XVI
- Bom dia Doutor Caio. – Falou a secretaria entrando na minha sala. Imediatamente retornei ao presente, voltei a minha sala que por enquanto a dividia com Ricardo, chefe do setor de contratação da empresa. Sem querer meus pensamentos, desobedientes, insistiam em me fazer lembrar a cena que ocorreu na madrugada de sábado, da cena que foi um soco no estomago, no meu estomago cujo efeito só de lembrar fico sem ar.
Confesso que durante todo o sábado e domingo procurei compreender Mauricio, ponderei a situação de todos os ângulos, de todas as formas. Junto à mistura de reflexão pus o ingrediente, o fato que a moça desenfreadamente deu em cima dele, chegando ao ponto dele não resistir, ora o grandão é homem macho, a carne falou mais alto. E o resultado foi aquilo que eu vi. Mas aí acolhi o entendimento que eu estava justificando o erro do grandão.
Então, outra ideia veio á tona, a saber, a moça o fez perceber que a nossa história, tudo que ocorreu entre quinta à noite e sexta foi devaneio, sem significado. Ela o fez constatar que não valia à pena. Nossa história estaria fadada ao fracasso. Essa possibilidade parecia mais plausível. A plausibilidade ganhava mais contundência pelo fato que desde então não retornou para casa, não entrou em contato. Com efeito, não vejo Mauricio a contar do episódio fatídico. Ele desapareceu, ou melhor, a essa altura com Juliana tá curtindo feliz da vida.
Considerar essa hipótese como verdadeira causava dor no meu coração, enfim não sei explicar direito, mas fatalmente era como se uma espada fosse enfiada no meu peito continuamente. A ação era repetida a cada segundo que eu lembrava a cena: o corpo do grandão junto ao corpo de Janaina; a boca do grandão colado a boca de Janaina. Dói muito.
Por mais que eu não queira pensar, por mais que eu não queira lembra, não consigo. Não consigo.
- Bom dia. –Em resposta a secretaria.
- Sexta-feira o prefeito ligou querendo vê-lo. Como você não tava, falei que verificaria sua agenda e retornaria a ligação dele com uma posição.
- Ótimo. – Ela colocou alguns papeis em cima da minha mesa pra eu assinar. – O que será que o prefeito quer comigo? Ele adiantou alguma coisa?
- Não. E também não achei adequado perguntar. – Mostrando para mim algumas planilhas e documentos que precisavam ser assinados.
- Liga, por favor, pra ele e marca caso possível para amanhã, pela parte da manhã. – Reitero. – Amanhã vou ao gabinete dele.
- Ok.
Ela deixa os papeis sobre a mesa e próximo a porta de saída lembrou algo, por isso virou e disse:
- Há um rapaz ai fora querendo ser recebido pelo senhor.
- O que ele quer?
- Não sei ao certo, mas parece que ele foi demitido.
Penso um pouco. Minha cabeça precisava ao máximo de paz, ir certamente ouve problema não iria me ajudar em nada, de fato, me deixaria estressado. Pode até minha atitude parecer egoísta, mas era assim que eu naquele momento pensava.
Decidi.
- Não vou receber esse rapaz não.
Ela saiu da minha sala.
Fui fitando os papeis entrou Ricardo.
- Não tive como não ouvi Caio. O rapaz tá lá fora. E, sinceramente, não vejo esse rapaz desistindo assim tão fácil.
- Porque diz isso? – Fitei Ricardo.
Ricardo se senta a sua mesa.
- Porque desde sexta-feira ele tá fazendo campana para falar contigo. Não creio que vá desistir. – Ligando o PC.
- Sabe o que ele quer conversar comigo?
- Certamente é sobre a demissão dele.
- Ele foi demitido?
- Sim. Ele era um dos muitos empregados que contratamos para construir a estrada.
- E por que o rapaz foi demitido?
- Não deu conta do trabalho.
- Se não deu conta do trabalho, não tenho nada com isso. Não é mesmo?
- Concordo Caio, contudo, seria bacana de tua parte recebê-lo.
- Por quê? – Reviro os olhos odiando a ideia de recebê-lo.
- Porque passaria uma boa imagem da empresa. Além do mais é o mínimo que podemos retribuir pela hospitalidade deste povo de Mariana que tão bem tem nos recebido. Você não acha? – Enquanto explicava o eventual motivo para eu receber o rapaz, Ricardo fixou os olhos em mim, encarou-me dando firmeza naquilo que sustentava.
