“Essa alegria é minha fala, que declara a revolução, revolução; Dessa arte que arde, de um povo que invade, essas ruas de clave e sol, e de multidão...” (Música de Rua, Daniela Mercury).
...
Adriano ficou paralisado, sem acreditar no que escutara.
- Topa ou não? – reagi antes que me arrependesse da ideia.
- Aonde quer ir? – ele não escondia a surpresa.
- Uma lanchonete, talvez... Sei lá – dei de ombros.
- Tudo bem, me passa o endereço.
- Se estiver de carro, basta seguir o meu. Onde estacionou?
- Eu não dirijo – balbuciou com timidez.
- Então te dou uma carona, ué!
- Não precisa – parecia temer um novo confronto – Vou chamar um táxi.
- Não seja idiota. Se quisesse fazer alguma coisa contra você, já teria feito – retruquei.
O visitante ponderou alguns segundos e logo consentiu com a cabeça. Pedi um instante para salvar o trabalho realizado e desligar o computador. Ele permaneceu o tempo todo acuado ao lado da porta. Findado o processo, seguimos em silêncio pelo corredor, e avisei a Rebeca que já estava de saída.
Quando o elevador chegou, receou mais uma vez antes de entrar. Comecei a ficar impaciente:
- Quanto mais você pensa, mais demoramos em resolver o assunto. E aí?
Titubeante, dividiu aquele cubículo mínimo comigo, ainda taciturno e cheio de incertezas. Por um breve momento, me senti um monstro por ter colocado tanto medo em alguém. Talvez ele não estivesse preparado para escutar o que ia contar. Ao chegar à garagem, perguntei se queria ficar no banco traseiro, dada a preocupação. Num ímpeto de coragem, porém, abriu a porta da frente, como se quisesse provar que era digno de confiança.
Durante o trajeto, não sabia exatamente como interagir, estava mais atento ao lugar aonde iríamos. Lembrei-me de uma antiga cafeteria próxima de casa, com um ambiente aconchegante e intimista. Os espaços mais reservados seriam ideais para o tipo de conteúdo a ser discutido.
Assim que chegamos, percebi uma movimentação maior, talvez pelo horário. Pedi uma mesa para dois, e o mais afastado possível. A atendente prontamente nos direcionou, sem qualquer questionamento. Após nos acomodar, entregou o cardápio e disse que retornaria logo mais para anotar os pedidos. Olhei ligeiramente e percebi que ele examinava o ambiente, curioso com o local.
- O que vai querer? – chamei sua atenção.
- Não sei – voltou-se novamente ao menu – Acho que nada.
- Dificilmente teremos uma conversa rápida, por isso preferi sair da empresa. Melhor se abastecer.
Adriano não parecia interessado no que iria comer e provavelmente desejava ir direto ao ponto. A verdade é que aqueles minutos extras eram o artifício perfeito para maturar a maneira como discursaria sobre os últimos eventos. Pouco tempo depois a garçonete voltou, como prometido:
- E então meninos?
- Uma quiche de tomate seco e um cappuccino grande – anunciei.
- Certo, e você? – apontou com a caneta para o outro componente.
- O mesmo... – fechou o cardápio e o entregou em suas mãos.
- Tudo bem – ela deu um sorriso cúmplice, como se estivesse presenciando algum tipo de encontro – Volto já!
Quando enfim se afastou, respirei fundo e fitei o seu olhar:
- Vamos lá, por onde começar... – cocei a testa, indeciso – Você me falou que queria uma ajuda para denuncia-los através dos vídeos.
- Se testemunharmos, podemos construir um caso mais embasado e talvez atrair as outras vítimas – a possibilidade voltou a empolga-lo.
- Isso não vai acontecer – cortei a animação – Não pretendo utilizar o material, muito menos levar o caso às autoridades, e tenho dois bons motivos para isso.
- Mas é a nossa única chance!
- Não, não é...
- Como assim?
- A polícia vai perguntar por que não deu queixa antes, questionará se estava bêbado, e como pode provar que foi dopado. Acredite: vão fazer de tudo para desmerecer a sua versão e sairá de mãos vazias, além de humilhado. Não quero me envolver nesse tipo de exposição. Essa é uma razão.
- Prefere deixa-los impunes ao invés de pelo menos tentar?
- Não disse isso. Parte do que você escutou de César é verdade sim. Eles já estão pagando por isso, se é o que quer saber.
Adriano arregalou os olhos, assustado. Prestes a continuar, fomos interrompidos pelo retorno da garçonete, que trazia o nosso café e os pratos. Organizou tudo em cima da mesa com cuidado e voltou a nos deixar:
- Se desejarem algo mais, pode me chamar, tá bom? – retirou-se com aquela típica alegria forçada.
