“Foi difícil para me conter em dar aquele beijo que eu te dei; Tua boca tem sabor de quero mel, eu quero mais, eu sei que sei..." (Regando-te, Timbalada).
+++
É bem provável que já estivesse com a boca dormente do tanto que eu sorria. Por mais que você lute contra alguns sentimentos, o nosso instinto nunca falha. Havia uma atração ali, era inegável. De tantos homens bonitos dentro daquele bendito bloco, o que aquele tinha de tão especial? Isso, infelizmente, ainda não tinha capacidade de explicar.
Passei a noite em claro, tentando entender o significado e as possíveis consequências daquele beijo. Pensei em mandar uma mensagem, mas não sabia o que dizer exatamente. Ao mesmo tempo, olhava o celular seguidas vezes, na esperança de que ele tivesse dado o primeiro passo. Ambos permaneciam calados.
Suspirei desesperançoso. Mal sabia que a proximidade de merecidos dias de descanso prometia fortes emoções. Algumas decisões do coração começariam a brigar feio com atitudes impregnadas na mente. Lidar com as turbulências do caminho e decidir qual dos lados estava com a razão seria um grande desafio.
+++
Um fim de semana daqueles.
Sexta-feira:
“Você se arruma, cheio de empolgação. A noite promete, e os seus amigos já estão a postos. A balada está lotada e todos se dividem, afinal, paquerar em grupo é sempre mais complicado. Algumas pessoas parecem interessantes, e você começa a assumir um lado mais seletivo. As horas passam, o local ferve e o seu pretendente oferece uma bebida. Feliz com a atitude e pensando ter tirado a sorte grande, você bebe um gole, e mais outro, e mais outro... E não se lembra de mais nada.
Então você acorda em um lugar diferente, sem saber como chegou até ali. Estranha a situação e decide ligar para algum dos seus amigos, talvez chateado por terem te deixado na mão. Procura o celular no bolso e não encontra. A carteira, com dinheiro e documentos? Também sumiu. Atordoado, começa a se dar conta de que o pior aconteceu. Você foi vítima de um golpe: o ‘Boa Noite Cinderela’.
O fato parece um tanto novelesco, mas é mais comum do que parece. Diversas pessoas que passaram pela mesma armadilha relataram sintomas similares ao ingerirem bebidas oferecidas por estranhos. O indivíduo parece estar grogue, ou exageradamente bêbado, a voz fica sonolenta e as palavras parecem não ter nexo. Só depois do ocorrido, os sentidos começam a ser lentamente recobrados.
Em virtude dos efeitos que causam, essas substâncias são frequentemente utilizadas por criminosos e agressores, com o simples intuito de dopar a vítima para assaltar ou abusar sexualmente dela. Mas, afinal, do que são feitas as ‘rape drugs’ (ou drogas de estupro)?
A resposta pode surpreender: um verdadeiro coquetel de medicamentos controlados, encontrados em farmácias ou no mercado negro. A mistura dessas substâncias em bebidas alcóolicas provoca confusão e sonolência em quem as ingere. A presa passa por um processo que vai da tontura até o fornecimento de informações importantes. O sono profundo pode durar até vinte e quatro horas.
Cada elemento age de uma maneira específica no organismo. O ‘flunitrazepam’, o mais ativo de todos, é um ansiolítico utilizado como redutor da ansiedade, mais conhecido como calmante; O ‘ácido gama hidroxibutírico’, popularmente assimilado como ecstasy líquido, é um potente alucinógeno ilegal; Já a ‘ketamina’, um forte anestésico de uso veterinário, é usado indevidamente para atordoar as vítimas.
Uma simples e generosa porção de apenas um desses componentes já seria suficiente para derrubar qualquer pessoa. Já imaginou todos eles misturados em uma única bebida? Sim, nem o mais forte dos leões se manteria em pé. Tome muito cuidado ao aceitar algo vindo de estranhos ou de amigos não confiáveis. O resultado poder ser pior que uma momentânea perda financeira: a própria morte”.
Fiquei encarando a tela do computador após assistir, pela segunda vez, o vídeo gravado por um médico renomado. A gravidade dos detalhes que rodeavam as ações da Liga do Mal era assombrosa e aumentava ainda mais o nível de sadismo da equipe. Perdido entre o choque e a raiva, após entender os pormenores do que havia acontecido naquele fatídico momento em que aceitei uma cerveja das mãos de César, me dei conta de que Flávio me observava encostado à porta do escritório:
- É o link que te mandei?
