Cortei uma fatia da pizza, mas não consegui leva-la a boca. A visão do Fernando ficou congelada em minha mente, e me travou completamente.
Eu queria sair dali, eu queria encontrar um lugar pra respirar.
Julio olhou para mim, e em seguida para a mesa do Fernando.
- não é só uma simples amizade né!? - perguntou ele.
- que!?
- você e o rapaz da outra mesa. São mais que amigos né!?
Olhei para Julio, depois para Fernando, e uma lágrima teimosa acabou caindo.
- eu vou ao banheiro rapidão.
- vai lá. - disse Júlio.
Tentei não olhar para a mesa do Fernando. Não queria ver ou saber o que ele fazia com aquela morena. Fernando era passado, com tantas coisas ocupando minha cabeça não tinha mais espaço pra ele. Errado. Na minha cabeça só tinha espaço pra aquele cara.
Lavei meu rosto, e tentei disfarçar as lágrimas.
- ta tudo legal aí? - disse Julio entrando no banheiro.
Limitei-me a confirmar com a cabeça.
- ânimo Gabriel. - Julio tocou em meu ombro e se dirigiu ao mictório.
- você tem razão brother. A gente veio pra se divertir, e eu to sendo cuzão.
Pelo espelho, vi o Júlio fechando o zíper da calça, e sorrindo.
- Se você não estiver se sentindo à vontade pra ficar aqui, a gente vai pra outro lugar.
- ta tranquilo Julio, vamos ficar aqui.
Voltamos à nossa mesa, e Juliano e Juan não estavam lá. Ambos estavam no palco improvisado para a dupla sertaneja.
- o que eles vão fazer? - sentei.
- caralho. Não to acreditando que eles vão cantar. - Julio sorriu.
- não sabia que o Juliano e o Juan cantavam.
- eles inventam.
Rimos.
Juliano e Juan pegaram as violas e os microfones emprestados.
- noite. - disse Juliano - Eu vou cantar uma música que lembra muito minha infância junto de uma pessoa querida. Essa música é pra você meu irmão. Te amo muito.
Julio observava com atenção.
♫♫♫
Doente de amor procurei remédio na vida noturna
Como a flor da noite em uma boate aqui na zona sul
A dor do amor é com outro amor que a gente cura
Vim curar a dor deste mal de amor na boate azul
E quando a noite vai se agonizando no clarão da aurora
Os integrantes da vida noturna se foram dormir
E a dama da noite que estava comigo também foi embora
Fecharam-se as portas sozinho de novo tive que sair
Sair de que jeito, se nem sei o rumo para onde vou
Muito vagamente me lembro que estou
Em uma boate aqui na zona sul
Eu bebi demais e não consigo me lembrar sequer
Qual é o nome daquela mulher, a flor da noite da boate azul.
♫♫♫
Enquanto Juliano cantava, os olhos do Julio se enchiam d'água. Juan fazia a segunda voz.
- e num é que ele canta bem? - sorri.
- ele manda bem né!?
- muito cara.
- mas é melhor como engenheiro mesmo.
Rimos.
Juliano conseguiu levantar a clientela, que acabaram por pedir bis.
- cês gostaram? - disse ele com sotaque caipira.
Os clientes aplaudiram.
- vou passar aqui pros profissas, porque nós mermo só entendemos de arranha céu. - disse sorrindo.
Juliano retornou a nossa mesa, e deu um abraço no irmão. Aquela cena me deixou emocionado, e eu vi que o meu problema era pequeno.
O Fernando tinha que sair da minha mente. Eu não podia continuar vivendo pela metade.
- Gabriel? - disse Julio Cesar.
- oi?
- o garçom ta perguntando se você quer pizza de abacaxi?
- abacaxi? Quero. Não! Quero não. - recusei, quando me toquei do sabor da pizza.
- ta viajando Gabriel? - disse Juan.
- não tinha percebido que era de abacaxi. - sorri.
- ocê ta com cara de apaixonado Gabriel? - Juliano tomou um gole da sua bebida.
- já vai começar Juliano? - Julio o repreendeu.
- to só brincando com o moleque. Você se ofendeu Gabriel?
- não cara, relaxa. E eu não to apaixonado não, só tava pensativo.
- pronto irmão, o rapaz nem saiu sem o braço. - Juliano foi sarcástico.
- eu vou montar uma macarronada pra mim. Servidos? - falei levantando.
- eu vou com você. - disse Julio me acompanhando.
Pegamos nossos pratos, e entramos na fila.
- não liga para as brincadeiras do Juliano. - disse Julio Cesar.
- eu não esquento não Julio. Como você mesmo diz, são só brincadeiras. - Falei enquanto caminhávamos na fila.