Bebi um gole da bebida quente para retomar o pensamento:
- Já tem algum tempo que decidi investiga-los. Minha maior motivação foi justamente perceber que não fui um caso isolado. Fiquei imaginando que não seria o primeiro, nem o último. Precisava agir.
- O que você fez?
- Comecei a seguir pequenas pistas, que foram me levando a informações mais importantes. Prefiro não entrar em muitos detalhes, mas tenho juntado peças de um imenso quebra-cabeça.
- E porque acha que isso pode dar certo?
- Não acho nada. Estaria mentindo se dissesse que não é uma forma de me sentir vingado. Acima de tudo, porém, é o que penso ser correto. A prisão de Júlio não foi uma coincidência...
- Aquilo foi por sua causa? – parecia impressionado.
- Descobri que ele também aliciava menores com o auxílio do irmão. Fui pro Rio de Janeiro e convenci uma das vítimas a me ajudar. A família dele é muito poderosa, tinha a polícia a seu favor, mas conseguimos vencer essa barreira.
- Como? – permanecia incrédulo.
- Sem detalhes – voltei a alertar.
Não descartava um cenário onde Adriano fosse uma espécie de mensageiro, ainda que considerasse uma chance remota. Além disso, precisaria envolver outros participantes e isso estava fora de cogitação.
- Ele foi o primeiro?
- Não, foi o César.
Adriano franziu o cenho, como se procurasse alguma lógica na minha afirmação:
- Mas ele esteve lá ontem... E continua livre. Qual a pegadinha?
- Uma retaliação. Quando o interceptei, estava usando um disfarce. Ele descobriu e começou a me seguir. Foi o que aconteceu quando saí de sua casa. Basicamente, fui encurralado e saímos na mão, no meio da rua.
- Ainda não faz sentido. Em teoria ele também deveria estar atrás das grades, certo?
- Quando tudo isso começou, estava com muita raiva – divaguei – Não havia nada muito bem planejado e agi movido por impulso.
- O que aconteceu?
Por mais que negasse, meu inconsciente ainda me obrigava a tentar justificar os atos. Para piorar, o semblante bastante concentrado à minha frente me deixava desconcertado. Ainda assim, queria me livrar da confissão o mais rápido possível:
- Digamos que ele sofreu o mesmo que nós dois, mas consciente da situação...
Os talheres prestes a cortar a comida pararam no ar. Naquela noite pude perceber como Adriano conseguia expressar diversas sensações apenas com o movimentar das sobrancelhas:
- Você... Você... – ainda parecia tentar digerir a frase.
- Como disse – me apressei em contornar – Fui tomado por uma ira súbita, apenas com o desejo de dar o troco. Sei que errei e carrego isso até hoje.
- Contratou alguém para chegar até ele?
No fundo, ele sabia a resposta, mas parecia querer abrandar algum tipo de decepção. Neguei com a cabeça:
- Fiz tudo sozinho. Criei um disfarce, e não foi difícil criar uma aproximação. Todos voc... Digo, eles, parecem bem ansiosos no campo sexual. Quando percebi uma brecha, decidi extravasar.
- Só pelo prazer da vingança?
- Não, inicialmente buscava respostas. Só sabia o nome de todos, precisava de mais referências. Calhou de ser o primeiro a entrar no meu radar. No dia pensei em ficar apenas no campo da ameaça, mas o desdém da outra parte desencadeou todo o resto.
Àquela altura, projetei que, como Gustavo, Adriano se levantaria e iria embora. Apesar do espanto contínuo no seu olhar, permanecia quieto, analisando os meus motivos.
- Passei um tempo angustiado com o acontecido, mas sem querer desistir da punição – prossegui – Alguns amigos me ajudaram a encontrar um meio de seguir adiante, e a investigação ficou mais elaborada. Temendo outra represália da minha parte, César passou a me enviar históricos diários das conversas do grupo. Você, de fato, é um caso à parte. Sua ausência era uma incógnita.
- Então eu sou mesmo um alvo...
- Não disse isso – bebi mais um gole do café – Sinceramente, e não se sinta vitorioso por isso, estou propenso a acreditar em você, mas preciso de tempo para digerir os fatos da sua versão. Confiança não é fácil de se adquirir, principalmente depois de tudo o que aconteceu.
- Infelizmente não há mais nada que possa lhe contar.
- Tudo bem, só queria mesmo esclarecer porque não posso oferecer suporte com o seu pedido. Já tenho um plano em andamento, e irei até o fim.