- Sim, acabei de ver – respondi, acordando do transe.
- Foi mal, não queria te assustar...
- Não é isso. Acho que qualquer confirmação de tudo o que rolou comigo me deixa cada vez mais puto.
- Quando me enviaram esse arquivo, fiquei pensando uma coisa... – ele fechou a porta, querendo manter a privacidade do assunto – Só há duas formas de manter essa tática de atuação. Digamos que Cláudio seja mesmo o responsável por “produzir esse material” – frisou as aspas com as mãos.
Repousei os braços na mesa, totalmente concentrado na sua explanação:
- Ou ele tem uma rede de contatos muito boa para conseguir frequentemente receitas médicas e ter acesso a esses elementos de maneira ágil, ou comercializa diretamente essa mercadoria, certo?
- Porque eu sinto que a probabilidade de ser a primeira opção é mínima?
- Por um simples motivo: ele não passaria a vida toda vendendo fórmulas para estupradores potenciais e não ganharia muita coisa apenas aplicando-as. Algo me diz que uma latinha batizada é só a ponta do iceberg.
- A depender do grau de periculosidade desse cara, talvez seja melhor a gente deixar pra lá.
- Calma, tem um pulo do gato aí. Você e o Adriano levantaram a bola sobre a hipótese de ele atrasar o curso para continuar no meio universitário e passar despercebido.
- É só uma teoria...
- É uma excelente teoria, diga-se de passagem. Se os alunos são os principais clientes dele, podemos imaginar que o seu império não seja tão grande assim.
- Porque acha isso?
- Leia as notícias dos jornais, Guto. Traficantes dominam favelas inteiras, facções competem o tempo todo. O mercado das drogas lida com fatias grandes da sociedade, e há uma batalha territorial no meio disso tudo. Estamos falando de um sujeito que só atua numa faculdade. Não dá nem pra dizer que é um bairro.
- É um bom pensamento, mas ainda assim é uma suposição.
- Eu sei, mas até conseguirmos dados concretos, vamos trabalhar com as melhores probabilidades. Nada de desistir, por enquanto.
Sorri, agradecendo o incentivo:
- Tem razão. Se o bicho pegar, a gente para.
- Não se preocupe, já temos uma voz da sensatez nessa equipe.
- Você contou alguma coisa?
- Não estive com ele ainda, mas sabemos que o Guga é esperto, saca as coisas no ar.
- Vamos marcar um encontro e explico tudo com mais calma pra ele.
- Beleza – começou a se dirigir para a saída – Aliás, falando em sacar as coisas no ar – voltou no meio do caminho – Só eu percebi um clima entre ‘Os Vingadores’?
- Do que você tá falando? – tentei desconversar.
- Me engana que eu gosto, Augusto.
- A gente mal se conhece. Conversamos mais sobre a gangue do que qualquer outra coisa.
- Sei... – ele espreitou o olhar, retomando os passos – Vamos ver o quanto vai durar esse mistério. Vou cobrar uma rodada na Noite das Confissões se estiver certo.
Flávio bateu a porta antes que pudesse arranjar outra desculpa. Meu rosto provavelmente estava vermelho, mas ainda não queria revelar nada. A última vez em que comecei a sentir algo por alguém, levei um fora antes mesmo de me declarar. Cautela era o meu sobrenome, pelo menos no campo amoroso.
Logo mais, naquela manhã, decidi escrever algo para Adriano, mas não fazia ideia de por onde começar. A última linha da conversa ainda se tratava de uma confirmação do nosso compromisso na noite anterior, e aquilo começou a me incomodar.
- “Oi...” – comecei a digitar.
“Oi o que?”, ponderei, “Bom dia?”, “Tudo bem?”. A tela do celular me hipnotizava, e encarava o campo do texto ainda vazio:
- “Desculpa pelo beijo ontem...”.
“Não seja ridículo, ele vai achar que você está desinteressado. Vai negar que não queria?”, apaguei o trecho.
- “Oi, conseguiu acordar para a aula? Espero que a duração da reunião não tenha atrapalhado o seu dia...”.
Enviei. E me arrependi. “Que coisa mais genérica!”. Apressei-me em tentar abrandar:
- “De todo modo, obrigado pela conversa. Essas novas informações vão ajudar bastante”.
