que é Giuliano? Não é nenhuma brincadeira sem graça, não?”, eu questionava sendo arrastado por ele até o local.
Agora era um Benjamim de vinte e três anos que estava ali. Cheguei próxima a árvore, e comecei a deslizar minha mãe pelo tronco nodoso, girando em meio ângulo. Minhas mãos encontram uma ferida profunda. E meus olhos se emocionaram ao ler: G&B, ferido na árvore por um objeto perfurante poderoso.
O fino sereno começou a ameaçar se tornar uma chuva forte de novo, o que me fez voltar para o sobrado. Minha avó conversava com Rosa, e Inácio, com o mesmo vizinho que este último estava de papo, no limite da cerca. Subi o pequeno lance de escadas, e cheguei até o alpendre da casa. Vendo a rede ali muito convidativa, fui impulsionado para deitar, mas muitas gargalhadas no interior da casa me fez entrar para, quem sabe, também participar da festa.
Quando entrei na sala quase caí com a cena que vi. Haviam dois rapazes na companhia de Giuliano, e um deles estava sentado em seu colo, cheio de cochichos no pé do ouvido. O que estava no colo do meu primo, era visivelmente gay. Gesticulava teatralmente, e sorria jogando a cabeça no ombro de Giuliano. O outro era muito bonito, de cabelos amendoados bem encaracolados, caindo sobre a testa. Tinha pele mais clara que do meu primo, mais também bronzeada. Esse tinha um porte másculo, diferente do que estava no colo de Giuliano.
Caminhei fazendo barulho, com a intenção de que eles me vissem, e que soubessem que eu havia testemunhado aquela cena esdrúxula.
- Ouw! De onde saiu esse anjo? – o rapaz de cabelo encaracolado, me surpreendeu.
- Lembra do meu primo Benjamim? – Giuliano perguntou para o outro.
- Benjamim? Claro que lembro – ele foi na minha direção de braços abertos, e quase me quebra ao meio com um abraço apertado.
- Oi... – eu disse, enquanto tive a impressão de que ele estava cheirando o meu pescoço.
- Ele ficou bem arrepiadinho com meu abraço, adoro isso – o encaracolado disse, olhando para Giuliano, que se mantinha impassível.
- Perdão, não lembro de você... – eu disse, tentando me soltar dos braços do rapaz, que não cedia.
Não que eu estivesse incomodado com seu abraço, pois ele era uma tentação de homem. Parecia que tinha sido pincelado pelo diabo. Tinha uma beleza sexy bem selvagem, animália, espartano. Diferente de Giuliano que estava mais para os padrões atenienses clássicos.
- Fernando. Não lembra? Eu, você e o Giuliano tomávamos banho pelados, no lago aqui do sítio da vó Elisa – ele me fez lembrar.
- Acho que tô quase lembrando... – não podia ser o mesmo Fernando. Será que essa terra tinha algum nutriente que fazia menino magricela se tornarem homem gostoso pra caralho?
- Uma vez, você ficou com raiva de mim, porque eu esfreguei a minha pica na sua bundinha branca nua, quando chegamos na ponte do lago – ele disse morrendo de rir. – O Giuliano me deu até um soco, por isso. Ele tinha muito ciúmes de você.
Eu queria um buraco sem fundo para me enfiar dentro e ficar até o fim do milênio. Depois disso, não tinha como não lembrar do Fernando. O tempo só o fez ficar mais descarado.
- Você lembra disso, Giuliano? – Fernando perguntou para ele, na maior simplicidade.
- Não, mas eu te garanto que o meu soco hoje está muito mais forte do que no passado. Quer testar? – Giuliano disse, cerrando os punhos, e empurrando o viadinho que estava em seu colo, para o sofá.
- Ih, ele ficou grilado – Fernando sorriu. – Eu não sei se o teu soco melhorou, mas a bunda do Benjamim, essa eu não tenho a menor dúvida. – Fernando deu um apertão na minha bunda.
- Ficou maluco, cara? – eu empurrei ele para longe. Ele não precisava me expor daquele jeito.
- Acho, que ele é muito fresquinho para você, Fê – a coisinha que fora empurrada do colo de Giuliano, se manifestou. – Meu nome é Sandrinho. Prazer primo do Giuliano.
O tal do Sandrinho (Bler!), ria o tempo todo, como se eu fosse a melhor piada que ele já escutara.
- O sentimento não é recíproco – eu disse.
- Quê? Fala língua de homem pô! – o Sandrinho disse. Quem era ele para me exigir virilidade, com aquela roupa de “tô-doido-por-rola”, e sua vozinha insuportável e exagerada.
- Licença – eu disse, mas quando tentei sair, Fernando me segurou.
- Desculpa, Benjamim, só foi brincadeira, você lembra como eu sempre fui abusado – ele disse.
Ele era mesmo. E havia melhorado/piorado muito mais. Mas eu não estava com raiva do apertão na bunda que ele me dera, e sim daquela situação estranha que nós havíamos acabado de viver.
- Tá de boa – eu disse, pondo a mão no ombro dele.
- Topa sair hoje à noite, com a gente? Rever a cidade e tals? – Fernando pediu.
- Não faz a dele, nem acho que seja uma boa – Giuliano respondeu por mim, fazendo carinho no Sandrinho. Suspeitei que aquilo era só porque eu estava ali, como se quisesse me dar um lembrete sobre algo.
- Claro que eu vou, sim – respondi para Fernando, mas olhando para Giuliano, que me encarava com fúria.
- Vou passar aqui as oito, para irmos os três – Fernando disse, apontando para ele, eu e Giuliano.
- Combinado – eu concordei. Queria ver se Giuliano teria topete para me desafiar.
- Você vai se amarrar – garantiu Fernando para mim, abrindo um sorriso lindo, que eu lembrava que ele tinha. De fato, no passado, eu, ele e Giuliano éramos grudados um no outro.
- Espero que sim – disse por fim, me despedindo dele, e subindo as escadas para o meu quarto.
- Tchau, primo do Giuliano – Sandrinho disse, caindo mais uma vez na gargalhada. Fingi que não tinha ouvido, e continuei a subir até o meu quarto.
Ainda ouvi alguns risos lá embaixo, e me senti com muita raiva, pois sabia que o assunto era eu. Aquele Sandrinho deveria estar fazendo várias perguntas ao meu respeito, e se divertindo com as respostas que o Fernando estava dando. Não sei qual era daquela viada, mas com certeza o Giuliano deveria tá passando a pica naquele cu, que já deveria ter perdido o bocal há muito tempo. E isso era que me chocava. Ele tinha levado aquelas brincadeiras de criança a adiante, e se assumido gay? Se fosse, parecia super a vontade com isso. Fernando também. Será que eu era o único enrustido ali? Não!
- O tempo passou e você continua com a mesma marra e arrogância de sempre, não é Benjamim? – Giuliano entrou no meu quarto feito um touro raivoso, quase arrancando a porta
- Educação mandou notícias – eu disse, assustado com sua entrada abrupta.
- Vai tomar no cu! – ele bravejou.
- Ah, resolveu falar comigo?
- Resolvi! – ele disse pondo as mãos na cintura. – E quero saber o que diabos você veio fazer aqui? E não me venha com a desculpa de estar preocupado com a vovó, porque você passou dez anos sem dar uma notícia a ela, nem mesmo mandar um mísero cartão de natal. E então? Não vai responder? Não é você o mestre das respostas prontas.
CONTINUA...