- Não há nenhuma possibilidade de mudar de ideia? – insistiu.
- Pense bem antes de partir para a ação – defendi a minha negativa – Qualquer busca um pouco mais acurada pode levar ao seu nome. Na lista de hóspedes do apartamento no carnaval, nos diálogos da panelinha, em qualquer depoimento individual... Lutar para acusa-los também será um esforço para provar a sua inocência, se é que se encaixe nesse quesito.
Adriano suspirou, sem esconder a impaciência com o meu lado cabreiro. Pela primeira vez, levou um pedaço da quiche à boca, pensativo. Permaneci calado, deixando-o dar vazão aos pensamentos que lhe ocorriam. Durante o curto período, era impossível não voltar a contemplar o seu rosto, imaginando o que teria sido daquela promissora quinta-feira de carnaval.
- Tudo bem, você me convenceu. Como posso ajudar?
Surpreendi-me com a declaração um tanto decidida, mas não amoleci:
- Se já me contou tudo o que sabe, não sobrou muito que fazer... – provoquei por instinto.
- Deve haver alguma coisa que eu possa pesquisar.
- Ficar de fora disso tudo é um bom começo. Manter esse assunto entre nós também pode ser de grande valia. Se ele foi te procurar ontem, talvez os outros já saibam demais.
- Vou manter o sigilo, e espero que acredite nisso.
- Não tenho alternativa.
- De todo modo... Obrigado por me contar a verdade.
- Não agradeça. Apenas contei o que você precisava saber.
Antes que pudesse expor um sorriso tímido nascendo, escondeu os lábios com a xícara. Algo me dizia que a minha muralha de proteção já estava escancarada, e não era tão difícil detectar o mecanismo. “Se ele deposita tanta credibilidade na sua sinceridade, porque não pode fazer o mesmo?”, me indaguei.
O silêncio constrangedor após a temática finalizada deu lugar a um papo inocente sobre o meu trabalho e o aplicativo onde nos comunicávamos. Inexplicavelmente, e não por culpa dele, sempre voltávamos à questão da gangue e suas artimanhas. Segurava-me ao máximo para não compartilhar etapas específicas dos acontecimentos, ainda que me animasse com a ideia de acompanhar a reação de alguém mais ligado a eles.
No fim, ficamos mais tempo no estabelecimento do que o previsto. Perguntei a real motivação de ir até a empresa para me alertar e me respondeu que César poderia ser imprevisível. Em sua opinião havia uma dubiedade na personalidade da minha primeira vítima, que ele não sabia explicar com exatidão. Reforcei o arrependimento com o ato sexual forçado, e sabia que todos os próximos passos da Liga do Mal poderiam ser uma consequência direta dessa agressão.
Adriano mais escutava do que opinava. Visivelmente estranhava a circunstância, mas procurava não elaborar qualquer julgamento. Eu sequer deveria me preocupar com essa probabilidade, afinal ainda o enxergava como um membro dissidente do lado negro da força. Contudo, o seu comportamento contido era um alívio para a minha consciência.
Com o avançar das horas, pedi a conta e, por força do hábito, paguei a minha parte e a dele. Sugeri que trocássemos nossos números de telefone e pedi que se soubesse de algo diferente, me avisasse. A ideia foi prontamente atendida, sem ressalvas. Em seguida, ofereci uma carona para casa, mas ele preferiu pegar um táxi, avisando que não era tão longe. Nenhum dos dois queria forçar a barra, e talvez fosse o melhor a fazer.
...
Cheguei ao apartamento inquieto e pensativo, depois de dirigir completamente aéreo. Tudo seria diferente, e se quisesse agir como pretendia naquele momento, teria que recorrer novamente a artifícios primitivos do meu ser. Muita coisa precisava ser ponderada e, ao mesmo tempo, não poderia mais vacilar.
Sem ao menos trocar de roupa, segui para o escritório. Olhei tudo o que estava anotado no quadro de vidro e entendi que nada mais daquilo me seria útil. Conformado, apaguei as informações irrelevantes e voltei a fitar as quatro imagens presas na parede ao lado. “Será que Adriano realmente merece ficar de fora disso?”. Os últimos dias tinham sido muito elucidativos em relação a um dos maiores mistérios da trama, mas não conseguia calar a voz da dúvida na minha cabeça.