“Falou, falou e não disse nada. Parabéns, Augusto!”, larguei o celular na mesa, agoniado. “Se não tem nada decente para dizer, é melhor ficar calado”, me censurei. Até a hora do almoço ainda olharia o aparelho outras duas vezes, só para confirmar que ele não havia contestado. Resolvi desencanar e sair para fazer um lanche. Assim que retornei, enfim, recebi uma notificação:
- “Oi, foi mal! Estava no meio de uma prova e não podia responder” – sempre querendo se justificar – “A reunião foi divertida sim. Não precisa agradecer, fico feliz em colaborar!”.
“Ok, os dois estão pisando em ovos...”, admiti. Queria sair do âmbito da vingança, mas talvez não fosse um tema a ser tratado pelo celular. “É... Definitivamente você desaprendeu a paquerar, ou o que quer que esteja tentando fazer”, uma voz insistente martelava meu inconsciente:
- “Vai ter aula o dia todo?” – continuei, tentando conter a afobação.
- “Só pego uma matéria agora pela tarde. Meus horários ficaram um pouco desorganizados nesse semestre” – refutara segundos depois.
- “Entendi. Podemos conversar?”.
- “O que houve? Surgiu algo novo sobre aquele assunto?”.
Se a ideia era analisar a fundo o que aquilo significava para mim, não dava para mentir:
- “Não, não... Só conversar mesmo. Pode ser lá em casa, se quiser”.
Assim que enviei, reli rapidamente e me senti um conquistador barato. “Lá em casa?”, avaliei a força do hábito em conversas com pretendentes fáceis. Aquilo soava quase como uma vulgaridade, cheia de más intenções. A demora maior em receber a réplica denotava que ele poderia ter interpretado da mesma forma:
- “Hum, não tenho nenhuma programação. Aceito o convite. Mesmo horário?”.
Respirei aliviado:
- “Fechado! Quer que te pegue em algum lugar?”.
- “Não precisa. Levo alguma coisa?”.
- “Peço algo para o jantar, fique tranquilo”.
- “Rachamos o valor, faço questão. Até mais tarde!”.
Sorri mais uma vez. Sim, aquele seria um encontro pra valer. E sim, comecei a ficar muito nervoso. Contudo, evitava criar expectativas, por mais difícil que fosse. “É só um papo, Augusto, relaxa...”. Minha ansiedade adolescente precisava dar espaço a uma compreensão mais séria do que estava sentindo.
Foquei no que era necessário durante a tarde. O prazo dos projetos era cada vez mais apertado. Tinha muitas coisas para me preocupar e um flerte mal resolvido no carnaval não poderia ser a maior delas. Alinhei algumas coisas com Juliana, reuni a equipe para delegar novas tarefas e deixei tudo a postos para ter um fim de semana tranquilo.
Assim que anoiteceu, liguei para um restaurante italiano, pedi algo mais tradicional (afinal, não conhecia os gostos do meu convidado) e segui para casa. Repeti todo o ritual do dia anterior: uma rápida inspeção para averiguar se tudo estava em ordem, um banho quente para relaxar e uma roupa despojada. Pouco tempo depois, o interfone tocou, mostrando que dessa vez Adriano conseguira ser mais pontual.
Já devidamente instalado, ele tentava parecer mais descontraído, ainda que estivéssemos em assentos afastados:
- Algum progresso sobre os seus planos?
- Não... Com o tempo você vai perceber que muito mais do que boas ideias, é preciso ter paciência com o que estamos fazendo. Tudo depende da ocasião certa, na hora certa.
- Entendi... – riu.
- O que foi? – estranhei a graça.
- É que você fala como se fosse um profissional da vingança.
- Mas é a mais pura verdade. Não sou nenhuma Emily Thorne ou Edmond Dantes, mas acho que no fim todo mundo só quer fazer justiça, não importa o método.
- Ok, já sei quais são suas fontes de pesquisa – manteve o sorriso, o qual não resisti em acompanhar.
- Também gosta de séries?
- Nesse caso, prefiro O Conde de Monte Cristo, mas já vi alguns episódios de Revenge sim. Não é minha favorita, mas é um bom passatempo.
- Podemos marcar de assistir algum dia.
- Sim, claro...
Travei novamente. Qualquer frase proferida me soava exagerada, ou forçada, ou deslocada. Um breve silêncio se fez presente. Decidi jogar com a verdade:
- Adriano... Obrigado por ter vindo hoje. Voltei para casa ontem à noite, preocupado em ter parecido invaisvo ou impaciente demais, apesar de ter gostado do que rolou. Desculpe se passei essa mensagem. Às vezes eu sou impulsivo e...
