10. ENTRE TAPAS E BEIJOS...
- Você mentiu para mim esse tempo todo? – Giuliano tomou espaço na frente de mim e Fernando. – O que aconteceu com aquele Henrique que eu conheci anos atrás, e que foi fundamental para o momento de tristeza que estava vivendo?
- Simplesmente nuca existiu – Fernando respondeu, antecipando óbvio.
Giuliano fingiu não ter ouvido a resposta do amigo e continuou a pressionar Henrique:
- Não posso acreditar que tudo aquilo foi teatro?
- Claro que não, Giuliano! – Henrique tentou abraça-lo, mas ele o afastou.
- Fala a verdade, porra! – Giuliano explodiu, assustando até a mim.
- Tudo que aconteceu entre a gente foi real, eu apenas vacilei com essa história do telefonema, mas foi um erro contra uma montanha de acertos. – ele argumentou.
- Não foi “um erro” comum. Você brincou com saúde da minha avó.
- Eu pensei que o seu primo estava apelando, então decidi resolver isso por você – Fernando só piorava sua defesa.
- E quem foi que te encarregou de tomar decisões por mim? Você sabe que eu odeio isso, Henrique.
- Olha, não vejo razão para eu e o Fernando assistirmos a essa cena deplorável, então nós vamos deixar vocês se entenderem sozinhos.
- Benjamim, espera! – Giuliano segurou no meu braço, e me olhou com uma cara confusa. Havia muito o que ser dito, porém, ao mesmo tempo, tudo estava um caos.
- É melhor não – arranquei o meu braço de suas mãos e saí com Fernando.
Assim que passei por Henrique, senti uma mão puxar o meu ombro bruscamente, e quando me virei a vista escureceu, e uma panca forte no meu rosto ecoou. Cambaleei para trás, sentindo o nariz queimar e o sangue escorrer pelo meu rosto. Do chão, olhei para frente e vi Henrique com os punhos fechados: ele havia me dado um soco com toda a sua raiva, que não era pouca. Só não era maior do que a minha.
Meu sangue ferveu mil graus e o coração disparou inchando as veias da testa. Levantei de com um pulo, e limpei o rosto.
- O seu azar é que daqui a minha avó não vai ouvir nenhum grito, seu desgraçado! – disse isso para ele, dando um soco tão forte quanto eu podia.
Henrique voou e caiu nos pés de Giuliano, que não se moveu para ajudá-lo. Corri em sua e puxei pelas pernas, afastando ele do meu primo. Henrique tentou se levantar, mas pulei em cima dele, prendendo seus braços com as pernas, e a chuva de porrada começou.
- Desgraçado! Maldito! Infeliz! Bicha do demônio – eu gritava socando ele cada vez mais forte.
- Chega, Benjamim! – Giuliano me arrancou de cima de Henrique, que já estava quase inconsciente.
Soltei-me do meu primo, girei um soco na sua cara também, o mais forte que eu poderia ter dado. Giuliano caiu no chão com o nariz sangrando, e me olhou assustado. Duvido que ele imaginava que eu faria aquilo. Mas ele estava merecendo tanto, quanto o outro. Fernando só nos olhava com os olhos arregalados, porém não interviu, pois ele sabia que os dois estavam me devendo aquilo. Esperei que Giuliano viesse para cima de mim, contudo, ele não veio. Em vez disso me ofereceu um olhar de quem entendia que aquele soco não fora injusto.
- Presta bem atenção, Henrique – me aproximei do outro, que gemia no chão com o rosto coberto de sangue, e com alguns dentes quebrados, com certeza. – Você vai pegar suas coisas lá de casa, e vai dá o fora em se despedir de ninguém, ou eu termino o serviço, filha da puta!
- Se eu fosse você não contrariava o homem – Fernando ainda achou espaço para as deles.
- Vamos, Fernando – puxei o meu amigo pelo braço, que não se arriscou a me contrariar.
Voltamos em direção a casa, sem olhar uma única vez para trás. Que se danasse Giuliano e Henrique. Fernando só me observava, mas não fazia nenhum comentário, durante o nosso curto percurso. Chegando no sobrado, eu entrei sem me despedir dele e fui direto para o meu quarto, sem encontrar ninguém da casa pelo caminho, no que fiquei muito grato.