Como eu estava na frente de Julio Cesar, e sempre virava pra poder conversar com ele, acabei vendo Fernando e sua acompanhante entrando na fila. Os dois tinham grande afinidade.
- como ele foi rápido. - pensei.
Mudei minha visão para a frente da fila.
Fizemos nossos pratos, e voltamos á mesa.
Tirando o fato de o Fernando ter aparecido com outra mulher, a noite foi muito agradável.
Pagamos a conta, e resolvemos ir para casa. Não olhei para mesa do Fernando, mas sei que ele ainda continuou lá.
- vamos combinar outras vezes. - disse Julio na despedida.
- vamos sim. Essa semana eu vou passar lá na tua casa.
- vou esperar. disse Julio.
Despedi-me do Juan e Juliano, e entrei em meu prédio.
Já era tarde, e a portaria estava deserta. Acionei o elevador, e quando a porta abriu, deparei-me com uma cena bizarra: Um homem com o rosto ensaguentado, e enfaixado por ataduras. A única coisa que dava pra ver era um de seus olhos. No início eu achei que fosse brincadeira de algum morador, mas quando vi uma espada molhada de sangue em suas mãos, mudei de opinião.
Sem pensar duas vezes, saí correndo sentindo inverso. Tirei o celular do bolso, mas não consegui completar a ligação para os meus pais. Entrei pela garagem, e subi as escadas - apresadamente. Minhas mãos, tremulas, não permitiam que eu acertasse o buraco da fechadura, então foi o jeito usar a campainha. Meu avô veio abrir a porta, e eu entrei feito um louco.
- fecha, fecha, fecha. - Berrei.
- o que foi? - meu avô ainda colocou a cabeça do lado de fora, tentando ver o que acontecia.
- entra vô. - falei trancando a porta.
Meu coração palpitava como nunca antes.
- o que ta acontecendo? - meu pai saiu do quarto só de roupão.
- tem alguém aqui no prédio pai. - falei com a voz acelerada.
- alguém quem? - disse meu pai em minha frente. - Eu não to entendendo nada.
- no elevador pai. Tinha alguém lá dentro.
- que barulho é esse? - minha mãe chegou na sala.
- pega um copo com água pro Gabriel, amor. - disse meu pai.
- tem um assassino aqui dentro pai. - meu corpo ainda tremia.
- mas quem meu filho? Você ta falando coisas sem sentido.
- mas isso não faz sentido pai. Eu cheguei, e quando fui entrar no elevador, desceu um cara estranho. A cabeça dele tava enfaixada como se ele quisesse esconder o rosto, e ele tinha uma espada pai, tinha muito sangue... Cadê o Danilo? - mudei o rumo da conversa - Meu Deus, o Danilo pai...
Saí pela porta em disparada.
- meu filho, calma. - meu pai me acompanhou tentando me controlar.
Toquei a campainha, bati e chutei a porta, até o Danilo me atender.
- oi. - disse ele apenas de short.
- ta tudo bem primo? - perguntei angustiado.
- sim primo. Por que? - disse ele com cara de sono.
- não aconteceu nada estranho por aqui?
- não que eu tenha visto.
- será que isso não é coisa da tua cabeça, Gabriel? - disse meu pai
- não pai. Tenho certeza que eu vi.
- viu o que? - perguntei Danilo.
- um cara armado de espada aqui no prédio.
- um samuray? - Danilo riu.
- não é brincadeira primo. Tranca tudo aí, e vamos lá pra casa.
Danilo não quis ir, mas eu insisti tanto, que ele acabou cedendo.
Minha mãe chegou com um copo d'água. Tomei tudo em dois goles.
- quero mais. - falei devolvendo o copo.
- pai, tem que ver quem ta de vigia hoje na portaria, passei por lá, e não tinha ninguém. Aconteceu alguma coisa pai, eu tenho certeza.
- vou interfonar. Tudo bem? Agora tenta ficar calmo.
- não da pai, aquele cara não sai da minha mente.
Olhei para a porta do apartamento do Alexandre, e resolvi ver se tava tudo bem também.
- você vai acordar até o Alexandre? - disse meu pai.
- é por uma boa causa. - insisti na campainha.
O Alexandre veio atender.
- desculpa te acordar a essa hora, só queria saber se ta tudo bem.
- eu estava acordado ainda. Aconteceu alguma coisa? - perguntou Alexandre.
- meu filho imaginou ter visto um suspeito aqui dentro do prédio. Disse ate ter visto espada e sangue na mão do individuo. - meu pai riu da situação.
- eu não imaginei não. Eu vi. Tenho certeza que vi.
- já chamaram a polícia? Isso pode ser sério. - disse Alexandre.
- irei providenciar meu amigo, e desculpe-me pelo incomodo. - disse meu pai.
