Quando a minha mãe morreu eu não chorei. Talvez fique uma impressão equivocada dos meus sentimentos para com ela, de que a nossa relação era péssima, mas é apenas erro de um julgamento apressado. A verdade é que chorei em parcelas, divididas pelos longos três anos que cuidei dela, lutando ao seu lado contra um companheiro de viagem inflexível: câncer. Mas não é sobre estes anos tão cinzentos da minha vida, que quero contar, e sim, como eles foram recompensados mais tarde. Meu nome é Márcio Jardim. Tenho vinte e sete anos, sou escritor e ilustrador de livros infantis, muito embora tenha deixado pausada minha vida profissional, em decorrência da saúde da minha mãe.
***
Era meados de julho. A intensidade dos ventos já havia levado aquele período a seu ponto máximo de frio. Acordei em uma manhã cinzenta, não muito diferente dos últimos dias, resoluto a traçar um novo começo para a minha vida. Já fazia muito tempo que eu não publicava um livro, e precisava urgentemente mergulhar em um projeto. Algo que marcasse um novo traço, um novo jeito de enxergar o mundo.
Naquela mesma manhã liguei para o meu editor, que há bastante tempo insistia para que eu voltasse para o mercado literário.
- Augusto, resolvi ceder a sua proposta – disse animado pelo telefone.
- Não me diga que você vai voltar a publicar, Márcio? – meu editor perguntou, já com ares de comemoração.
- É exatamente isso – confirmei, enquanto ouvia seus berros do outro lado da linha. Modéstia à parte, havia sim motivos para o alarde de Augusto, eu era um autor best-seller que competia de igual para igual com os campeões de vendas internacionais.
- Do que precisa? – Augusto perguntou com apreensão, como se temesse que eu mudasse de ideia.
- Bom, além da confirmação de que a editora está interessada, o que parece já estar conquistado, preciso de um bom prazo, e principalmente, não ser incomodado até o final do projeto.
- Que seja feita vossa vontade – Augusto assentiu com uma voz teatral.
- Ótimo! Vou deixar a cidade e suas agitações. Para o livro que quero escrever, necessito de matéria-prima diferente. Estou voltando para a minha cidade natal, Praia Branca.
- Buscando inspirações nas raízes? – perguntou Augusto.
- Possivelmente – fui enigmático – Nós temos uma casa lá.
- Bom, se precisar de mais alguma coisa não hesite em exigir de seus humildes vassalos – exagerou Augusto.
Gargalhei antes de dizer:
- Creio que isso seja o suficiente. Por hora, apenas me despeço de você.
- Boa sorte, meu amigo – Augusto desejou. – Espero que você encontre o que procura.
- Eu também – respondi por fim.
Os dois dias que seguiram, foram suficientes para eu providenciar o necessário para a longa viagem que eu empreenderia. Fechar a casa foi mais do que simplesmente dar uma volta na chave, representou encerrar aquele ciclo de luto, não com o propósito de engavetar a minha mãe como arquivo morto, mas pelo menos as lembranças ruins sim, e não falo só de seu período de câncer.
Meus pais moraram grande parte de suas vidas em Praia Branca, uma cidade que não levava este nome à toa, pois ficava na parte mais deslumbrante do litoral do estado. Passei toda a minha infância e o início da adolescência morando lá, até que meu pai morreu em um acidente de carro, e minha mãe resolveu deixar o lugar e partir para a capital, onde seus irmãos moravam.
O que eu esperava encontrar em Praia Branca era um retrato dos melhores dias da minha vida. Talvez em uma tentativa de aflorar de novo as lições sagradas de O Pequeno Príncipe.
Depois de um longo trajeto distribuído entre avião e ônibus, finalmente avistei aquilo que fazia jus ao nome da cidade: as praias brancas. O vento, o cheiro de mar, os coqueiros curvados, acenando alegremente para os turistas que ali aportavam, ou dizendo: “bem-vindos de novo”, aos que para lá regressavam.
Na rodoviária, peguei um taxi até o endereço de nossa antiga residência, na Avenida das Gaivotas. Desde que saíramos de lá, nunca mais voltamos, nem mesmo para passeio. A única coisa que eu sabia era que mamãe mandava dinheiro mensalmente para o caseiro da propriedade manter a casa sempre em ordem e perfeito estado; Mário Sales Lima era o seu nome. Antes de partir, eu havia entrado em contato com ele, avisando da minha ida. Tudo ficou acertado.