Ainda sentia meu sangue ferver, mesmo depois de ter extravasado tudo. Arranquei minha roupa com urgência e me enfiei debaixo do chuveiro, aonde permaneci por muito tempo, deixando a água quente relaxar os meus músculos e aliviar a dor das mãos e do rosto; ambos roxos.
Depois da água, veio a dor. Sem adrenalina no sangue, contusões latejavam. Minhas mãos estavam horríveis, então eu podia imaginar que a cara de Henrique devias estar detonada. Ri maleficamente pensando nisso, e também do meu nariz que estava parecendo um tomate. Cuidei de todos os meus ferimentos, pus uma roupa confortável, me entupi de analgésicos e anti-inflamatórios e fui descansar um pouco. Tinha certeza que os meus sonhos não seriam desagradáveis.
Quando acordei já passava das quatro horas da tarde. O rosto não doía tanto, mas as minhas mãos estavam em desgraça. Parecia que todos os ossos dos dedos haviam sido quebrados. Ignorei a dor, pois o meu espírito ia muito bem. Fui então ver a minha avó, que deveria estar preocupada por conta do meu sumiço.
Entrei em seu quarto e vi Giuliano conversando com ela, meio cabisbaixo. Os dois estavam sozinhos.
- Eu volto depois – disse, assim que eles me notaram minha presença pela fresta da porta.
- De forma alguma – minha avó me contrariou. – Estávamos precisando falar com você, mesmo?
Meu coração gelou, pois eu sabia que viria coisa ruim. Minha vó ia me dar um sermão daqueles, e provavelmente me faria pedir perdão a Henrique. Isso eu não ia aguentar fazer.
- Sim – fiquei parado perto dois.
Minha avó estudou com atenção minhas mãos machucadas e rosto inchado, e disse o seguinte, com a voz suave.
- Nossa dispensa não tem quase nada para a ceia de Natal – ela falava naturalmente. – Quero que você vá com Giuliano até a cidade e compre tudo que estiver na lista que eu e Rosa fizemos, eu o mandaria sozinho, mas ele detesta fazer compras, então você vai junto. Alguma objeção – ela arqueou a sobrancelha em desafio.
- Claro que não... – gaguejei, não ousando dizer uma palavra contrária aquilo. Sabia que a minha concordância seria o preço pela absolvição e o enterro dos últimos acontecimentos. E de fato, ela não tocou mais no assunto.
Fui para o meu quarto trocar de roupa, pus apenas bermuda, camiseta e chinelos. Giuliano estava também com um figurino parecido, e tão gato quanto eu não imaginei que ele ficaria. É que depois as nuvens de tempestade passam a gente volta a ver a beleza do céu.
Quarenta minutos após o ultimato da minha avó, estávamos eu meu primo em seu carro rumo ás compras. Eu ainda estava ferido, e sabia que ele também, então resolvi não ficar remoendo as coisas. Não que eu estava pronto para voar em seus braços e beijá-lo desesperadamente, mas se isso ia acontecer algum dia, teria abertura da minha parte. No momento, era bom que nós deixássemos as feridas sararem em seu tempo.
- Deixei ele no hospital junto com a bagagem – disse Giuliano, quebrando o silêncio que se formara desde que nós entramos em seu carro. Meu primo exibia um curativo no nariz assim como eu.
- Fico aliviado que as coisas terminaram assim – disse em resposta, enquanto me concentrava na paisagem.
- Não sei nem por onde começar – Giuliano soltou um suspiro profundo. – Eu fui tão estúpido, tão cruel com você. Extrapolei todos os limites.
- Pode começar com pedidos de desculpas, e é bom nomear cada um deles – falei, olhando bem no fundo dos seus olhos. Ele ficava lindo quando a barba começava a nascer, fazendo uma sombra em seu maxilar.
- Desculpa por ter agido como moleque, por não ter acreditado em você, por não ter facilitado a sua vida lá em casa, por aquela transa horrível...