“Mãos à obra, Augusto”, comecei a escrever em ritmo vertiginoso. Todos as bases, contextos e cronologias dos últimos diálogos ganhavam vida no painel. Às vezes fazia uma pausa, no simples intuito de não deixar qualquer pormenor perdido no inconsciente, e logo voltava a rabiscar. Faria de tudo para perceber qualquer passo em falso dentro daquele histórico. Ninguém consegue sustentar uma atuação por muito tempo.
Com quase toda a área ocupada, deixei um pequeno espaço para elaborar ideias contra Alexandre, Cláudio e... César. Sim, já admitia a minha ingenuidade ao achar que ele era um escopo vencido. Subestimei a sua inteligência e agora precisava trabalhar para ser ainda mais atemorizante. Seria um desafio dar conta do principal trio, já que me faltavam dados mais concretos, mas se tive capacidade para derrubar o filho de um político poderoso, certamente encontraria outras maneiras de vencê-los.
A primeira decisão foi abortar toda a história dos disfarces. Nada que fizesse poderia impedir uma eventual divulgação dos vídeos. Era impossível negar a minha identidade nas gravações, estava nítida. Sendo assim, era mais prático e impactante que eles soubessem que iriam sofrer na mão de uma das vítimas. As redes sociais e o contato do falso perfil já soavam desnecessários.
O segundo passo foi realizar uma análise precisa de danos. Não teria mais o auxílio diário de César com o envio das conversas virtuais, mais ainda tinha acesso remoto (e clandestino) ao seu computador. Liguei minha máquina e acessei o seu e-mail. Nenhum alerta preocupante saltava-me aos olhos, mas isso significava muito pouco, perto do que ele poderia utilizar para avisar os amigos.
Não conseguia pensar em nada mais estarrecedor do que aquela pasta escondida na área de trabalho. Ainda receoso, cliquei para reproduzir o filme e me certificar do que era possível ver e escutar. Aquela situação talvez tenha sido a mais humilhante da sua vida: uma confissão constrangida, com o corpo entregue entre súplicas e gemidos desesperados. A razão tinha que ser reprimida, nem que fosse por um segundo. Salvei uma prévia da filmagem e não pestanejei em enviar para ele, dessa vez do meu aparelho pessoal.
-“Pense bem antes de cogitar falar com alguém sobre o nosso encontro ontem. Explicar um murro na cara é fácil, mas tente justificar estar de quatro na cama para mim...” – digitei.
Era cruel, intimidante e assustador. Também era errado, mas era o que precisava ser. Queria provar que estava com igual munição para entrar na batalha, e não pensaria duas vezes antes de atirar para todos os lados. “Acredite, César pode ser imprevisível...”, recordei a afirmação de Adriano na cafeteria.
Em seguida, reli tudo o que tinha em mãos, desde bate-papos incoerentes aos documentos obtidos por Flávio, quando apurava sobre a placa do carro. “É um homem, tem sessenta e três anos e é dono de uma rede de concessionárias no estado...”, lia o documento como se estivesse revivendo a cena. “Já pensou quando o senhor Alberto voltar e a vizinhança falar que escutou o filhinho dele gritando e gemendo sem parar... Vai dizer o que?”, a ameaça de uma mente transtornada parecia viva dentro de mim.
Rapidamente comecei a pesquisar as filiais da empresa e os seus respectivos endereços. O elo familiar do garoto seria a minha carta na manga. Encontrar o patriarca no ambiente de trabalho não poderia ser tão complicado assim. Se fosse necessário, partiria para atitudes mais radicais. Capturei a tela da minha busca e complementei a advertência logo após o envio do arquivo:
- “Lembre-se que sei muito mais do que imagina...” – digitei confiante.
Não era exatamente uma estratégia, mas serviria bem aos meus propósitos. Pensar adiante sem ter uma certeza mínima de segurança era arriscado. Em poucos minutos, finalmente recebi uma réplica:
- “Já disse, não falarei nada. Esse é o combinado”.
“Que cara de pau!”, voltei a teclar:
- “Não tente me fazer de idiota. As suas paredes tem ouvidos. O seu silêncio compra o meu silêncio. Considere isso um aviso”.
Ele não respondeu mais. Se a tortura psicológica tinha funcionado ou não, só o tempo iria dizer. Independente, sabia que aquele pacto era temporário, até que ele conseguisse outra maneira de sair por cima. Era o hiato que teria para uma investida pesada contra Cláudio e Alexandre. Adormeci encarando aquelas imensas lacunas vazias e idealizando como poderia preenchê-las de maneira mais concisa. Sem aviso prévio, o tempo passou a ser um fator precioso.
...
A manhã seguia a mil, e todos corriam para manter os projetos dentro do cronograma original. Mais uma vez, previ que passaria todo o dia trancafiado no escritório. Num rápido intervalo para aliviar a bexiga, encontrei Flávio no corredor e disse que precisava fazer um pedido “daqueles”.