- Não precisa se desculpar – ele me interrompeu timidamente, e procurava avaliar como colocar da maneira correta o que queria dizer – Eu... Também gostei.
Permaneci estático, sem saber precisamente como corresponder. Aos meus ouvidos, a frase parecia excessivamente mágica para que tomasse qualquer atitude imediata.
- Digo, não sei exatamente o que isso pode significar – ele prosseguiu – Mas não estaria aqui se achasse que invadiu algum sinal.
“Isso é uma deixa?”, suspirei, “É Augusto... Alguém lá em cima finalmente resolveu dar uma trégua”. Sem dizer nada, levantei-me em e lhe estendi a mão para que fizesse o mesmo. Encarei o seu semblante uma última vez antes de fechar os olhos e beijá-lo. Um novo beijo demorado, cheio de vontade, contato e desejo. Algo que começou como um gesto de carinho, e que logo passou a se permitir outros desdobramentos. Até demais, na verdade.
Dos lábios passamos às línguas, depois às mãos sedentas por explorar a pele do outro, e de repente tudo já tinha passado de qualquer limite para um encontro mais “sério”. A temperatura começou a subir e, de tão quente, as coisas saíram do controle. Abraçava-o com força, já investindo em beijos no seu pescoço, enquanto ele permanecia com as mãos sobre o meu peito.
“Pra quem se preocupava em parecer apressado, não seria melhor tirar o pé do acelerador?”, o conflito ainda reinava na minha cabeça, “Se ele não quisesse, já teria pedido para você parar...”. O clima de afagos mútuos tinha dado lugar à atração sexual de uma maneira abrupta, e eu não ligava nem um pouco para isso. Sem me dar conta, já estava alisando o seu dorso por debaixo da roupa. “Deixe de agonia, vocês ainda terão muito tempo para isso...”, me repreendi, “Não, chega de perder tempo, isso aqui tá bom demais”, calei a voz do bom senso.
Num ímpeto, tirei a sua camisa, surpreendendo-o com o ato. Ainda assim, não coibiu o avanço. Empolgado, girei o seu corpo, deixando-o de costas para mim. Travei os braços ao redor do seu tronco e iniciei uma nova sessão de beijos na sua nuca. A ação escancarava uma ereção evidente sob a minha bermuda, forçando a sua bunda com urgência. “Seria um sonho de carnaval se realizando?”, festejava as possibilidades da noite.
Foi então que o caldo desandou:
- Augusto, espera... – Adriano se afastou rapidamente, me acordando do debate caloroso que acontecia no meu cérebro.
- Muito cedo? – tentei recuperar o fôlego.
- Também... É só que...
- Relaxa, não precisa acontecer nada – notei uma inquietação grande no seu gesticular, e comecei a ficar intrigado – O que foi? Pode falar comigo.
- Talvez... Eu acho que a gente gosta da mesma coisa...
- Como assim? – não compreendia onde ele queria chegar.
Fiquei no vácuo. Adriano evitava direcionar a mirada para mim. Buscava todas as combinações possíveis entre a sua frase e o que estávamos fazendo, em busca de uma equiparação satisfatória. A maior probabilidade, contudo, não era nada animadora (para mim, diga-se de passagem):
- Você é... Ativo?
A sua mudez foi confirmação suficiente, permitindo que o vulcão da razão eclodisse de forma avassaladora no meu imaginário. “Já sabemos aonde isso vai dar”, “Vocês são incompatíveis, isso estava claro desde o início”, “Quando você esteve nessa posição, acabou violentado e desacordado na frente do apartamento”, “Talvez ele ainda faça parte do grupo”, “Você se deixou cegar Augusto...”. Um mar de escuridão me invadiu, e não conseguia especular mais nada:
- É melhor... – me vi sentado no sofá, aturdido – É melhor você ir embora.
Adriano continuava paralisado e espantado com o pedido, sem conseguir avaliar que tipo de transformação havia acontecido ali. Sem proferir mais uma palavra, pegou a camisa que repousava numa das poltronas e saiu taciturno. Aquele balde de água fria mudou completamente o meu humor. Naquela noite comecei a avaliar que, ou o meu instinto estava bastante enferrujado, ou o destino continuava insistindo em me pregar uma peça cruel.
+++
Sábado:
Durante todo o dia, só consegui sair da cama uma única vez. Aproveitei o jantar intocado da noite anterior e tentei reabastecer as energias, em vão. Decidido a continuar hibernando, dei uma última olhada no telefone, e percebi uma mensagem não lida de Flávio:
- “Como está a sua tarde? Estou com alguns contatos de investigadores particulares e queria te explicar como eles trabalham. Quer marcar uma reunião ou prefere que te mande por e-mail?”.
