Calcei os chinelos com pressa e desajeitadamente. O relógio no meu pulso insistia em me dizer que eu estava, além de atrasado, bastante encrencado. Pelo horário eu já devia estar no trabalho, mas a grande verdade é que eu não fechava uma semana sem que em algum dia eu me atrasasse para muito além do meu horário e tomasse algumas broncas do meu chefe. Os atrasos normalmente aconteciam na quinta ou na sexta-feira devido ao acumulo de cansaço e estresse da rotina. A rotina de só mais um homem mediano.
Passei pela cozinha correndo enquanto usava as mãos para ajeitar meu cabelo ainda molhado. Em seguida tomei em minhas mãos a caneca que descansava na cafeteira, passei meu braços desastrosamente pelas alças da mochila e corri para fora do meu minúsculo apartamento. O atraso e a pressa me impediam de tomar um ônibus, deixando para mim a obrigação de pegar um táxi. Eu os odiava, mas por mais caro que fosse essa era a única opção para não me atrasar ainda mais.
Quase não deu tempo de cumprimentar o porteiro quando enfim pisei no último degrau e ele se preparava parar subi-los. Não me certifiquei da disponibilidade daquele táxi que estava parado a alguns metros da saída do meu prédio e entrei no veículo assim mesmo, às pressas e já pedindo desculpas pelo susto que o condutor poderia tomar. Somente vi que minhas desculpas precisariam ser duplicadas quando notei que outro alguém ocupava o banco traseiro além de mim.
- Me desculpe, é caso de vida ou morte – me expliquei notando que o olhar de ambos estavam direcionados à mim. O do motorista pelo retrovisor interno e o do passageiro exatamente ao meu lado, me repreendendo duramente.
- Tudo bem pra você? – Não havia sentimento algum na voz do motorista. Talvez isso fosse normal para ele.
- Eu não posso enxotá-lo daqui de dentro, oras. Pode ir, está tudo bem – respondeu o outro usuário com certa frieza mas mantendo a educação que aparentava ter. Ele tinha percebido que eu não iria sair.
- Achei que estava vazio e eu estou super, super atrasado. – Novamente me expliquei depois de dizer o meu destino e emendei com um sorriso quase envergonhado enquanto tomava um gole apressado do café que esfriava rapidamente.
- Além de não derramar seu café, é claro, seu silêncio também pode ajudar na compreensão disso tudo – ele respondeu mantendo seu olhar fixo no trânsito lá fora.
- Tudo bem. Aliás, você quer?
Eu acordei para o fato de ainda estar com a caneca nas mãos e a ofereci ao homem. Com tal gesto ele apenas sorriu e ergueu a mão sinalizando que estava tudo bem ficar sem um gole da minha bebida. Mesmo sorrindo, é claro que eu conseguia ver o quanto estava sendo julgado naquele momento. Um completo desajeitado invadindo um táxi ocupado e ainda por cima oferecendo o café que bebia numa caneca que deveria ter ficado em casa. Se fosse eu no lugar dele, certamente me criticaria.
Encolhido no meu lado do assento, terminei de beber o café e continuei olhando o trânsito lá fora enquanto o motorista fazia o percurso. Eu não sabia qual o destino final do homem, mas ao ver o caminho que tínhamos tomado conclui que logo eu desceria. Talvez fizesse isso primeiro que o outro passageiro e isso me deixava levemente constrangido. Eu senti que não poderia ser privilegiado depois de ter aniquilado a privacidade daquele que parecia preferir a solidão. Mas nada poderia fazer, afinal. Somente me desprendi dos meus pensamentos quando o ouvi falar algo que parecia ser direcionado à mim:
- Você disse alguma coisa?
- Seu celular. – Ele apontou para o bolso visivelmente aberto da minha mochila.
Presumi que aquela chamada estava por um fio de ser direcionada para a caixa portal quando eu a atendi. Meu chefe bufava do outro lado da linha e eu afundava no banco traseiro entre o vidro escuro e o homem engravatado. Ele dizia que a recepção estava vazia e eu tentava amenizar a situação dizendo que já estava na metade do caminho. Naquele dia “desleixo” era meu nome do meio. Finalizei a ligação visivelmente intimidado e guardei o celular no mesmo lugar, me certificando que daquela vez eu fecharia o bolso. Precisei concertar o meu sentar quando ele, o homem sentado ao meu lado, chamou minha atenção outra vez:
- Dia ruim? – Na sua voz grossa mais parecia uma afirmação. Havia também certa compaixão no falar.
- Horrível!
- Dormiu demais? Eu ouvi dizer que as noites dessa cidade costumam se estender para além dos limites.
Para alguém aparentemente de tão poucas palavras, presumir as causas do meu atraso era uma invasão que não casava tão bem. Eu o vi se ajeitar naquele lado onde estava sentado enquanto eu o cercava com meu olhar intrigado.
- Não é isso. Sou só um cara cansado, preguiçoso e indisciplinado às vezes.