Não consigo descrever o quanto fiquei emocionado, ao sentir o táxi se precipitar sobre um pequeno aclive no início do trecho destino. O lugar havia mudado muito pouco, para minha surpresa. Belas casas se erguiam, construídas como testemunhas de concreto, para admirarem o quebrar das ondas. Meu estômago estava afundado de emoção, ao passo que o meu ser criativo implorava para se debruçar sobre um incansável ofício de tecer uma história.
O táxi estacionou perto de uma grande casa, repleta de vidraças. Eu havia chegado. Cada passo que agora dava, na direção daquela porta, pesava meus batimentos cardíacos. Estava tão obstinado em abrir aquela porta, que nem notei que o taxista, já pago, arrastara as minhas malas para junto de mim. Sem demora, atravessei, depois de ano, o umbral da porta. Tudo estava arrumado, sem poeira, bem conservado. A maioria dos móveis, é claro, haviam sido trocados. Apesar de saber do zelo de minha mãe em cuidar daquela casa, mesmo sem esperança de nunca voltar, no fundo eu esperava encontrá-la sob camadas e camadas de poeira. Poeira antiga, impregnada de nossas lembranças, dos momentos de outrora.
Soltei as malas, e como que hipnotizado, percorri o corredor em direção ao meu antigo quarto. Tamanha foi a minha surpresa, quando abri a porta do recinto e me deparei com um homem nu, de costas para mim. Tinha pele dourada pelo sol de praia, exceto no bumbum malhado e empinado, que conservara sua cor natural, por conta da cobertura da sunga. Os cabelos castanhos escorriam até a nuca, estavam molhados, e derramavam fios de água que percorriam suas costas largas, passavam pela sua cintura levemente afinada, curvavam na colina que sua bunda formava, e desaguavam no chão do quarto pelas suas pernas longas e grossas. Meus olhos acompanhavam esse interessante curso da água, como lentes precisas de uma câmera profissional. Ele tinha um corpo definido, mas não do tipo inflado ou bombado, estava mais para magro, com músculos adquiridos, não intencionalmente, através de trabalho pesado, do que para “fortão” com formas de academia.
Os segundos pareciam se arrastarem por horas. Aquela visão apoteótica drenava toda saliva da minha boca, e obliterava qualquer ação racional. Fui tomado de assombro, quando o homem, esculpido por Michelangelo, deu um berro de susto, virando sua fronte assustada para mim. Seus olhos de âmbar, encimados por sobrancelhas grossas, me fitavam com expressão furtiva, mas não pude vê-los por muito tempo, pois meu olhar despencou para sua “mangueira” que balança um pouco à frente das coxas másculas.
- Quem é você? Como entrou aqui? – ele bradou, vestindo uma bermuda que estava caída próxima aos seus pés.
Aquela pergunta era minha, sem dúvidas, mas eu não consegui responder nada. Não propriamente por ter me deparado com um estranho na minha casa, mas também por com do que acabara de ter visto. Na verdade, fiquei totalmente sem ação, diante daquela situação inesperada.
Não sei exatamente quanto tempo ficamos nos encarando, depois dele exigir a minha identificação. Por estranho que pareça, eu realmente me sentia um intruso.
- Meu nome é Márcio, sou o dono da casa – eu disse em um tom baixo, tal qual quando não se quer constranger uma pessoa que está equivocada. – Eu liguei para o caseiro para avisar que estava vindo...
Minha fala foi interrompida pela entrada súbita de um senhor que aparentava 60 anos, de baixo porte e cabelos alvíssimos. Ele se precipitou esbaforido no quarto em que estávamos, parecia ter corrido meia-maratona.
- Marcinho, desculpe pelo inconveniente – ele disse com uma intimidade doméstica. – Tive que ir à cidade vizinha resolver umas coisas, e perdi a hora de sua chegada.
- Seu Mário? – perguntei, esperando a confirmação de que ele era o caseiro com quem eu havia falado dias atrás pelo telefone.
- Sim, sim, sim – ele confirmou rapidamente, ainda com as palavras interrompidas por curtos intervalos de respiração.
- Marcinho? Pai, o senhor conhece ele de onde? – perguntou o cara que eu encontrara peladão.
- Filho, este é o dono da casa que eu lhe disse que chegaria – esclareceu o velho.