- incomodo algum. Qualquer coisa você me da um toque.
- pode deixar. - disse meu pai.
- evita sair de casa a essa hora Ale. Precisando, chama a gente.
- chamo sim Gabriel, e obrigado por se preocupar.
Apenas consenti com a cabeça.
Sentei no sofá da sala, e Danilo sentou ao meu lado.
- eu não to ficando doido primo. Tenho certeza no que vi.
- eu acredito em ti. Agora bora tomar um banho pra poder dormir que já ta tarde.
- interfonei la na portaria, e o Valdomiro ta de plantão. Ele disse que saiu pra pegar uma garrafa de café, e por isso não estava lá na hora que você chegou. - disse meu pai.
- ele não viu nada estranho? - perguntei.
- não, e nem viu marcas de sangue no elevador.
- não pode ser pai. Eu não tô ficando doido.
- tenta descansar um pouco. Eu vou ligar pra um amigo meu que é delegado, e ver o que podemos fazer nessa situação. Vou pedir também pra puxarem as imagens internas.
- ta bom pai, mas tenta fazer isso amanhã. Sai mais hoje não. - pedi.
- não se preocupe Gabriel, se eu sair, vou sair armado.
- ainda acho perigoso. Por favor pai, deixa pra fazer isso amanhã. Só liga pra polícia daqui.
- tudo bem.
- promete?
- prometo. - disse ele dando um beijo em minha testa.
Despedi-me da minha mãe, meu avô, e fui para o quarto.
Tomei um banho, e depois deitei na cama para dormir.
Danilo me encarava.
- ta bem? - perguntou.
- tô.
- Quer cobertor?
- quero. Tô com frio.
Danilo me cobriu.
- tenta esquecer o que aconteceu, amanhã é um novo dia, e tudo vai ficar esclarecido.
Assenti.
Aquela noite foi longa. Enquanto o Danilo dormia, eu me revirava de um lado pra outro. Até os carros que passavam na rua me assustavam.
Quando acordei, pela manhã, não vi o Danilo ao meu lado.
Dei uma volta pela casa, e encontrei apenas meu avô assistindo na sala.
- bença vô.
- Deus o abençoe meu filho, dormiu bem?
- consegui dormir nada vô. Cadê todo mundo?
- o Danilo, eu não sei. Seus pais foram trabalhar.
- o sr já saiu hoje?
- fui até a padaria. - disse ele.
- ta tudo certo lá por baixo?
- tudo sim. Nenhum morador viu nada do que você falou.
Respirei fundo.
- tudo bem vô. Vou me arrumar pra ir pra faculdade.
- não vai tomar café?
- to sem fome. - gritei do quarto.
Ninguém acreditou na minha historia. Nem na faculdade, nem no trabalho. A semana foi passando, e automaticamente aquela cena foi saindo da minha cabeça.
Era sexta, dia do último treino antes do amistoso. Cheguei cedo, e fiquei aguardando o restante do time.
- Fala Gabriel. - disse o Beto me fazendo companhia na arquibancada.
- e aí Beto, tranquilo?
- tranquilo. Tudo certo pro jogo?
- to preparado.
O treinador foi o terceiro a chegar, e os outros jogadores foram chegando sucessivamente.
Como era véspera de jogo, o treinador resolveu fazer um treino mais leve.
Assim que terminamos, fomos todos para o vestiário.
- Coloca esse adesivo aqui nas minhas costas. - pedi ao Beto.
- você ta sentindo dor? - perguntou ele.
- umas pontadas, mas nada de anormal.
- você não quer ir no consultório de fisioterapia?
- por hora não. Se a dor apertar, eu dou uma chegada lá.
- faz isso cara. - disse ele colando o adesivo.
Coloquei minha camiseta, e me despedi.
- até amanhã. - falei.
- as 18 horas aqui hen!? Sem falta. - disse ele entrando na cabine.
- esquenta não.
Coloquei minha mochila nas costas e fui para o estacionamento.
Antes de entrar no carro, esbravejei, ao perceber que eu havia pisado em uma poça.
Olhei para os meus pés, e vi que não era uma poça qualquer. Era sangue.
- podemos conversar primo? - disse Gustavo saindo de trás do veículo.
- então é você? - falei espantado.
- eu o que?
- você não vai mudar nunca velho?
- do que tu ta falando? Eu só to querendo conversar.
Gustavo viu o sangue no meu tênis, e fingiu espanto.
- o que? Você acha que eu seria capaz de fazer isso? Não cara, claro que não, eu só quero resolver as coisas.
- então se não foi você...
- Tem mais alguém aqui com a gente. - disse ele.
Olhamos ao nosso redor, mas o estacionamento estava deserto. Naquele bloco só tinha o meu carro, o do Gustavo, e o do Beto.
Continua...