De fato, Ricardo de tinha razão. O povo de Mariana havia nos recebido muito bem e continuava sendo hospitaleiro não só para comigo, mas com todos que vieram trabalhar na estrada de Mariana. Ainda não tinha prestado atenção neste detalhe devida o manto de dor, frustração completamente bloquear minha razão, o que me levou a questionar será que vir trabalhar foi uma decisão acertada? É fato que ficar em casa não valeria apena, porque involuntariamente seria refém de lembranças, o beijo protagonizado por Mauricio e Janaina constantemente viriam a minha cabeça cuja conseqüência seria encolher na cama e chorar num completo atrofiamento, coisa que não, reitero, não valeria apena, por isso optei por vir trabalhar, pois trabalhando ocuparia minha cabeça, por conseguinte, não definiria numa cama encolhido lamentando a vida.
Já que optei por vir trabalhar então que executasse com excelência, prestasse atenção a fim de não causar nenhum prejuízo à empresa graças a problemas pessoais. Ora, sou profissional, assim sendo a separação era a melhor atitude a tomar, digo separação entre meu mundo pessoal e o profissional. Recriminei-me severamente.
Analisa as coisas rapaz. Pondera as coisas rapaz. – Gritei no pensamento comigo mesmo.
- Ricardo tu tá certo. – Com a caneta entre os dedos me preparando para assinar os papeis.
- Caio o que tô defendendo não é que você o reintegre. De forma alguma. Estou pedindo que apenas o receba. Aliás, jamais entraria neste mérito. Sei que tu és o chefe e o respeito como tal. – Digita alguma coisa no monitor do PC.
As palavras de Ricardo não soam como sermão tampouco como critica, ou seja, as observações alegadas por ele eram de um amigo.
- Cara hoje não tô muito bem. Tive um final de semana fora dos meus planos. - Justifico-me sem entrar em grandes pormenores.
Ao me justificar o fiz justamente por ter visto que Ricardo quando apresentou o porquê que eu deveria receber o rapaz, não a fez movido por vis intenções, no meu ver agiu como amigo.
Por isso, decidi:
– Vou receber o rapaz. – Acabei de assinar os primeiros papeis e dei dois toques de leve com o bico da caneta no documento assinado.
- Ótima decisão chefe.
Ricardo deixou lugar junto à mesa e veio agarrar minha mão em cumprimento. Por minha vez, fui receptivo.
- Posso chamá-lo?
- Sim. Faça isso.
Voltei à atenção para os documentos que faltava assinatura.
- Doutor Caio, depois de chamar o rapaz devo deixá-los sozinho?
Levantei a visão. E respondi.
- Não vejo necessidade.
E não via mesmo, aliás, o responsável de contratação de empregados era o próprio Ricardo.
Menos um minuto o rapaz de aparência de vinte anos de idade entrou na minha sala. Magro, nariz afilado, cabelo liso, moreno claro, alto, olhos claros, rosto arredondado. A feição me pareceu óbvia, lembrou-me alguém, mas quem? Vestia uma calça surrada, jeans, pelo tempo e camisa branca rente ao punho descorada; a marca não era conhecida. O mais impressionante: o rapaz transpirava apreensão, era visível que não sabia como agir, como me convencer de suas pretensões, mesmo assim, venceu qualquer receio, qualquer medo e ali na minha frente estava, embora embaraçado.
Cumprimentou-me zelosamente.
- Bom dia Doutor Caio. E muito obrigado por me receber, muito obrigado mesmo! Eu sei que o senhor é um homem muito ocupado. – Começou tão logo entrou na minha sala. Muito humilde; muito educado. Vendo-o com tanto respeito para com a minha pessoa me sentir mal por minutos antes não querer recebê-lo.
- Bom dia pra ti também.
Estendi a mão e ele pegou e apertou gentilmente.
- Senta, por favor. – Ele atendeu e sentou do lado oposto da minha mesa numa cadeira reservada para quem viesse conversar comigo. – Esse atrás de ti é o Ricardo.
- Bom dia. – Falou cordialmente Ricardo.
- Bom dia.
Desconcertado não pensou duas vezes vomitou a sua maneira o que lhe trazia a minha sala.
Começou a seu modo.
- Meu pai morreu quando eu tinha dez anos, minha mãe me deixou na casa dos meus avós paternos e caiu no mundo. Eles, os meus avós, sempre cuidaram de mim, na verdade me criaram. Eles têm outros filhos, mas não moram com eles. Hoje eles estão velhos, não tão podendo trabalhar, um já conseguiu aposentadoria, que é o meu avô, o outro, minha avó, ainda não conseguiu.
Em momento nenhum o interrompi. Em momento nenhum detive minha atenção em outro lugar que não fosse o monologo desesperado do rapaz. Enquanto o monologo transcorria conjecturei que do meu bolso daria uma quantia, muito provavelmente não resolveria a situação, mas aliviaria. Agora voltá-lo era impossível já que, como testemunhou Ricardo, o rapaz não dava conta do serviço.