- Ah, meu Deus, eu achei que fosse um ladrão – o filho do caseiro alegou, ficando vermelho. Ele tratou logo de capturar uma camiseta regata branca, que estava atirada em algum lugar do quarto.
- Devo ter cara de ladrão mesmo – não resisti ao chiste.
- Oh, não quis ofendê-lo – ele ficou sem jeito, e logo estendeu a mão em cumprimento. Aceitei prontamente. – Eu sou Mário Júnior.
- Relaxa Mário Júnior, você não ofendeu – ri timidamente. – Bom, já que tudo está esclarecido, eu acho que posso me instalar.
- Olha, só para ficar claro, eu estava sem roupa porque havia tomado banho no seu banheiro, que eu acabei de consertar a pedido do meu pai. – o filho se autodefendia.
- Se o serviço estiver bem feito, está perdoado – disse em tom de desafio.
- Pode confiar, tudo que eu faço é bem feito – ele estufou o peito.
Apenas ri com um pouco de incredulidade.
- É impressionante como você continua com as feições de garoto – disse o Mário pai. – Ganhou corpo de homem, é verdade, mas os traços do rosto são o mesmo.
Todo mundo repetia aquela ladainha sobre mim; que eu havia apenas mudado de corpo, não era mais o garoto magricela com voz de menina, mas o rosto estava quase o mesmo. Nunca sabia se era um elogio ou uma crítica, pois nunca me disseram se me achavam bonito.
- Sinto muito pela sua mãe – lamentou o velho Mário, me olhando com olhos de pena profunda.
- Eu estou muito cansado – mudei de assunto rapidamente. Minha mãe era uma pauta que eu não desejava discutir, por isso estava refugiado neste lugar.
- Vamos deixa-lo se acomodar em paz – sugeriu o caseiro para o filho, em tom de ordem de retirada. Os dois Mários se despediram de mim e saíram da casa, o pai se colocando de plantão para qualquer necessidade que eu porventura tivesse. Natural. Aquele era o trabalho dele.
Logo eu estava completamente sozinho, mergulhado naquele mar de lembranças, não tendo certeza de saber nadar. As paredes e ornamentos estavam impregnadas de silêncio, mas suas línguas urticavam para me dizer o que meu coração já gritava em impropérios. Nessas horas o melhor, é não deixar a mente vazia, e por isso fui desarrumar as malas e tentar me sentir parte dali novamente.
Já se iniciava a tarde, quando eu, por fim, concluí minhas arrumações pessoais, depois de averiguar os cômodos da casa. Tudo estava em perfeito estado e com sinais de faxina constante. Pelo menos eu sabia que minha mãe estava mandando dinheiro para um homem honesto cuidar de sua propriedade.
Depois de tanto trabalho, senti bastante fome, mas não havia nada para comer na casa. Felizmente fogão e utensílios de cozinha tinha; saí então para comprar alguma coisa. Precisava também de roupa de cama nova.
Encontrei um atacadão no centro da cidade e comprei tudo que eu precisava. Quando seguia para a fila de um caixa, esbarrei sem querer no carrinho de compras de alguém.
- Mil perdões! A culpa foi minha, eu... – comecei a me desculpar, mas parei ao ver de quem se tratava. Era ele novamente, Mário Júnior, o filho do caseiro. – Ah, nem reparei que era você.
- Por quê? Não sou digno de seu pedido de desculpas? – ele fingiu estar ofendido.
- Não! Não, foi isso que eu quis dizer, é só que...
- Relaxa, Marcinho – ele falou em tom otimista, apertando o meu ombro. – Mas então, por que não pediu a meu pai para fazer essas compras?
- É que eu queria dar uma volta pela cidade – respondi, ficando atrás dele na fila do caixa. Mário ficou de frente para mim, empurrando o carrinho de costas para ele, sendo precisamente ágil ao movimento da fila.
- Fazer compras no supermercado não é bem nossa melhor atração – ele disse rindo. Percebi que ele era bem-humorado.
- Para quem está com fome, sim – tentei ser cômico, mas sem sucesso. Sempre fui péssimo neste departamento.
- Já ouviu falar em restaurante?
- Não é aquele lugar onde as pessoas se reúnem, estranhamente, para comer? – dessa vez conseguir fazê-lo rir. – Gosto de cozinhar.
- Ah, é? – Mário abriu um meio sorriso.