Cheguei a ensaiar uma réplica, mas me contive a princípio. Não queria falar sobre o tema. Passei quase meia hora olhando para um ponto fixo no teto, pensando no que fazer. Precisava desabafar com alguém. Resgatei o aparelho móvel e retomei a conversa com o meu braço direito:
- “Seria muito cruel com o seu dia se eu pedisse para esquecer o assunto por um momento e invocar a Noite das Confissões?”.
A resposta não tardou mais do que alguns segundos:
- “O que houve? Você está bem?”.
- “Não sei, só preciso conversar com alguém...” – digitei.
- “Mesmo bar de sempre, assim que anoitecer, pode ser?”.
- “Fechado!”.
Voltei a pensar em todo o ocorrido e no meu currículo de desgraças afetivas, casuais ou não. Aquela reflexão iria me consumir e era melhor me livrar dela o quanto antes. Respirei fundo, me levantei novamente, e segui para um banho demorado.
+++
- Vai de que? Cerveja, conhaque, uísque? – Flávio aguardava ansioso.
- Tequila.
- Uau, a coisa é séria mesmo – ele riu ao lado do garçom – Traz logo quatro doses então – concluiu, fechando o cardápio.
O movimento ainda era pequeno para uma noite de sábado, mas boa parte das mesas do bar já estava ocupada. Meu amigo não escondia a empolgação com aquela reunião surpresa, ainda que denotasse alguma tensão na minha postura. Nosso pacto particular impedia uma relação chefe/empregado nessas situações, o que era bastante positivo, principalmente em momentos como esse:
- Vamos lá: O que te aflige, caro colega?
- Antes de começar, sem alarde e algazarra, tá?
- Tudo bem – deu uma leve gargalhada – Mas isso não vai impedir de me pagar uma rodada, se for sobre o que eu estou imaginando.
“É claro que esse sacana sabe do que vou falar...”, quase revirei os olhos:
- Ok, você estava certo... Rolou um clima sim.
Flávio comemorou a revelação tardia, como se estivesse recebendo uma medalha no pódio:
- É claro que ninguém insiste tanto em dar uma carona para alguém. Tava na cara.
- Sim Sherlock, calma que o buraco é mais embaixo.
Aproveitei a chegada da bebida, entornei uma dose rapidamente e iniciei a longa história. Contei como conheci Adriano no carnaval, como involuntariamente ele acabou me conectando a Liga do Mal, como tentou me ajudar após o ocorrido e, por fim, como aparecera na minha vida meses depois de forma estranha. O loiro à minha frente escutava tudo um pouco perplexo.
Continuei falando sobre a falta de confiança (apesar de já acreditar em toda a versão dele), a atração ainda existente e sobre como não estava conseguindo lidar com tudo:
- Defina “lidar com tudo” – ele me interrompeu – Você está achando difícil se abrir para um relacionamento novo? São as circunstâncias que te sufocam?
- Naquele dia, depois que fui deixa-lo, nos beijamos. Ontem o chamei para conversar e as coisas começaram a ganhar contornos picantes...
- Certo, ainda não consegui identificar o problema, ou essa bebida tá mesmo muito forte.
- Na hora da ação, por assim dizer – pausei ligeiramente e bebi a segunda dose – Eu descobri que ele também é ativo.
- Tá, e aí? – o ouvinte permanecia atento, aguardando o desfecho.
- E aí nada. Pedi que ele fosse embora. Fim.
Flávio franziu a testa, sem entender o que acabara de escutar. Fez um sinal para que o garçom trouxesse outra rodada, cruzou os braços e emendou:
- Espero que lembre o pacto e que o meu emprego esteja a salvo depois disso – murmurou com indignação – Você tem ideia do nível de babaquice que conseguiu atingir?
- Mas o que eu deveria fazer? – tentava me defender.
- Parar de agir como um adolescente que só está interessado em carne nova no pedaço, para começar. Aceitaria qualquer outra justificativa, e olha que você poderia ter várias com essa história que acabou de contar, menos essa.
A segunda leva de tequila chegou, e não titubeei em beber outro shot, tamanha sofreguidão com o sermão.
