Era a primeira vez que estava bebendo. A primeira que entrava em um bar. [...] Aos meus 26 anos, era a primeira vez que não se importei com os olhares a minha volta. Apenas comecei a beber como se não houvesse amanhã. O intuito, claramente, era um coma alcoólico. Ao menos, o mais breve e silencioso possível.
No bar, uma música um pouco agitada tocava. Estava eu em um local reservado do estabelecimento. Alguns bancos e uma mesa com entalhes em madeira decoravam o cenário convidativo para outro copo. Dava para ver todos os tipos de pessoas por ali. Muitos se divertiam em suas mesas. Outros ora ou outra iam para a mesa de alguém para conversar, paquerar, se divertir. A nuância de olhares era tremenda. Um olhar, uma bebida de graça. Alguns beijos.
Permaneci sozinho no meu lugar. Parecia ser um animal doméstico em um zoológico. Eu estou longe de ser considerado bonito e naquele bar parecia mais invisível que o normal. Isso foi bom porque queria apenas beber. A noite continuou seu percurso e ninguém chegou perto. Já estava até acostumado com isso. Continuei a beber. O gosto não era convidativo, era amargo, azedo, mas logo uma velha dor no peito parecia mais amena do que sempre foi. À medida que bebia aquela garrafa de bebida barata, as velhas feridas do corpo e da alma se aquietavam, contudo a minha visão ficava cada vez mais turva, um pouco fora de foco. Sem equilíbrio algum. Devido ao meu espírito autocrítico e rígido parei de beber. A passos trôpegos sai daquele lugar. Até que minha resistência para bebida não era ruim, pensei. Sai com um sorriso bobo do bar ao constatar isso. No caminho, percebi que meu corpo parecia mais leve, como se um grande peso dos ombros tivessem sido jogados no espaço que a bebida barata tinha deixado no copo, na mesa do bar e até na cadeira. Entretanto, estava igualmente cansado e acho que iria experimentar a primeira ressaca.
Voltei para casa de táxi. Aposto que devo ter entregado mais dinheiro que deveria ao taxista. Ele foi gentil demais. Mas não importava, só queria voltar para meu velho e solitário apartamento de sempre.
[...]
Tentei todas as chaves possíveis. Eram só duas, mas de jeito algum as chaves funcionaram. Tentei de tudo. Minha racionalidade já tinha caído por terra. Bati na porta sem motivo algum e do nada...
─ Leonardo? Algum problema?
Olhei de relance, era o meu vizinho. Eu o conhecia há algum tempo, mas nunca fomos próximos. Mesmo que ele já tenha tentado se aproximar quando me mudei para aquele apartamento. Sem sucesso, claro, sempre fui um lobo solitário incorrigível.
─ Pedro? Desculpe. Apartamento errado ─ tentei fugir da situação, mas pareceu inútil.
─ Sem problemas, mas espera, você está bêbado? Pensei que você não bebesse ─ falou com um sorriso tímido no rosto.
Tentei dizer alguma coisa, mas já não consegui pensar muito bem. Não me lembro com detalhes o que aconteceu depois disso só de despertar rapidamente com um esguicho frio de um chuveiro. Do meu, aliás. Algumas coisas pareciam fazer sentido naquele momento. Ele tinha oferecido ajuda. Não rejeitei nem aceitei, contudo a personalidade invasiva dele entendeu como um sim.
─ Você me surpreendeu. Sempre tão certinho. Beber a esse ponto até errar de apartamento. Quem imaginaria que até você...
Minha mente ficou turva mais uma vez. Ouvir aquelas palavras causava em mim um sentimento raro. Era incomum sentir raiva, porém o "até você" tinha me perseguido a vida toda. Por ser sempre "certinho", livre de drogas e álcool e "nerd" as pessoas se surpreendiam quando eu fazia qualquer coisa além de abrir um livro. Como era de costume, eu ignorava. E foi o que fiz. Ainda que o tom de voz dele fosse diferente de todos os “até você’s” do passado. A sua voz parecia ter certo carinho, familiaridade, não sei com certeza.