- Enfim, preciso trabalhar, porque se não tiver trabalhando como poderei comprar o remédio da minha avó? Aqui em Mariana serviço é apenas através da prefeitura, e para tanto precisar ser professor, se não for professor não tem serviço. Por isso, a multidão de gente tá procurando vocês em busca de trabalho.
Seu Caio pelo amor de Deus não deixa que eu perca o emprego. Tenho que ajudar minha avó. Eu sei que não tô dando conta do serviço, mas eu acostumo. Eu aprendo. Tô disposto a aprender.
- Tu trabalhavas mesmo em que função?
- Auxiliar de pedreiro. – Ele respondeu.
Tá explicado. Auxiliar de pedreiro? O rapaz magro nunca que daria conta deste tipo serviço, pois requer disposição física.
- Auxiliar de pedreiro. – Repeti buscando as palavras que usaria para despachá-lo.
- Eu aprendo seu Caio. Eu estou disposto aprender. Por favor, me dá essa oportunidade.
Na busca de encontrar as palavras certas percebi que dado a forma como ele entrou, não lhe perguntei o nome dele. Detectado isso procurei imediatamente corrigir essa gafe.
- A propósito estamos conversando, mas não perguntei o teu nome.
- Verdade Doutor Caio. – Caiu também a ficha de Ricardo.
- Qual o teu nome?- Perguntei.
- Anderson de Almeida Marques.
Almeida Marques? Repeti a informação para mim mesmo tentando me convencer que meus ouvidos não haviam ouvido isto. Não podia ser.
A fim de sanar qualquer dúvida voltei a perguntar:
- Poderia me dizer o teu nome?
- Anderson de Almeida Marques. – Ele respondeu pausadamente.
Meu ouvido tá pregando uma peça em mim. Ou não? Meu Deus que ironia da vida, por isso os contornos do rosto tão obvio. Encarei-o contemplando a linha do rosto, o desenho, a feição. Como não saquei?
Anderson de Almeida Marques vendo o quanto eu o encarava questiona o porquê.
- Porque tá me olhando desta maneira?
Meus olhos enchem de lagrimas.
- Caio, Caio você tá bem doutor? – Intervém Ricardo se aproximando de mim.
- Acho que minha pressão...
Ele grita a secretaria.
- Traga água com açúcar. Caio tá passando mal.
A visão ficou embasada. Lágrimas rolaram pelo meu rosto sem que fizesse força para chorar, sem que eu abrisse o bocão, elas simplesmente rolaram.
- Aqui tá água. - A secretaria entregou a água para Ricardo que por sua vez me deu com todo cuidado. - Vou chamar o médico, Ricardo. – Disse abruptada antes de deixar a sala. E deixou rápida a minha sala do mesmo modo que entrou.
Devagar fui me refazendo.
Anderson sentado permaneceu no seu devido lugar. Assustado. Sem entender o porquê do meu abalo. A minha vontade era abraçá-lo, era lhe contar que a despeito do que ele pensava, não estava só, eu poderia e muito ajudá-lo. Ele poderia repartir o peso da responsabilidade comigo, apesar dos pesares eu estava disposto a enterrar o passado de uma vez por toda. Mas era somente vontade.
- Anderson. – Peguei o cheque na minha carteira, escrevi um determinado valor razoável que dava de suprir o remédio da avó dele. E o entreguei o cheque. – Toma esse cheque é uma ajuda. Como por motivos óbvios, tu não destes conta do serviço de auxiliar de pedreiro... - Referia-me como motivo óbvio sua magreza. -... Tô pensando, já que precisas demais trabalhar, e eu estou com urgência precisando de um ajudante pessoal para arrumar minhas bagunça por aqui, ajeitar esses documentos... - aponto pros papeis sobre a mesa. – seria unir o útil ao agradável. Quer trabalhar comigo aqui?- Pensei numa solução rápida.
- Claro. – Anderson respondeu completamente eufórico.
Ricardo próximo de mim não entendeu minha atitude. Ele sabia que aquele cargo não existia na empresa tampouco eu precisava. Sabia que eu pagaria Anderson do meu próprio bolso, mas por quê?
- Por aqui doutor. – Veio entrando a secretaria com o médico de plantão no Colégio Agrícola a serviço da empresa.
O medico pediu que saíssem da sala mesmo eu protestando que estava bem. Com o aferidor de pressão no bíceps, ainda informei Anderson.
- Começas amanhã às sete e meia da manhã. Qualquer coisa Ricardo resolve pra ti.
- Caio você teve uma queda de pressão. – Diagnostica o médico. Recomenda. – Vá pra casa, tu precisa descansar.
Ricardo me levou em casa. Durante a viagem não questionou nada, embora não tenha entendido o que ocorreu ali na minha sala.
E de fato, nem eu mesmo havia entendido.