Eu confesso que estava hipnotizado pela beleza dele. Ele não tinha uma beleza óbvia de capa de revista. Era algo in natura. Sem regras de etiqueta, era feito para se lambuzar. Tudo nele era sensual: seu jeito de rir mostrando todos os dentes, e fazendo suas covinhas sulcarem profundamente; sua pele dourada pelo sol, seu cheiro de banho recém-tomado, e, principalmente, sua maneira de umedecer os lábios volumoso com a língua, que penso ser até inconsciente.
- E o que o mestre cuca resolveu fazer em nossa humilde cidade? – ele me perguntou.
- Isso não é uma pergunta muito intimista? – indaguei como resposta, torcendo para que Mário derrubasse minha fala em vez de recuar.
- Analisando os últimos fatos... você me viu pelado, acho que isso já nos faz intimistas – Mário refutou, continuando com sua modulação de voz marota.
Uma senhora que estava nossa frente na fila, virou o rosto para trás nos lançando um olhar nada receptivo. Fiquei um pouco desconcertado, mas sob o jeito despojado de Mário me senti seguro para ignorar os ouvidos curiosos que auscultavam com precisão estetoscópica nossa conversa.
- Você venceu – eu reconheci. – Eu sou um escritor que pausou sua carreira por algum tempo, e agora busca retomá-la com um livro de reestreia que está em fase de pré-produção. É o suficiente?
- Um escritor? Nossa! Eu nunca fiquei cara a cara com um escritor – ele disse como se tivesse diante de uma coisa inacreditável. – O mais surpreendente é que vocês comem.
- Você é metido a palhacinho, certo?
- Só quando converso com pessoas que me agradam – Mário falou bem no momento que chegara sua vez de pagar as compras.
Vê-lo me dá as costas, me deixou estranhamente triste. Fiquei um pouco sem graça, sem prumo, desconexo daquele cenário. Por outro lado, devo confessar que olhar para sua bunda bem desenhada dentro de um jeans apertado e surrado que ele usava, me consolou pelos segundos que fiquei sem ouvir sua voz. Contudo, esse momento de insanidade total, em que eu me comportava como um adolescente que se encanta facilmente, foi estilhaçado por algo que vi Mário usando, precisamente no dedo anelar de sua mão direita. Quando ele voltou sua mão para trás, buscando a carteira no bolso da calça, pude vê-la brilhando, fuzilando minhas sensações, mais definitiva do que um sinal vermelho de um semáforo. Mário era noivo. Para todos os efeitos isso não deveria me causar nem um transtorno, mas foi como sentir uma maçã suculenta perder o seu sabor, depois de morder o lábio acidentalmente, na ânsia de querer devorar a fruta inteira.
- Que tal uma saída hoje à noite? Márcio? Márcio?
- Hã? Oi! O que foi? – despertei da hipnose da aliança.
- Estava convidando você para sair hoje e constatar o que mudou em Praia Branca – disse enfaticamente Mário. Mas meus ouvidos já não captavam mais sua voz com a graça de antes.
- Eu adoraria, mas acho que vou declinar do convite – respondi sem entusiasmo. – Tenho muitas coisas para pôr em ordem. Então fica para a próxima oportunidade.
- Tá certo, então – ele aceitou sem relutância, me dando passagem para o caixa. – A gente se ver.
Apenas ergui a mão em sinal de “até logo”.
Em casa, depois de uma rápida e leve refeição fui descansar um pouco, mas não consegui dormir. Minha cabeça estava cheia. Eram muitas emoções que se amontoava com as que eu havia trazido na mala, que não eram poucas. Com o emocional ainda debilitado por acontecimentos anteriores ao meu regresso à Praia Branca, me sentia sensível e vulnerável.
Dois dias se passaram desde o meu encontro com Mário no supermercado, e nesse tempo não o vi mais, nem tive notícias a seu respeito, seu pai me prestou assistência durante esses dias transcorridos, mas não fez menção ao filho, e nem eu quis perguntar. Tudo mudaria no terceiro dia, quando o velho Mário me comunicaria que deixaria a cidade por tempo indeterminado, pois precisava fazer um tratamento de tireoide na capital, mas que seu filho, Mário Júnior faria as vezes de caseiro, me atendendo em tudo que eu precisasse. Dei todo apoio ao velho para que ele cuidasse de sua saúde, e quis até recusar que seu filho virasse meu caseiro, ainda que fosse temporariamente, alegando que não era necessário, além de ser uma carga pesada para Mário Júnior, haja visto que aquela não era a ocupação profissional dele. Foi inútil. Seu Mário me garantiu que tudo já estava acertado com filho, e que eu não devia nutrir nem um tipo de preocupação. Todos os afazeres de manutenção da casa já haviam sido orientados para Mário Júnior.