Permaneci sem responder nada, mas ele continuou lá comigo enquanto uma ânsia de vômito veio de repente. Parecia que meu corpo esperou um tempo para sentir os efeitos clássicos de bebida em excesso. Eu estava no banho ainda. Apenas de cueca e um homem quase desconhecido me ajudava.
Já um pouco mais lúcido, percebi como essa situação, para mim, parecia surreal. Sempre fui um incorrigível que nunca teve nenhum elo físico ou emocional como as pessoas. Nunca tive amigos próximos, no máximo um coleguismo de trabalho, quando me era conveniente. Sempre tentei me esconder de relacionamentos, de toques, carinhos de pessoas em geral. Por essa razão, nunca pensei que seria um dia tocado por alguém, não daquela forma. Não sei se consigo explicar, mas apenas os toques no pescoço, no peito e nos meus braços para me ajudar no banho passavam um calor descomunal. Parecia que ele me queimaria vivo apenas por algo tão simples. É um pouco piegas, eu sei, mas considerando minha personalidade e carência era até normal pensar assim. Sempre fui bastante dramático no meu intimo. Parece que o efeito do álcool não tinha mudado esse defeito, ainda que o seu toque fosse realmente intenso.
[...]
Sempre fui um garoto quieto, calado. Sem muito expressão ou desejos. Nunca tinha aprendido a viver como os colegas mais próximos. Na adolescência a carência tinha sido tão grande que chegava a ferir a pele. Mas depois dos 20 já me sentia como um assexual arromântico, sem muitos problemas. Ainda que isso não fosse realmente verdade, pois eu me escondia nessa condição. E aquela dor ao ser tocado por ele me fez lembrar-se disso. Ela era uma velha amiga de anos atrás que parece ter renascido ao seu toque. Eu a conhecia bem, contudo não era mais a mesma. Percebi isso na hora que ele pressionou sua mão contra o meu peito e me impediu de fugir do banho.
[...]
Estava um pouco grogue ainda. Ele me tirou do chuveiro pôs a toalha na minha cabeça e começou a enxugar o meu cabelo. Algumas lágrimas silenciosas caíram dos meus olhos. Não intencionais e impossíveis de conter. Parecia que a gravidade estava atraindo elas com mais força do que o normal. As lágrimas fizeram me lembrar. Era a mesma sensação de carinho. Ter a toalha entre os olhos, o corpo enxuto por alguém que tem um grande sentimento por você. Olhos protegidos contra o mundo enquanto o corpo era limpo das impurezas da vida. Era a mesma sensação de quando era criança.
─ Algum problema Leo? Por que está chorando?
Acordei do meu transe e falei:
─ Desculpa, Pedro, por esse incomodo ─ era o meu eu rígido e racional de sempre já pensando em como terminar logo aquela situação.
─ Sem problemas. Você tem que dormir. Vai ajudar na ressaca.
─ Obrigado ─ foi o máximo que consegui responder.
Ele ajudou a me colocar na cama, mas não antes de trocar de roupa. Acho que o meu pudor tinha sido vencido pela bebida. Pus minha cabeça no travesseiro e fechei meus olhos.
─ Continua úmido ─ falei como se fosse comigo mesmo.
─ O quê?
─ O travesseiro, tem estado molhado esses últimos dias.
─ Você tem dormido com a cabeça molhada?
─Não. Não é água que molha o travesseiro, mas não tem problema, dá para dormir assim. Já me acostumei ─ não cheguei a falar que eram lágrimas, mas olhei para ele e deu para ver que ele tinha entendido.