- O garoto é bem mais jovem que você, mas aparenta ser muito mais maduro. Sofreu algo similar, tentou te ajudar, correu atrás para te contar a verdade, aceitou fazer parte do seu plano, mesmo que isso não pareça tão politicamente correto... Poderia ter feito tudo isso de outras formas? Sim, mas qual era a sua mentalidade quando tinha vinte e poucos anos? Enfim, ele fez o que achou que estava ao seu alcance. Isso é digno de méritos. Ponto.
Antes que alcançasse mais um copo da bebida, ele segurou a minha mão, como se quisesse aproveitar a minha lucidez para que eu entendesse o que dizia:
- Já pensou o quão foda seria conhecer um cara, ficar afim dele, saber que passaram por problemas similares e enfrentaram o perrengue juntos? Você já deu o primeiro passo, Augusto. Sabemos que está rolando um sentimento aí, que está começando a perceber que isso pode ser o início de algo genuíno. Não faça nenhuma idiotice.
Assim que me liberou, virei mais uma dose. O assunto já me irritava. Mais ainda por saber que ele estava certo, em partes:
- Como eu deveria agir? Abrir mão de um gosto pessoal na cama por algo que possivelmente não vai dar em nada?
- Meu deus do céu! – ele bateu na mesa – Como esse seu discurso batido é irritante! Eu fui ativo em boa parte das minhas transas. O Gustavo curte as duas coisas. O que acha que eu fiz? Terminei e mandei voltar para casa? Esqueça esses rótulos clichês!
Remexi-me inquieto na cadeira.
- Pare de se boicotar. Pare de achar que sexo é a raiz de tudo. Os dois mal se conhecem, e intimidade se constrói com o tempo. Nem defendo essa hipocrisia de que não deve rolar nada no primeiro encontro, mas se permita. Você tá vivendo uma situação que tem tudo para dar certo, e me vem com esse mimimi porque o garoto também quer te comer? Caralho, até Sandy sente prazer anal!
- Tá, tá... Você venceu – tentei acalmá-lo – O que faço?
- Trate de ensaiar a porra de um pedido de desculpas e continue de onde pararam. Ele é bonito pra caramba, você também, as faíscas estão evidentes e todos os seus amigos torcem diariamente para que encontre alguém. Lide com isso, e da maneira correta.
- Qual a maneira correta?
- Não me faça gritar alto nesse bar que alguém nessa mesa já tem trinta e um anos e encontre um caminho.
Por um breve instante, me perdi em pensamentos.
- O que foi agora? – Flávio caçou mais uma dose.
- Acabo de lembrar que menti a minha idade. Disse a ele que tinha vinte e oito anos quando a gente se conheceu.
Meu funcionário explodiu em gargalhadas, quase se engasgando com a bebida. Acompanhei o clima mais ameno e pedi uma nova rodada para o garçom. Minha consciência ainda estava pesada, era um fato incontestável, mas já engatinhava no processo de me livrar de uma boa parte dos dilemas saturados do coração.
+++
Domingo:
Achei que acordaria com uma intensa ressaca, mas não foi o caso. Desde que voltara ao apartamento, não conseguia parar de imaginar em como contornaria a situação, e se ainda tinha uma chance real para isso. Ainda pela manhã, tentei ligar para Adriano, mas ele não me atendeu. Mandei uma mensagem, pedindo para conversar, mas também não obtive retorno. Precisava admitir que talvez aquela fosse mais uma oportunidade perdida.
Pouco depois do meio dia, um apito alertou uma tímida mensagem:
- “Acho melhor não”.
“Pelo menos deu sinal de vida, apesar dos pesares”, voltei a digitar velozmente:
- “Imagino como esteja e me sinto péssimo por isso. Não quero me justificar, ou explicar o ocorrido através de mensagens. Podemos nos encontrar?”.
Não foi fácil. Adriano permanecia irredutível (e qualquer um estaria). Foram necessárias algumas negativas para que finalmente aceitasse ouvir o que eu tinha a dizer. Em alguma coisa a minha teimosia tinha valia. Sugeri um almoço em um local mais reservado, algo mais elaborado. Ele preferiu algo mais simples, sem rodeios. Acatei.
No fim das contas, combinamos de nos ver num food truck de uma feira gastronômica que acontecia perto dali. Decidi não ir de carro, precisava espairecer e perdurar trabalhando uma nova perspectiva. O dia estava ensolarado e agradável. Cheguei um pouco antes do previsto e pensei em dar uma volta, mas ele já me aguardava. Não parecia tão animado como antes, mas demonstrava igual nervosismo.
- Oi... Obrigado por ter vindo, de novo – me aproximei, sem qualquer contato – Tem muito tempo esperando?