Um dia após a viagem de Mário-pai, veio uma moça muito simpática fazer a faxina geral da casa, a mando de Mário Júnior, que continuava sumido. Eu estava melancólico. Nem mesmo a bela vista que a vidraça do meu quarto dava para o mar me alegrava. A moça da faxina notou meus ares taciturnos, e tentou algum tipo de intervenção, eu nomearia assim.
- O senhor parece estar enfurnado nesta casa desde que chegou?
- Como? – eu estava distraído quando ele disse isso.
- Desculpe minha intromissão – a moça ficou tímda, como se sua fala anterior tivesse sido um ataque súbito de interpretação teatral, e agora ela voltara para o seu estado comum.
- Sem problemas – eu disse olhando para ela com uma expressão que demonstrava interesse em que ela repetisse o que dissera antes.
- Quis dizer que não é bom ficar sozinho o dia inteiro aqui nesta casa – ela falou em tom amigável, enquanto batia os tapetes da sala.
- Até queria sair um pouco, mas estou sem guia – fiz referência à Mário Júnior.
- Bom, se quiser, posso leva-lo para um evento bem legal.
- Adoraria – fiquei um pouco entusiasmado. – E é bacana mesmo?
- Garanto que nunca viu nada igual – ela riu.
- Quando?
- Esta noite. O senhor topa?
- Por que não? Mas por favor, não me trate por senhor, Márcio é o bastante.
Ela sorriu. Combinamos que Teresa – este era o nome da faxineira diarista – passaria a noite na minha casa para irmos ao tal evento. Fez-me apenas uma recomendação, referente aos trajes: roupa branca e bem informal.
Meia hora após a hora marcada que Teresa ficou de passar na minha casa, estávamos em uma espécie de luau na praia. Não era uma festa propriamente, como pensei que fosse, estava mais para encontro-espiritualista-hiponga. Havia umas cinquenta pessoas, todas vestidas de branco, sentadas em torno de uma bela fogueira.
- Boa noite fachos de luz – saudou um barbudo, que parecia ser o líder deles. Teresa parecia emocionada.
Ele continuou:
- Chamam-me de guru do amor, mas eu na verdade só ensino a todos sobre a sintonia das almas, e como você reconhecer uma força consonante no outro.
Houve aplausos.
- Imagine que um belo dia você desperte e descubra que metade de sua vida não passou de um período de dormência, em que achou que vivia, quando na verdade apenas existiu como um corpo estático?
As palavras do guru maluco me flecharam em cheio. O cara era bom mesmo, pois me fazia sentir como se tivesse sido esquadrinhado por ele.
- Não pule em um abismo se você não sabe voar, tampouco mergulhe em águas profundas se seu ar for insuficiente para manter sua convicção.
Estava encantado com tanta filosofia, que nem percebi quando alguém se sentou perto de mim, espirrando areia nos meus pés. Ao girar o rosto, meus olhos encontraram ele. Exatamente. Mário Júnior estava ali ao meu lado, com uma de suas pernas encostada na minha. Vestia branco, obviamente, o que contrastava com sua pele bronzeada, configurando um contraste muito bonito.
- Por favor, olhem para pessoa ao lado e peça-lhe um abraço – disse o guru. – Mas não deixem seus olhos lhe traírem com a estrutura, busque alma dela e procure a sintonia.
Pensei em abraçar rapidamente Teresa, mas ela já estava agarrada com um negrão. Como eu odiei aquele guru por me colocar naquela situação. Mário Júnior estava ali do meu lado, mas eu mal conseguia olhá-lo, pois a escolha de abraça-lo era óbvia, de acordo com a instrução do guru. Meus lábios perderam toda umidade, meu estômago afundara, e minhas bochechas ardiam em chamas violentas. Quase me desfiz quando ouvi seu hálito quente soprar na minha nuca as palavras:
- Não adianta procurar outro parceiro, o guru especificou que deveria ser quem estava ao seu lado.
- Então tá – eu pude olhar para ele. Seus olhos escuros brilhavam como os de um lobo, iluminados pela lux bruxuleante da fogueira.