Não sei por que falei aquilo. Arrepender-me-ia daquela noite de sinceridades, por estar tentando fazer alguém ter pena de mim. Era isso que eu estava fazendo, ou não? Mas já não importava ou era isso que eu tentei me convencer. Antes de sair para o bar eu já tinha planejado tudo. Entretanto, isso teria que ser deixado para outro dia, pois só queria dormir um pouco.
─ Posso trocá-lo se quiser, você têm outro?
Ele ainda estava ali, pensei. ─ Não, não tenho outro, não se preocupe ─ respondi o mais sucinto possível. Por que ele estava ali? Faça como os outros me ignore, pensei mais uma vez.
Ele foi em direção para fora do quarto. Desapareceu da minha visão. Tudo pareceu um pouco nublado e triste como de costume e logo adormeci, mas antes acreditei que a noite atípica tinha chegado ao fim. Entretanto, eu estava completamente enganado.
[...]
Ao acordar alguém estava próximo à cama. Era ele. Estava dormindo ou pelo menos de olhos fechados. O cabelo estava bagunçado, as mãos estavam no seu queixo como se fizesse uma pequena prece para os céus. As costas largas estavam arqueadas, mas os braços permaneciam imóveis, sustentando o seu corpo na extremidade da cama. Era uma bela visão ao se ter logo de manhã. Bem, não era manhã ainda, na verdade, era madrugada. 2h00h para ser exato, caso meu despertador de cabeceira não estivesse enganado. Tentei me levantar, estava com uma forte dor de cabeça. Depois de algumas tentativas, percebi que foram inúteis as pernas não responderam de imediato. Permaneci lá. Contemplando-o. E ele parecia dormir bem. Ainda que tivesse em uma posição pouco convencional para dormir, principalmente para um corpo tão grande.
Enquanto o observava, não resisti e passei minhas mãos no cabelo dele. Eram surpreendentemente macios, pretos e um pouco longos. Permaneci tocando o seu cabelo. Não sei quanto tempo passei fazendo isso, mas me surpreendi quando ele acordou. Olhos como a noite me observavam com atenção. Ele apenas sorriu. Imagino que deveria estar vermelho por traz da minha barba por fazer habitual. Desviei rapidamente os olhos enquanto ele começou a falar.
─ Desculpa, no fim dormi ao lado de sua cama. Não quis te deixar sozinho. Você não parecia bem. E... ─ ele ficou momentaneamente sem palavras. ─ Se quiser falar qualquer coisa estou aqui, não se preocupe não falarei com ninguém ─ falou receoso como se as palavras pudessem facilmente me chatear ou me machucar.
Sem resposta ele continuou:
─ Tenho te observado durante esse tempo. Tentei até me aproximar no inicio, mas acho que não fui bem vindo. Sempre me surpreendeu como o apartamento ao lado era tão silencioso. Nunca vi você trazer amigos, chegar tarde. Ou sair nos fins de semana. Sempre trabalho, trabalho. Perguntava-me o porquê, mas não tive coragem de interferir na sua vida. Achei também que você não queria que ninguém interferisse ─ falou isso com um sorriso um pouco resignado e voltou a falar. ─ Perguntei sobre você a uma amiga que trabalha na mesma empresa. Disse que você era um perfeccionista no trabalho, com sérios problemas de sociabilidade, mas era um cara legal, sempre disposto a ajudar. Palavras dela, mas pensando bem acredito que sejam verdade parece ser o seu perfil. Não quis me intrometer na sua vida. Ainda que desejasse muito interferir, por algum motivo quis ser seu amigo logo quando você se mudou. Quando você apareceu na porta não resisti, sabia que era oportunidade perfeita de interferir um pouco. Minto, quero interferir totalmente na sua vida ─ dessa vez, falou com um sorriso que não consegui identificar muito bem, mas passava carinho e familiaridade como seu toque de antes.
─ Obrigado ─ foi o máximo que falei. Sinceramente, não tinha ideia ou experiência alguma para responder aquilo. Parecia tudo tão repentino.
