Poxa, fiquei feliz demais com os comentários de vocês. Um volume enorme de leitura e espero que continuem interessados. Não será um conto muito longo. Continuem comentando. Abraço.
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- Você sabe que tô contigo pro que der e vier né?
Ele me abraçou e bem nessa hora a porta da salinha se abriu e ele entrou.
- Ricardo? O que faz aqui?
- O psicólogo... Então, qual dos dois bateu no meu carro?
Gelei! O cara parecia querer intimidar e conseguia, pelo menos a mim. Mas André me surpreendeu, antes que eu pudesse responder:
- Fui eu, rapaz. Você é quem? Já se conhecem?
- Sou Ricardo. Esse psicólogo atendia meu filho.
- Atendo ainda.
- Esse é outro assunto, rapaz. Não concordei com a decisão da minha mãe.
André me olha sem saber o porquê da hostilidade. Na verdade, nem eu sabia. O cara começou a implicar com o tratamento do filho, mas eu começava a desconfiar que era mais que isso.
- Então, meu carro tem seguro e vai cobrir o estrago do seu.
- Claro que vai. Tenho certeza que vocês não iam querer um problema maior comigo.
André não aguentou e já demonstrava irritação.
- Vamos fazer um boletim de ocorrência logo e parar com esse papinho?! Se você não tá ocupado, eu tenho mais o que fazer.
Sou ouvi Ricardo resmungando...
- Bate no meu carro e ainda vem de topete pro meu lado.
Fingi que não ouvi e o vigilante nos direcionou ao posto policial. Fizemos o boletim de ocorrência e, mais uma vez, André assumiu a responsabilidade. Quando voltamos para o estacionamento, tentei desfazer o clima ruim com Ricardo.
- Você tem meu contato. Qualquer problema, pode me ligar.
- Não fui eu quem bati no seu carro. Então não tenho que te ligar pra nada.
Senti a patada e apenas acenei com a cabeça, desanimado e frustrado. André só ficava do meu lado, já com a chave do carro na mão.
- Deixa que eu dirijo, Dé. Você disse que tá cheio de coisa pra fazer. Não quero te atrapalhar.
- Você sabe que eu sempre tenho tempo pra você, Dan. Aliás, a gente tava precisando relaxar, hein?
Ele dá aquele sorriso maroto que só ele sabe dar e me faz lembrar dos nossos bons momentos. Além da amizade, dividimos nossas descobertas e aprendemos muito juntos. O primeiro beijo foi com ele. O primeiro sexo também. Logo, muitas coisas em comum. No entanto, André foi se tornando um pegador. Enquanto eu me recolhia pra estudar e ser mais reservado, ele vivia em boates e nunca me privou de detalhes ao contar dos caras com quem ficava e levava pra um motel. Não o julgava, mas também não mantinha interesses além do que ele podia me oferecer: bons momentos.
Seguimos pra casa dele, já que ele morava sozinho e ficamos.
- Dan, cada vez eu sinto mais saudade da sua boca.
- Essas falas românticas não combinam com você.
Conversamos enquanto me vestia. Precisava voltar pro consultório.
- Combina comigo sim. Tem uma parte de mim que você não conhece.
- André, eu te conheço muito bem. Talvez isso cole com peguetes seus, mas eu não sou desses. Sei o limite desse rolo.
- E qual é o limite, sabidão?
- O limite é esse aqui: ir embora quando acaba. Beijo pra você.
Saí rumo ao consultório pensando na vida. Até quando eu seguiria assim? Aos 27 anos, cheio de bens materiais, mas com poucos afetos para cuidar. Perdi meus pais muito cedo, em condições bem adversas, e as vezes sinto como se nunca fosse capaz de conquistar nada.
Achava que André era um pouco culpado disso. Enquanto investia energia nele, deixava passar oportunidades mais duradouras, enquanto ele aproveitava a vida como queria. Foi assim durante anos e, de novo, a história se repetia.
Cheguei rápido ao consultório, pensando na vida e nas complicações desta, quando o porteiro me para ao entrar:
- Seu Daniel, tem um moço aí fazendo maior algazarra. Agora ele tá mais calmo, mas a dona Julia teve trabalho pra fazer ele acalmar.
- Obrigado por avisar, Sávio.
Claro que já imaginava quem era e a minha paciência já se esgotava. Sempre fui bastante calmo, mas esse cara tava me tirando do sério. Dito e feito! Cheguei na recepção e já o vi andando de um lado para o outro, falando de modo agressivo ao telefone. Ao me ver, avisou à outra pessoa que precisava desligar e já veio bufando em minha direção:
- Ainda bem que o doutorzinho chegou. Precisamos bater um papo.
- Não converso com ninguém nesse tom.
- Como é que é?
Julia já se preparava para acionar a segurança do prédio quando eu sinalizei que não precisava. Acreditava que a situação estava sob controle.
- Ricardo, eu não vou discutir com você o que não tem discussão. Se veio falar sobre o incidente do estacionamento...