Levantamos lentamente, e como se nos dirigíssemos a uma valsa, abrimos os braços e fomos encaixando os nossos corpos. Os peitos se chocaram lentamente. Mário usava uma camisa de botões, que tinha os três primeiros desabotoados, deixando escapar uma nesga de seu peitoral duro e quente. O vento da praia soprava uma friagem estridente, enquanto seu corpo quente acalentava o meu. Seu cheiro de pinheiro embebedava e satisfazia os meus sentidos.
- Perfeito – o guru disse batendo palmas, após conferir todos os abraços. – Agora reserve um tempo e um lugar para conhecer o seu par, e construa ligações.
Nessa altura eu perdi de vista Teresa, que deveria ter ido fazer ligações com seu negrão. Então me senti tranquilo para me afastar com Mário e obedecermos a última instrução de Teresa.
- Como chegou aqui? – Mário me perguntou quando, já sentados na areia morna, nos afastamos dos outros pares.
- Teresa, a faxineira que você me mandou, sugeriu este encontro – respondi, arrumando os meus cabelos. – Não imaginei que seria algo tão inusitado.
- Eu frequento a pouco tempo este grupo, e gosto muito da ideia das ligações e da sintonia das almas.
- Você acredita nisso? – perguntei incrédulo.
- Se devo acreditar que o mundo é um lugar cruel, porque não acreditar que posso ser feliz ainda assim?
Dei um sorriso de derrota. Ele sabia contra argumentar com graça.
- E sua noiva? – soltei a seco. Queria que ele soubesse que havia visto a aliança. Mas no fundo, desejava que tentasse se justificar, ainda que fazendo uso de uma desculpa esfarrapada.
- O que tem ela? – ele indagou com naturalidade.
- Costuma vir com você nesses encontros?
- A Bete? Não. Ela detesta este tipo de coisa – Mário respondeu sem reservas. – Para ela tudo tem que ser objetivo e pragmático.
- Entendo – disse tristemente.
- Estamos juntos há cinco anos – Mário disse. – Mas acho que esses contrastes são importantes para fortalecer a relação. Quer dizer que nos amamos apesar das diferenças.
Confirmei com a cabeça, impressionado com a sensibilidade daquele homem. A tal da Bete devia se sentir muito privilegiada por ter ele como futuro marido. Meus pensamentos foram interrompidos pela chegada de um rapaz ruivinho, que nos trouxe uma garrafa de licor e nos entregou.
- Tomem com prudência, com boas bebidas vêm grandes responsabilidades – ele disse. – Foi feito por Afrodite e engarrafado por Eros.
- Teremos cuidado amigo – Mário disse recebendo a garrafa. O rapaz nos deixou novamente a sós.
- Como eu estava dizendo, o casamento deve ser uma tessitura bem feita, que suporte todas as constâncias e inconstâncias do casal.
- Eu sei como é – disse sem pensar.
- Sabe? Você é casado?
- Já fui – respondi com desconforto. – Por três anos.
- O que houve? – ele quis saber, demonstrando total interesse no que eu diria em seguida.
- Eu não sei bem – comecei, depois de dar um bom gole na garrafa. – Mas creio que levar o fardo de uma sogra doente, que roubou um ano integral da minha vida foi demais para o meu companheiro.
- Companheiro? – Mário questionou cheio de curiosidades, na dúvida se havia ouvido direito.
- Hum-hum – murmurei em confirmação.
- Você é...
- Gay – completei, encarando-o com firmeza.
- Bom, eu não tenho preconceito – ele disse com diplomacia e polidez decorosa – Sou a favor do casamento e da adoção de crianças por gay, ou seja, ao seu favor. Cada um tem direito a amar quem quiser, a ter uma opção sexual. E...
Comecei a rir freneticamente, diante de seu embaraço em tentar não me ofender.
- Estou sendo ridículo, né? – Mário justificou o meu riso de sua fala.
- Relaxa, você está se saindo bem – eu disse ainda rindo.
- Só quero que saiba que isso não é um problema para mim – Mário foi enfático.
- Ainda bem, pois acho que esse licor está me deixando tonto, então, se eu me comportar de forma imprópria, me perdoe.
- Você é um bom moço. – ele apertou minha barriga, me fazendo deitar na areia, e me contrair em risos bobos.
Mário deitou-se na direção oposta ao meu corpo, de forma que nossas cabeças ficaram coladas. Uma dormência tomou conta de mim.
- Já tem um título para seu livro – ele me perguntou.
- Sim – confirmei – Vai se chamar: “Por um instante”.