- Alguma nova descoberta? – parecia preocupado.
- Não, não... É mais uma questão de precaução.
- Certo, manda.
- Lembra uma vez que encontrou os dados de uma pessoa através da placa do carro?
- Hum... – seu olhar acessava o catálogo de memória com precisão – Um empresário, eu acho. O milionário?
- Esse mesmo...
- O dono da concessionária – pronunciamos ao mesmo tempo.
- Isso! – confirmei – Dei uma olhada e vi que são muitas filiais. Acha que conseguimos descobrir em qual delas passa a maior parte do tempo?
- Não seria mais fácil ir direto à residência dele?
- Nesse caso, preciso de algo que remeta ao ambiente de negócios mesmo...
- Tudo bem. É urgente? Preciso dar uma sondada para te dizer com mais certeza.
- Beleza, quando puder.
Agradeci a ajuda mais uma vez e voltei aos afazeres. Perto do horário do almoço, recebi uma notificação no celular de um número estranho. Abri o chat e percebi que era uma mensagem de Adriano:
- “Desculpe a intromissão, mas você disse que eu poderia falar caso precisasse”.
Estranhei a frase e respondi rapidamente.
- “Sem problemas. O que houve?”.
- “César me perguntou se eu já avisei aos outros sobre você”.
- Mas que filho da puta insistente... – resmunguei em voz alta.
- “Quando?” – inqueri nervoso.
- “Agora pela manhã. Disse a ele que mandaria um e-mail para todos. O que devo fazer?”.
- “Como assim?”.
- “Pensei que se fosse agir, teria que ser um discurso sincronizado com o seu... Não faço ideia de como abordar o assunto”.
Reli aquela frase pelo menos três vezes. Aquela atitude era surpreendente e não sabia como interpretá-la. Precisava de uma resposta rápida, mas só conseguia andar de um lado para o outro, nervoso por não conseguir raciocinar.
Alguns segundos depois, um vislumbre de como matar dois coelhos com uma cajadada só surgiu à minha frente. Era ousado e inusitado, mas era uma saída louvável. Voltei a digitar como se não houvesse amanhã:
- “Ainda tem contato com Alexandre?”.
- “A última vez foi quando estive na casa dele. Pelo telefone, bem raramente”.
- “Tive uma ideia, mas ela pode ser um pouco perigosa para nós dois. Você precisa seguir à risca tudo o que eu falar”.
- “Perigosa em que sentido?”.
- “Teríamos que ser hábeis em convencê-los sobre a minha vingança, sem entregar muito o plano”.
- “Não tô entendendo”.
- “Peça para voltar ao grupo e avise sobre as minhas intenções. Seria uma forma de saber se todos já conhecem a verdade ou se César ficou com medo de ir adiante”.
- “Mas cito o seu nome mesmo?”.
- “Sim, não se preocupe. Você se safa de alguma possível desconfiança deles e eu fico por dentro do que estão tramando. O que acha?”.
- “Acho que não está raciocinando direito...”.
Era insano, eu sei. Estava abrindo mão de toda a cautela e sendo jogado de bandeja na cova dos leões. No entanto, era também uma maneira de entender o poder de defesa do bando, o que poderiam armar e, de quebra, comprovar de uma vez por todas a fidelidade de Adriano. Por mais que os fatos já indicassem isso, minha mente precisava da cereja do bolo para coroar a sua virtude. Estava decidido:
- “Logo mais você vai entender. Vou escrever tudo o que deve dizer. Não mude nada, ok?”.
- “Tudo bem... Manda!”.
Dispensei um instante de paz durante o almoço e me vi empolgado elaborando uma redação. Organizava os possíveis desdobramentos da confabulação, para que nada saísse do roteiro. Às vezes titubeava em busca de um pingo de lucidez, mas continuava acreditando ser aquele um grande trunfo.
Passei todas as informações e repeti as instruções com prudência. Por ser um meio virtual, o nervosismo de Adriano não estaria tão aparente, mas todo cuidado era pouco. Findada a sessão de objeções e esclarecimentos, só me restava aguardar. O chá de espera, inclusive, foi maior do que imaginava. Não queria demonstrar ansiedade ou desespero, por isso decidi manter o silêncio.
A resposta chegou com um conciso apito do celular no meio da tarde. Um anexo que valia ouro, um histórico que abria novas portas. Baixei rapidamente, parei tudo o que estava fazendo (ou tentando fazer) e comecei a ler.
