PARTE 13
“Eu tenho namorado”. Três palavras, apenas. Três palavras que me fizeram acordar e me sentir um tremendo idiota por ter pintado um futuro impossível com frases e mais frases. Sentei na cadeira do computador, olhei atordoado pra tela e, celular ainda na mão, o retirei da orelha e depositei na mesa à minha frente.
Havia esquecido o programa virtual aberto: dois bonecos animados, com meu rosto e de Alexia no lugar das caras, faziam um dueto country. Inclinei a cabeça pra trás e respirei fundo, desviando meu olhar para o teto. “Eduardo, onde foi que você se meteu? Você é um otário iludido mesmo...”, repreendi-me mentalmente. Demorei um instante até pegar o aparelho de volta e falar:
– Engraçado... Eu esqueço, sabe. Esqueço que só te conheço há três dias e não sei quase nada sobre você.
Ele ficou mudo. Nós dois sabíamos que era verdade. Não havia culpados, eu apenas tinha projetado todas as esperanças de mudar minha vida em uma pessoa que mal conhecia e que tinha me dado meu primeiro beijo gay. Como não obtive retorno algum do outro lado da linha, continuei:
– Então... Aquele papo todo no dia do boliche, de você não se prender a ninguém... Tudo balela, né?
– Edu... Você, mais do que ninguém, sabe que nós precisamos despistar as pessoas pra não... Bem, pra não sacarem a gente. Não é porque a Alexia sabe de mim que todo o resto precisa saber. Além do mais, ela nem tinha ideia desse meu... Ahnn, namorado... – ele respondeu desconfortável, ainda buscando as palavras certas. – Não é bem um namoro ainda, mas está encaminhando pra isso. É um cara muito especial e que não quero machucar.
Não sabia por quê, mas cada palavra dele era uma facada gelada no peito.
– “Eu mais do que ninguém”? Como assim, que você quer dizer com isso?
– Ué, cara... você usa seu namoro com a Alê como escudo, pra não descobrirem que você é gay. Assim como eu sempre usei meu jeito de desapegado pra justificar minha falta de namoradas, desde o colégio.
Eu sabia que era verdade, mas isso não diminuía o fato de não conseguir encarar a questão quando ela era finalmente exposta. O Leandro verbalizar aquilo era meu atestado de covardia, por não me assumir, e de crueldade, por enganar a Alexia. Sempre fui acostumado a pensar sobre isso, e não a ouvir outra pessoa falando. Irritado, soltei:
– Escuta aqui, Leandro... Gosto muito da Alex e você foi o único cara que beijei na minha vida. Eu... eu não tenho certeza se sou gay.
“Aham, Eduardo. Aham.”, pensei comigo mesmo.
– Se você diz – ele devolveu, o tom de voz irônico. – Mas não fui eu quem falou em largar a namorada pra tentar ter um relacionamento com outro cara.
Quando ele falou isso, levantei-me da cadeira em um impulso. Apontando o dedo no ar, como se estivesse falando com um Leandro imaginário na minha frente, disse:
– Você se acha muito superior a mim, né?! O bem resolvidão da galera, que não precisa pegar mulher e só revela que é bicha pra dois ou três gatos pingados! Mas deixa eu te contar um segredo aqui: você tá namorando outro cara e pegou o namorado da sua amiga! O que me diz sobre isso, heim?!
Escutei-o inspirando profundamente antes de dar sua resposta.
– Quase namorando! E, Edu... velho, na boa... Quando eu vi seus vídeos gays no computador, antes de você chegar do banho, já tinha decidido que ia contar tudo pra Alê. Eu sou fiel às minhas amizades, cara. O que aconteceu depois foi... Erhh... Bom, a carne é fraca, né – ele disse, mas com a voz tremida, como se não tivesse certeza de acreditar que havia sido só por isso. – Caí na tentação, você tava praticamente montado em mim. Por isso acho melhor a gente passar uma borracha, Edu, na boa... Vai ser melhor pra todo mundo e você sabe disso.
“A carne é fraca”? Eu não podia acreditar naquela conversa toda. O compassivo Leandro, de infância triste e lar desestruturado, que havia me encantado falando de livros e me consolado em um banco de clube, agora se revelava alguém acusador, debochado, defensivo. Ele era a personificação de “o médico e o monstro”, bem ali naquele diálogo. Não aguentando mais, dei minha cartada final:
– Sabe o que você é? Um egoísta de merda. Aposto que me acha covarde por não conseguir terminar meu namoro, mas agora você também tem medo de falar a verdade pra Alex. – ele fez um murmúrio de protesto, mas eu continuei falando, o tom de voz elevado. – É isso mesmo... Não tem coragem de contar, só porque me beijou e teria que revelar sua culpa também. Você prefere deixar ela no escuro a colocar o seu na reta, né?
Pronto. Eu tinha atingido o calcanhar de Aquiles dele. Estava dividido entre ser leal, expondo um namoro prejudicial à melhor amiga, e manter-se calado, por receio de perder sua amizade quando contasse o que ele fez logo após descobrir meu segredo. Afinal, eles tinham uma ligação muito forte e sua culpa devia ser do mesmo tamanho da minha.
– Vai se fuder, Eduardo.
E desligou na minha cara.
Atirei o celular na cama, que quase bateu contra a parede. Não aguentava mais ficar naquele quarto; a cama onde tudo havia acontecido naquele dia, o site da Alexia ainda aberto e mostrando os desenhos a cantar, aquele chão onde...
Abri a porta, saí e me deparei com a mamãe na sala, sentada no sofá e fazendo tricô. Nem havia notado que ela já tinha deixado a Alexia em casa e retornado, de tão absorto que estava ao conversar com o Leandro. Pelo seu semblante, vi que ela não havia escutado nada. Ergueu a cabeça de seu trabalho manual e sorriu para mim.
– Dudu, a Alex pediu pra te avisar que ela esqueceu a bolsa. Ahh, e pra você não fuxicar dentro. – e deu uma risadinha antes de abaixar a cabeça para as luvas que tricotava. – Você acertou quando piscou pra aquela ali, filho. Em cheio.
Mudo, sentei-me ao lado dela. Até então, não tinha reparado que estava com vontade de chorar desde que escutei aquelas três palavras.
“Eu tenho namorado”.
Encostando a cabeça em seu ombro, silenciosamente deixei as lágrimas descerem. Ela só reparou quando sentiu os pingos que rolavam, abundantes, umedecerem sua roupa. Era inevitável que isso acontecesse naquele momento, vendo-a ali, após toda a tensão e expectativas frustradas que o papo com o Leandro rendeu.
Deixando as agulhas e luvas ainda disformes de lado, mamãe fez com que eu deitasse a cabeça em seu colo. Passando os dedos nos meus cabelos, eu já começava a soluçar. A represa tinha estourado e eu não podia fazer nada pra conter. Só queria que aquela segunda-feira acabasse logo, para tentar esquecer que aquele dia havia me levado do céu ao inferno no intervalo de um entardecer.
– Você não quer falar sobre, né? Tudo bem, querido... tá tudo bem.
Ela sabia tanto sobre mim que não precisava de resposta. Eu não queria e não podia falar. Deitado no sofá, em posição fetal, permaneci com a cabeça em suas pernas enquanto recebia o seu consolo em silêncio. Apenas evitei olhar para seu rosto. A mamãe sempre chorava quando me via chorando.
FIM DA PARTE 13
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