Ele me pediu desculpas por coisas que eu nem sabia que ele tinha feito por mim. O efeito não foi automático, mas muitas camadas de mágoa foram removidas. Eu não pedi desculpas pelo soco que eu dei nele, pois não estava arrependido.
- Mas tem uma coisa que eu não posso me perdoar – ele disse.
- O quê? – perguntei com muita curiosidade.
- Ter perdido você para o Fernando – ele me respondeu com a voz pesada.
- Não estou com Fernando – esclareci sem alardes – Somos apenas bons amigos, agora.
- Eu achei que...
- Você achou errado – o interrompi. – Agora vamos tocar a bola para frente, e também sermos amigos?
- Claro... – ele respondeu com resistência.
Fomos ao supermercado e compramos tudo que a lista exigia. Foi até divertido, controlar Giuliano para que ele não enchesse o nosso carrinho com tanto doce.
- Ah, gordo desgraçado, já não disse para você não colocar tantos saquinhos de gota de chocolate – eu fingia irritação.
- Então vai ter que me pegar primeiro, se quiser tomar meus chocolates – ele passou correndo na minha frente com carrinho, depois de dar um tapa na minha bunda.
Corri atrás dele pelos corredores do supermercado, mas ele parecia um maratonista. Já havíamos vivido uma cena parecida com aquela. Começávamos muito felizes, mas o desfecho foi o terrível.
Acabamos nossa brincadeira pagando um absurdo no caixa. Ainda bem que ele era um veterinário bem requisitado, para bancar sua gula. Voltamos então para casa com uma montanha de coisas. Parecia que a cidade inteira iria cear no sítio.
Chegamos em casa aos risos, para a surpresa e a felicidade da minha avó, que estava na cozinha, auxiliando Rosa, claro, fazendo o mínimo de esforço. Rosa já estava com o peru enorme, limpo, sendo temperado com especiarias bem aromáticas.
- Que supermercado animado, hein? – vovó comentou.
- Culpa do gordo do seu neto, viciado em chocolate – eu disse.
- Bom, não entendi nada, mas não importa – vovó Elisa, apesar de estar em cadeira de rodas, não perdia seu aspecto solar.
- Olha, você para de me chamar de gordo, seu magrelo – Giuliano me agarrou me fazendo cócegas, passando a mão na minha barriga. – Eu estou muito bem, quer conferir – ele levantou a camisa, mostrando o abdômen lindo, que ele sempre teve.
- Não quero olhar, deixa para suas vacas – eu dei as costas para ele. Tudo estava bem, mas eu não queria também apressar nada.
- Ah, falando em vacas, é bom eu fazer umas bandagens nas suas mãos para conter o inchaço.
- Você me chamou de vaca? – deu um soco sem forças no peito duro de Giuliano, mas que sentiu fui eu. – Ai, minha mão!
- Você não acha que já me bateu o suficiente por hoje?
- Olha, Rosa, parecem duas crianças – vovó Elisa enchia os olhos de gosto, ao nos ver daquele jeito, como se fôssemos um quadro antigo pintado há dez anos.
Giuliano me levou para o seu quarto, para tratar das minhas mãos. Enfaixava elas com paciência e ternura, olhando e rindo as vezes para mim.
- Qual a graça? – falei um pouco irritado.
- Não é que seja engraçado, é bom – ele disse rindo mais.
- Você bebeu? Não está falando coisa com coisa – disse para o meu primo.
- Não bebi, mas me sinto como se eu tivesse bêbado – ele me disse, acariciando minha mão depois de enfaixá-la.
- E por que isso?
- Ah, Benjamim, havia uma crosta que me envolvia e me impedia de sentir certas coisas – ele falava, ainda acariciando as minhas mãos. – Sinto vontade fazer coisas. Minha cabeça parece trabalhar com o coração, pela primeira vez, em tempos.
- O que você tem vontade de fazer agora? – perguntei sentindo um estremecimento por dentro, quase arrependido da pergunta.
Ele deslizou seu polegar pelos meus lábios, refazendo o contorno. Tocou a minha bochecha com delicadeza, o que me fez levantar de súbito, mas Giuliano foi mais rápido e me beijou.
CONTINUA...