- Cheguei agora também – disse bastante acanhado.
- Já almoçou?
- Não, mas não tenho muita fome – parecia não querer dar muita trela.
- Se importa se eu fizer um lanche? Mal tomei café da manhã.
- Tudo bem...
- Já que a ideia foi sua, alguma indicação? – tentava quebrar o gelo.
- O hambúrguer daqui é muito bom – apontou para o local marcado – Quer dizer, eu gosto muito.
- Hum, vou experimentar então.
Entrei na fila e ele me acompanhou, comedido. Depois, achou melhor procurar alguma mesa para sentarmos, e me deixou sozinho. Não retruquei, ainda tateava uma aproximação. Sem qualquer propósito maior, pedi dois sanduíches. De alguma forma, achava que a recusa dele poderia ser algum tipo de orgulho, e queria vencer isso.
O encontrei perto de uma árvore, sentado na grama. O espaço estava cheio, mas ao menos teríamos um pouco de sombra ao nosso dispor. Aconcheguei-me tentando equilibrar os pedidos e comecei a organizar um piquenique improvisado. Desembrulhei a embalagem, entreguei-lhe a sua parte e comecei a dividir as batatas fritas.
- Eu não quero, obrigado – declinou.
- Você disse que não almoçou. Não que isso vá minimizar alguma coisa, mas eu faço questão – insisti.
Deu uma primeira mordida a contragosto. Sorri por ele ter aceitado e continuei a comer. Não tinha planejado o que dizer ou como discursar, apenas decidi ser sincero. Após um longo silêncio, numa mescla de constrangimento e meditação, resolvi me abrir. Tirei o celular do bolso, desliguei o aparelho para não ser importunado e voltei a encara-lo:
- Sabe... Ontem foi um dia bem estranho – chamei sua atenção com a frase – Passei todo o tempo num misto de alívio e angústia, sem saber ao certo como amadurecer as minhas divagações. Inicialmente, tentei ficar tranquilo, porque descobrir algum tipo de incompatibilidade entre a gente foi um sinal claro de que não tem como dar certo. Isso me reconfortou porque o meu histórico de relacionamentos é ruim, Adriano. Digo, muito ruim mesmo.
E então, escancarei a minha cronologia sentimental. De um envolvimento duradouro, iniciado quando era muito jovem, à descoberta da traição, mergulho em sexo casual e ceticismo sobre namoros. Nem a tentativa de algo mais sólido com Gustavo ficou de fora. Esclareci a dificuldade que tinha em me aproximar de alguém, e o quanto isso era paradoxal por querer ser tão precipitado com ele. Em nenhum momento procurei me colocar como uma vítima do tempo, só tentava demonstrar como enxergava toda a situação.
- Ao mesmo tempo em que me afastar parecia apaziguador, comecei a me achar um grande idiota. Primeiro, por um motivo óbvio, pela maneira como te tratei. Nada justificaria a minha grosseria e peço desculpas por isso.
Antes que ele conseguisse balbuciar algo, fiz um gesto para que aguardasse o fim do meu raciocínio:
- O problema é que por mais que me trabalhe para desconfiar ou desacreditar da nossa possibilidade, eu quero que dê certo. É algo que, no fundo, tento negar desde que você reapareceu, mas simplesmente não consigo. Sei lá, é difícil explicar.
Meu acompanhante permanecia inerte e muito surpreso, ensaiando um breve (e já conhecido) balé com as sobrancelhas.
- É estranho pensar nisso, porque as únicas particularidades que sabemos é que fomos violentados pelo mesmo grupo de pessoas, e isso está longe de ser romântico...
Ele deu um breve sorriso com o canto da boca.
- Mas de todos aqueles caras no bloco, eu te vi, senti uma conexão e, mesmo com toda a confusão e acontecimentos, a gente se reencontrou... – concluí – Pode ser um recado do cosmo para dizer que ainda tenho muito a aprender ou que isso não pode ser uma simples coincidência. Então, se não for tarde demais, podemos esquecer o meu lado ‘monstro imbecil’ de alguns dias atrás e começar de novo?
Adriano ficou cabisbaixo, encarando o hambúrguer quase intocado à sua frente. Sabia que receber um ‘não’ era bastante provável, e continuaria apenas reafirmando a mim mesmo que amar, afinal, ainda era uma perda de tempo. Contudo, como se quisesse dar um tapa na cara das minhas certezas, ele concordou. Um simples e afirmativo balançar da cabeça que me abriu o maior dos sorrisos. Flávio estava certo; Marcela, idem; Juliana sabia o que dizia. Eu precisava me dar uma chance.