...
Quarta-feira, 08 de Abril
Adriano foi adicionado ao grupo.
Alexandre diz: Pronto, todo mundo aqui. Pode mandar Adriano!
Cláudio diz: Olha só quem voltou!
César diz: O que houve?
Adriano diz: Valeu! Pedi pra me colocarem novamente aqui porque tenho um negócio importante para falar.
Alexandre diz: Conta logo, tô ficando agoniado!
Adriano diz: Lembram aquele cara que vocês pegaram no carnaval desse ano?
Cláudio diz: Porra, não tô lembrando quem eu comi ontem, quem dirá há dois meses atrás.
César diz: Que dia?
Adriano diz: No primeiro dia, quinta-feira.
Alexandre diz: Lembro sim, o carinha que descolou pra gente. O que tem ele?
Cláudio diz: Caralho! Que memória de elefante!
César diz: Se você não usasse tantos alucinógenos, saberia também.
Cláudio diz: Ahahahahahahaha.
Adriano diz: Aconteceu um negócio muito estranho. Nessa semana, ele descobriu onde eu morava, me interceptou, e entrou à força na minha casa.
Alexandre diz: Como é que é?
Adriano diz: Apareceu subitamente, disse que sabia sobre todos nós e quem éramos. Pediu endereços, me intimidou e avisou que iríamos pagar.
César diz: Como ele chegou até você?
Adriano diz: Não faço ideia.
...
Interrompi abruptamente e questionei a Adriano se César não tinha colhido esses dados durante a conversação deles. Em seguida, recebi diversos prints de outro chat paralelo ao grupo que, pelo horário, acontecia de forma simultânea. Neles, o meu primeiro alvo alertava que talvez fosse melhor ambos omitirem o seu envolvimento e o que tinha acontecido na noite anterior.
César temia ser pressionado para agir sozinho, além de ser interpelado sobre o motivo de não ter alertado a corja antes. Ele achava que iam querer exclui-lo, já que estava sendo tão visado, e isso não seria bom para ninguém. Adriano acatou a sugestão.
Dei-me por satisfeito com a presteza e voltei à leitura inicial.
...
Alexandre diz: O que respondeu?
Adriano diz: Disse que não tenho contato e nem sabia onde moravam. Não sei se acreditou nisso, mas disse que cedo ou tarde descobriria e que iríamos nos arrepender.
Cláudio diz: Que merda é essa, ele está querendo se vingar?
Adriano diz: Aparentemente sim. Achei melhor avisar a todos. Não sabia se ele já tinha “visitado” mais alguém.
César diz: Acho que já teríamos emitido um alerta por aqui, né? O que ele fez com você?
Adriano diz: Ele sabia que poderia ser perigoso por conta das câmeras de segurança do edifício. Penso que o intuito era só amedrontar, o ataque foi amador.
Alexandre diz: Acham que pode levar o caso à polícia?
César diz: Não existem provas para incriminar algum de nós. Ter a posse dos nossos nomes não significa nada.
Cláudio diz: Meu amigo, se ele aparecer aqui, coloco a boca toda atrás dessa putinha.
Alexandre diz: Ahahahahahaha... Também acho muito difícil fazer algo contra mim. Mas vamos ficar ligados. Valeu por avisar!
Adriano diz: Tudo bem. Se tiver novidades, falo para vocês.
Cláudio diz: Não fica dando bobeira por aí, hein? Vamos nos manter informados, mas isso não vai dar em nada, a gente acaba com ele em dois tempos.
Alexandre diz: Até porque tenho um elemento que vale mais do que mil ameaças.
César diz: Eu já teria mandado pra meio mundo de gente.
Alexandre diz: Sim espertão, a sua cara também está lá. Se necessário, na hora certa a gente usa. Mas tenho certeza que não vou precisar tirar nada da minha coleção.
Cláudio diz: Beleza, astro pornô.
Alexandre diz: AhahahahahahaTerminei de ler com um misto de perplexidade e fascínio. Estava contente com o sucesso da empreitada. Mesmo com a brevidade da conversa, muitos indícios estavam rolando por ali. César, além de também ser péssimo na atuação escrita, parecia querer dar dicas aos amigos, ainda que não pudesse falar com todas as letras. Alexandre parecia ter uma fortaleza ao seu redor ainda maior do que Júlio, mas precisava estudar o que seria exatamente essa proteção que ele tinha ao seu dispor.
O que me deixava realmente chocado era o senso de impunidade da equipe. Intrigava-me o fato deles saberem que suas ações eram erradas, mas que poderiam seguir em frente, já que não encontravam qualquer percalço pelo caminho. Vi-me imaginando o futuro de parte dessa juventude que acha ter o controle sobre tudo, apoiada pela visão mesquinha dos pais.