- Vim falar sobre meu filho. Eu sou responsável por ele e você é obrigado a me dar informações.
Respirei fundo, achei paciência onde nem mais havia e o convidei para entrar. Ele não hesitou e entrou, já esbravejando:
- Primeiro, eu achei que tinha sido claro quando disse que não queria que continuasse atendendo o Davi.
- Ricardo, além de não ter sido claro, não conversou com sua mãe, que é quem efetivamente se responsabiliza da educação do garoto.
- Tá querendo dizer que não cuido do meu filho?
- Estou dizendo apenas que as falhas de comunicação da sua casa, você deve resolver por lá.
- Eu não quero meu filho envolvido com você.
- Não estamos envolvidos. Eu sou o profissional que atende seu filho pequeno. Qual a questão?
- A questão é que não quero. E acabou. Sou eu que decido. O filho é meu.
- Mais uma vez, essa é uma decisão que você e sua mãe precisam ter juntos.
Ele se levantou, na intenção de ser ainda mais intimidador.
- Você ainda não entendeu... Eu não quero meu filho misturado com gente do seu tipo. E eu não vou avisar mais. Você não sabe com quem tá lidando. Espero que não precise repetir.
Eu não entendia o que ele queria dizer, mas também não achava que ficar questionando seria o melhor caminho, dado seu nervosismo. Usei uma última cartada.
- Ricardo, eu não tenho mais tempo para discutir. Vou ligar para a sua mãe e conversamos nós três quando você estiver mais calmo.
- Eu não quero mais conversar com você. Só quero meu filho longe de você e pronto.
- Não é o seu querer que está em jogo. É o tratamento de uma criança.
- O tratamento do meu filho, caralho. Eu fugi muito dessa merda toda pra isso se aproximar do meu filho. Já deixei meu recado. Acabou!
Ele saiu batendo a porta (esse gosta de bater porta...) e Julia veio correndo curiosa:
- O que foi isso?
- Julia, eu não sei! Esse cara é louco. Sem noção.
- Você tem que ver como chegou aqui. Disse que queria falar com você de qualquer jeito e só ia sair quando você chegasse. Quase chamei a segurança.
- Devia ter chamado. Esse cara precisa ser barrado. Quem ele pensa quem é?
- Rico e gostoso ele é mesmo...
- Palhaça.
Rimos juntos e eu ainda estava nervoso com a situação.
- Por precaução, achei melhor desmarcar seu atendimento de agora. Pensei que a conversa com o nervosinho podia durar mais que o previsto.
- Fez bem, minha linda.
Conversamos mais um pouco e eu contei do problema do estacionamento. Julia era minha confidente. Sabia de bastante coisa da minha vida e eu da dela. Foi ela que me ajudou a segurar a onda após eu perder a minha família.
No dia seguinte, Marisa me ligou e insistiu para que os atendimentos de Davi continuassem. Naquele momento, avaliei que seria melhor encaminha-lo para outro profissional, dadas as chatas circunstâncias envolvendo o idiota do pai do menino. Porém, a avó do menino insistiu para que, pelo menos, tivéssemos mais um atendimento para que ele possa se despedir de mim, já que vinha perguntando sobre os atendimentos. Concordei e marcamos para os dias próximos.
Atendimento foi realizado, despedida feita, Marisa chorou ao pedir desculpas pelo filho, mas também não foi clara sobre o problema que Ricardo tinha comigo, ainda que parece saber qual era a questão. Decidi deixar isso para lá, até que recibo uma mensagem no celular, de um número que não conhecia, com os seguintes dizeres:
VOCÊ VAI SE ARREPENDER POR NÃO TER OBEDECIDO. SEU CONTATO COM MEU FILHO VAI CUSTAR CARO.
Ignorei aquela mensagem idiota, afinal não queria render mais problemas. Outra coisa me preocupava nos últimos dias: as ligações de André, que se tornaram diárias e sem objetivo.
É certo que sempre fomos muito próximos, no entanto nunca tivemos o hábito de falarmos diariamente por telefone, apenas para “ouvir a voz do outro”, como ele passou a falar. Essa aproximação me assustava, num momento em que eu precisava era abrir mão do que sentia por ele e buscar outras experiências.
Semanas depois, ao chegar ao consultório, Julia parecia assustada e dois rapazes me aguardavam na sala de espera.
- Você é Daniel Ramalho, profissional de psicologia?
- Sim, pois não?!
- Precisamos notifica-lo. Somos do Conselho Regional de Psicologia e recebemos uma denúncia com relação aos seus atendimentos.
- Como assim?
- Um responsável alegou que o filho foi agredido por você durante o atendimento.
- Isso não tem nenhum cabimento!
- Estamos em posse do boletim de ocorrência e dos exames realizados na criança. A investigação está aberta.
Infelizmente, o senhor está suspenso de exercer a profissão por tempo indeterminado!
Continua...