Queria puxa-lo para um beijo, mas imaginei algo melhor:
- Posso te pedir só mais uma coisa? – tentei não me empolgar.
Ele voltou a me encarar, curioso.
- Podemos ir ao meu apartamento outra vez? Sem segundas intenções, juro! – me adiantei em explicar – Só queria te mostrar algo.
Um pouco reticente, ele aceitou. Continuamos o lanche e seguimos conversando. Em seguida, voltamos caminhando e, ao longo do trajeto, comecei a pescar algumas coisas da sua história. Disse, por exemplo, que nunca tivera um namoro sério e que, até então, só tinha ficado com alguns homens; A orientação sexual nunca foi uma dúvida, mas achava que a timidez não lhe dava muitas oportunidades. Escutar cada frase reveladora era uma pequena vitória e sabia que a reprimenda da noite anterior fora dita na hora certa.
Ao chegarmos, ofereci algo, mas ele alegou estar satisfeito. Sem querer alimentar demais a sua ansiedade, o convidei para subir. Parei na primeira porta do corredor e destravei para abri-la:
- Esse é o meu escritório. Normalmente costumo trabalhar aqui, mas ultimamente esse cômodo me serve a outros propósitos.
Adriano observava o espaço com real interesse e encarava com seriedade o imenso painel de vidro.
- Tudo o que descubro sobre eles e cada etapa do que é planejado, deixo escrito aqui.
- Daqui a pouco vai faltar espaço... – brincou com a quantidade de informações.
- Às vezes as teorias não me levam a nada, e preciso começar tudo de novo. Como disse, é um teste de paciência.
Olhando para o lado, ele descobriu as fotos de César, Cláudio e Alexandre presas na parede:
- Porque me trouxe para o seu gabinete?
- Porque de alguma forma você já esteve aqui. Tinha um espaço reservado para quando encontrasse uma foto sua – apontei – E metade desse quadro estava preenchido com hipóteses sobre a sua versão do ocorrido. Tentava encontrar uma brecha que fosse para continuar alimentando a minha desconfiança, mas já tem algum tempo que apaguei.
O visitante ainda procurava entender a motivação da sua presença ali.
- Eu acredito em você e quero que saiba que também pode contar comigo – continuei – Independente do que role entre a gente, de aceitar ou não participar disso, eu prometi a mim mesmo, e agora lhe reafirmo, que ninguém irá passar pelo que nós sofremos. Eles irão pagar por isso.
Adriano virou-se e fitou o meu olhar decidido. Sem cerimônias, veio ao meu encontro e me abraçou:
- Eu também acredito em você.
Senti-me absurdamente leve e retribuí o carinho, repousando a minha cabeça na sua. As motivações do coração pareciam estar colocando a vida de volta aos eixos, e a minha vontade era sair celebrando pelo mundo esse pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a (minha) humanidade. Alisei o seu cabelo rebelde e cochichei baixinho no seu ouvido:
- Obrigado por confiar.
Estufei o peito após um demorado suspiro e logo em seguida escutei uma porta batendo:
- Guto? – um grito abafado vinha do andar inferior – Augusto, você tá aí?
Arregalei os olhos assustado e Adriano imediatamente recuou.
“Juliana?”, me peguei atordoado com a presença repentina. Precisava pensar rápido:
- É minha sócia. Não importa o que aconteça, não saia daqui até eu voltar, tá?
Não esperei uma resposta. Fechei a porta e desci as escadas rapidamente:
- Ju, o que houve? – ela estava jogando a bolsa em cima da mesa.
- Desculpa, seu celular só dava caixa. Não sabia a quem recorrer...
- O que está acontecendo, você tá bem?
- Eu não posso ser mãe Guto... – ela veio correndo em minha direção, chorando sem parar.
Cedo ou tarde aquilo iria acontecer e a envolvi nos meus braços com força, deixando-a dar vazão à tristeza.
- Não posso... – enterrou o rosto no meu ombro, soluçando.
Ao mesmo tempo em que compartilhava da sua dor, pensava na terceira pessoa escondida no recinto. Sabia que teríamos uma longa conversa e não podia negar-lhe apoio, mas era impossível tira-la dali sem oferecer maiores detalhes.
“Puta merda... O que eu faço?”, fechei os olhos aflito, tentando encontrar uma solução.
(continua)