Minha vontade era correr para casa e anotar todas essas novas impressões no painel investigativo. Já tinha optado por sair mais cedo, mas uma breve aparição na porta da minha sala me relembrou outros compromissos pendentes:
- Updates chegando! – Flávio apontou um papel impresso na minha direção.
- Como assim? – não sabia do que se tratava.
-O que me pediu hoje pela manhã, sobre o senhor Alberto – me entregou em mãos.
- Ah, sim. Foi mal, estava viajando aqui. E aí, descobriu?
- Morumbi. É lá que fica a matriz de uma das marcas de carro que vende. Tem um escritório principal onde ele passa a maior parte do tempo. Não vai ser difícil encontra-lo.
- Que agilidade é essa, hein? Tô ficando com medo de você. Depois me ensina como ser um bom detetive.
- Liguei para todas as concessionárias fingindo ser um repórter de um site que estava fazendo uma matéria sobre o crescimento do setor. No segundo telefonema, já tinha matado a charada.
Gargalhei com a astúcia e criatividade do meu amigo, além de reforçar a assistência extraoficial.
- Deixe disso – respondeu – Aliás, eu é que tenho que agradecer por topar comparecer no jantar de hoje. Ficaria bastante deslocado se estivesse sozinho.
“Droga, o jantar...”, constatei que tinha me esquecido completamente da ocasião, mas não deixei a peteca cair:
- Relaxe, vai dar tudo certo. Quando menos esperar, já estará se sentindo parte da família.
Não poderia furar a promessa que fiz a Juliana, muito menos deixar Flávio entregue ao possível interrogatório de Marcos. Despedimo-nos e avisei que logo mais voltaríamos a nos ver. Em seguida, retomei a comunicação com Adriano. A hipótese de um novo agente duplo ao meu lado era promissora, e era preciso reconhecer o esforço.
- “Espero ter ajudado. Se precisar de algo mais, pode me falar...” – foi a sua resposta.
Queria ter uma explicação convincente sobre a sensação que me percorreu ao ler aquela frase, mas não tinha. Remava contra a maré das minhas reflexões, me defendendo de uma fácil aceitação de uma história tão complexa. A teimosia, porém, já tinha sido vencida pela minha mente, que começava a assimilar com mais tranquilidade a veracidade do garoto atraente.
...
Entre desligar o computador, sair do escritório, tomar um banho demorado e comprar um vinho, foi tudo muito rápido. Cheguei ao apartamento da minha sócia um pouco depois do horário combinado, e todos já estavam presentes no local.
Quando me viu, Flávio não escondeu um olhar de alívio, enquanto Gustavo parecia surpreso. Entreguei a garrafa para Marcos e fui me juntar aos demais:
- Ih Guto, valeu pela tentativa, mas o vinho que o nosso convidado especial trouxe é bem melhor.
- Hum, ao contrário dele, não preciso impressionar ninguém – ri – A gente começa bebendo o que eu trouxe então, e depois partimos para um estágio mais refinado.
O clima era mais descontraído do que o pressuposto. As piadinhas rolavam soltas, sem nunca constranger o motivo da reunião. Os dois permaneciam sentados lado a lado, mas evitavam carinhos e toques, como se não quisessem causar desconforto aos donos da casa. Não que fossem agir de forma repreensiva, mas compreendia a atitude de ambos.
Aos poucos, e com as taças sempre cheias de vinho tinto, todos começaram a ficar mais à vontade. Ainda assim, nenhum assunto levava ao relacionamento em questão. Cedo ou tarde, sabia que o tema viria à tona. Quando o jantar finalmente foi servido, e já estávamos sentados à mesa, Marcos resolveu expor a sua opinião:
- Queria aproveitar a ocasião para demonstrar o quão grato estou por estarmos todos aqui celebrando, e dizer que a felicidade do meu cunhado também é a minha. Tenho certeza que a Juliana e o Guto pensam o mesmo. Vocês são jovens, tem muito caminho pela frente e espero que vivenciem isso da melhor maneira. Que venham mais encontros como esses! – e ergueu a taça, convidando-nos a um brinde.
“Então era com esse espírito fanfarrão que todo mundo estava preocupado?”, pensei no temor dos irmãos perante os possíveis problemas de aceitação do membro mais velho da família.