Do nada ele começa a acariciar meus cabelos. Fiquei surpreso e com vergonha outra vez.
─ Estou apenas retribuindo ─ falou enquanto piscava com um dos olhos.
Normalmente, teria resistido, mas não fiz nada. Era uma sensação nova. Não parecia mais queimar como o toque de antes, contudo estava tão carregado de carinho que até doía. Não consegui entender como um "desconhecido" poderia causar tudo isso com algo tão simples. Certamente, a carência tinha chegado ao máximo ou então estava eu apaixonado? Tolice, dizia a velha voz de desaprovação mais uma vez. Entretanto, não importava, aproveitei o carinho dele mesmo assim.
[...]
Aquela noite foi uma sessão de “primeiras vezes”. Primeira vez a beber, primeira ressaca, primeiro contato físico intenso (ao menos para mim). E até o primeiro beijo (era o que eu achava). Muito desajeitado por sinal.
─ É o seu primeiro, não é?
Não respondi nada apenas concordei com a cabeça.
─ Bom, tecnicamente é o seu segundo então. Afinal roubei um enquanto você dormia. Desculpe ─ falou com um sorriso travesso no rosto enquanto acariciava meu cabelo mais uma vez.
Sorri um pouco em resposta e pressionei suas mãos contra as minhas. O toque já não queimava, mas os lábios pareciam brasa por onde passavam. O mesmo valia para sua língua que percorreram todo o meu corpo. Ele já estava em cima da cama junto comigo. Parecia que eu estava com febre, pois estava com muito calor, ainda que a cada minuto que se passava menos roupas tínhamos. Normalmente, eu teria reprovado tudo isso, afinal estava eu na cada com o vizinho que mal conhecia, mas aquela não era uma noite de pudores muito menos de arrependimentos. Eu tinha 26, já não era preciso ser tão rígido comigo mesmo. Apenas aproveite, era o que eu pensava.
[...]
Foi uma sensação muito boa. Talvez fosse à última, porque eu não sabia das reais intenções de Pedro, mas é provável que se eu tivesse falado isso para ele o teria magoado muito. Hoje, sei disso. Foi tão bom e tão cheio de sentimentos que achei que não merecia tudo aquilo. Mas pela segunda vez não houve vozes de reprovação, por isso guardei cada uma daquelas lembranças na minha mente. A velha forma egoísta que me era comum. No velho relicário de memórias seria o meu diamante. O pequeno compartimento estava cheio antes de ir beber. Cheio de todos os tipos de joias, mas aquela que guardaria era especial e, além disso, naquela noite muitas tinham se perdido e havia espaço de sobra, principalmente, para um pequeno coração há muito esquecido. Eu tinha que escrever tudo aquilo depois só para me lembrar de que não foi imaginação ou devaneio da ressaca.
Parecia que eu estava vivo pela primeira vez. Parece tão bobo agora, mas certamente são minhas melhores memórias que guardo até hoje. Escrevo “as melhores até hoje” para parecer mais poético, mas a vida tem se tornando muito melhor desde aquele dia.
[...]
Parecia que tinha sido um sonho, mas ele ainda estava lá acariciando os meus cabelos enquanto a sua respiração pesada movia seu peito. O calor e o cheiro de um perfume, bastante familiar (amadeirado, talvez), misturavam-se com o desodorante e o suor que permeava os pelos de una pele clara. A vontade era deixar algumas marcas. Parecia tão delicioso e excitante tudo aquilo, mas a ressaca e o cansaço ainda persistiam e logo voltei a dormir...
P.S. Um diamante é forjado com cuidado e rigidez, mas até a mais valiosa das pedras pode se despedaçar em uma queda, por outro lado se for um coração ele pode sempre se recuperar. Mesmo transparente e em pedaços ele não é invisível ou substituível e aquele do relicário já parecia vermelho novamente, como tinha de ser. Feliz, como tinha de ser.