A sinceridade, quando não assusta, faz rir. Foi isso que constatei quando o vi rir de tombar a cabeça para trás. Eu tinha medo que aquilo que ele fazia fosse dotado de ironia ou deboche. Eu já nem sabia mais o que estava se tornando aquela viagem.
- Sua sinceridade é assustadoramente divertida – ele confessou em um sorriso largo.
E então naquele sorriso eu pude notar a beleza que cabia ali. Não que eu a tivesse ignorado, é claro. Ao sorrir ele não tinha medo de exibir as marcas expressivas que se formavam no canto dos olhos cor de mel e ao final das bochechas coradas. Além de charmosas, elas carregavam um toque de experiência. E isso nunca pode ser ignorado. Elas me diziam que ele tinha algo pra contar e imediatamente pensei no quão interessante seria ouvi-lo por algum tempo. No exato momento daquele riso o táxi atravessou uma rua livre de prédios e os raios solares daquela manhã já abafada viajaram através do vidro, me fazendo notar a barba espessa e grisalha que ele também não tinha a mínima questão de esconder. Aquilo lhe caía tão bem e ele parecia gostar tanto que a deixava cerradinha, denotando um cuidado absurdo. Eu devolvi o mesmo sorriso, mas com certeza o meu era ainda mais corado. Além de indisciplinado e muito preguiçoso, me encantar facilmente é uma das minhas características marcantes. Não esquecendo da desatenção, obviamente. Carregar uma caneca para fora do apartamento é um claro exemplo disso.
- Talvez eu tenha sido um pouco rude – ele prosseguiu quando viu que eu continuaria em silêncio. Se ele soubesse o motivo... – David. – Disse por fim estendendo sua mão em minha direção.
- Ezra – eu o respondi ainda mais vermelho, como se fosse possível.
- Se me lembro bem, acho que chegamos no seu destino, não é? – Ele ainda segurava minha mão enquanto falava olhando sobre o meu ombro quando o veículo parou.
- Ah, sim. Imagina se eu precisasse dar sinal pra parar? Deus sabe onde eu iria parar. – Eu terminei de estragar minha própria imagem.
Muito impaciente para um começo de manhã, o motorista disse quanto em dinheiro cabia para mim e estendeu a mão para trás, esperando que eu o entregasse o valor da corrida. Me contorcendo da forma mais desajeitada possível, arranquei as notas amassadas do bolso da calça apertada e entreguei ao homem a quantia quase exata, anunciando ao abrir a porta e sair que não precisava separar o troco. Aquele outro homem que me acompanhava naquela saga apenas abaixou um pouco o rosto para continuar me vendo e balançou a mão em um adeus singelo.
Sem olhar para trás e desviando das pessoas que naquele momento pareciam obstáculos numa partida de videogame que tinha como cenário a vida real, atravessei a entrada do prédio comercial, subi os lances de escadas tão rapidamente que senti minhas coxas tremerem mais que minhas mãos e finalmente avistei a porta do consultório odontológico onde eu era o único recepcionista. Ao abrir a porta com violência, praticamente todos que estavam lá dentro pularam em um susto sincronizado. Eu gargalharia se um dos olhares que me fuzilavam não fosse o do Dr. Isaías. Com os olhos repreensivos me fez entender que deveria tomar o meu posto em questão de segundos. Assim o fiz em silêncio e tentando não causar uma cena memorável com a mistura perigosa da pressa com a predisposição ao desastre.
Numa examinada rápida vi quem estava sendo atendido e claro, quem era o próximo da lista. Uma das dentistas anunciou que eu poderia enviar-lhe alguém e somente quando vi o paciente levantar, notei que algo em suas mãos me faziam lembrar do quão desapercebido eu poderia ser. A minha caneca, aquela que eu deveria ter deixado em casa, naquele momento estaria passeando pela cidade no banco traseiro de um táxi.
A pior parte estava em reconhecer que aquela era uma das minhas preferidas e que eu jamais poderia vê-la novamente. No mesmo instante eu usava o Word daquele computador onde eu arquivava os dados dos pacientes para redigir a frase que seria colada no lado interno da porta do meu apartamento: “A CANECA FICA EM CASA, SEU IDIOTA!”
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No meio de apelos por novos enredos e mais criativos, adivinha quem voltou com um tema beeeeeeeem batido? Opa, eu mesmo. Rá. Neste capítulo não, mas nos próximos eu dou o tom do tema. Espero que gostem e que se identifiquem em algum ponto com as situações e personagens. No fundo a gente espera isso, não é?
Assim com o conto anterior, este tem muito de "vida real". Os personagens, algumas situações e sentimentos. Escrevemos sobre aquilo que vivemos, não é?
Eu sei que devo explicações sobre o conto "Um Segundo". Eu interrompi a postagem dele porque no meio do caminho vi que coisas ficaram bastante confusas e eu fugi demais daquilo que tinha idealizado, dessa forma resolvi cancelar os compartilhamentos e somente postar quando tudo estiver do jeito que eu queria. Eita chatice. Paciência! haha Para os que sempre acompanham, todos os abraços do mundo. Para os que estão chegando, a casa é de vocês. Escolham o melhor cômodo!