Juliana exibia um sorriso cúmplice e o rosto de Flávio parecia queimar de tão vermelho que estava. Não sabia exatamente como deveria reagir àquela situação. Lamentar? Comemorar? Fazer um pronunciamento? Por mais que imaginasse o quão negativo poderia ser dividir o mesmo recinto com amigos de longa data, o parente (e ex-pretendente) de um deles, e o namorado (que também é cúmplice e funcionário), era impossível não se deixar envolver pelo clima fraternal.
Prestes a atacar o suculento filé no meu prato, fomos interrompidos por outro discurso:
- Antes que perca a coragem de dizer isso – Flávio balbuciou, repousando o copo na mesa – Queria dizer que essa acolhida é muito importante para mim. Sei que pode parecer estranho por conhecer vocês de um ambiente de trabalho e ter construído laços na empresa, mas essa pessoa – olhou rapidamente para Gustavo – me encantou de um jeito que eu jamais esperava. É tudo muito recente, mas essa aceitação só me mostra o quanto posso fazê-lo feliz. Obrigado por me darem essa oportunidade.
- Nossa... Não precisava disso! A garrafa de vinho já tinha convencido a gente! – Marcos gargalhava, enquanto eles se abraçavam.
Era muito cedo para prever o que seria daquele namoro. Mas era palpável a certeza de que o sentimento era mútuo. Estava feliz pelos dois, e bastante tranquilo em relação a isso. O curto e desajeitado beijo presenciado por nós dissipou qualquer possível sensação de ciúme bobo ou derrota. Na condição de cupido errante, passei a capitanear uma genuína torcida pelo novo casal.
...
Retornei a casa quase de madrugada, sentindo-me um pouco alto pela aventura etílica. Mesmo assim, guardei sobriedade suficiente para levar outra tarefa adiante. Estava a postos para começar um segundo tempo no escritório e adicionar mais informações recebidas ao longo do dia.
Acendi a luz e me deparei com um universo de palavras e fatos sobre Adriano, recém-escritos com hidrocor na superfície transparente de vidro. Estava ali tudo o que ele havia confidenciado, as minhas dúvidas em relação aos relatos e parte do seu passado revelado pelo vídeo. Peguei o celular e reli tudo o que havia sido enviado.
Precisaria de pelo menos outro painel do mesmo tamanho para deixar fluir novas teorias e possibilidades. A leitura ainda conseguia me instigar com alguns detalhes que deveriam ser aprofundados, pistas a serem examinadas com minúcia e frases que agravavam ainda mais a índole de cada membro. Teria que redobrar a minha munição se quisesse ganhar uma vantagem considerável no jogo, e passei a admitir que toda contribuição seria bem-vinda.
No meio daquele turbilhão de pensamentos, olhei de soslaio para a foto em miniatura de Adriano no topo do chat. Como um momento que tinha passado despercebido, sem que houvesse motivo, cliquei com curiosidade para ampliar a imagem. Sua face exibia uma risada simpática, dessas que quase mostram todos os dentes de tanta animação, e as sobrancelhas faziam um movimento engraçado que forçava uma careta extrovertida, algo que nunca tinha presenciado em nenhuma das vezes em que mantivemos contato visual.
Quando dei por mim, notei um sorriso no canto da minha boca. Desconcertado, voltei a fitar o quadro. “Ele é mais uma vítima, também correu riscos e está disposto a fazer parte do seu time. Isso é tudo o que você precisa saber...”. Respirei fundo e, decidido, apaguei o que estava escrito. Sim, aquilo se repetia novamente, mas tinha uma razão maior: naquela noite compreendi que se possuímos aliados e bons artifícios, podemos ser maiores que um exército.
Recomecei do zero, excluí Adriano da minha lista, dividi o quadrado gigante na parede em apenas três áreas e voltei a escrever. “Cláudio, César e Alexandre”. Mais três peças derrubadas no tabuleiro e estaria pronto para encerrar a minha sede de vingança.
(continua)
...
Oi pessoal! Peço desculpas pela demora prolongada, estava off-line, trabalhando em outro país temporariamente! Drica Telles (VCMEDS), não duvide se o seu xará tiver mais sorte mesmo, rs. Plutão, pode deixar! O ruivo também manda um abraço! Rodrigo Paiva, pois é, Gustavo foi bem apressadinho, né? Muitas pessoas estão cheias de dúvidas sobre o Flávio (e eu estou me divertindo com isso). Obrigado pelos elogios! CrisBR1, te garanto que logo logo o coração de Augusto vai pegar fogo! LC Pereira, fico feliz que esteja curtindo! Obrigado a todos por sempre votarem e comentarem, isso me enche de alegria. Até o próximo capítulo! Um grande abraço!