Desfrutei de um sono leve e tranquilo ao mesmo passo que quente e confortável. E, de súbito, o despertador, causador da agonia diária de muitos, soou sem nenhuma compaixão ao momento de ternura meu.
-Eu odeio esse som! - De fato odiava, não a melodia, mas qualquer barulho ousado suficiente para interromper meu momento de paz nos braços de Cauã.
Levantei da cama para cessar o alarme.
-Desculpe, preciso ir trabalhar. - Disse a ele, vendo-o se espreguiçar. - Gostaria de gastar a manhã toda aqui.
- Tudo bem, esse foi o sono mais revigorante da semana. Seus pais já estão acordados?
- Não, mas isso deve acontecer em alguns minutos.
- Melhor eu ir embora o quanto antes. O que eles acharam a respeito da minha aparição aqui na quarta-feira?
- Acredito que estão um pouco confusos, mas eles levam tudo numa boa.
- Devem estar pensando que estamos juntos de novo. Se bem que é isso mesmo… Em breve vão me obrigar a chamá-los de sogro e sogra.
Rimos e Cauã me puxou pelo braço para voltar à cama, abafamos a risada embaixo do cobertor.
Depois de lavar o rosto e arrumar os cabelos, e estando na frente de casa, Cauã se despediu de mim com um abraço breve, mas acendendo uma brasa dentro do meu peito.
-Até. - Acenou antes de entrar no carro.
-Até. - Devolvi, imaginando “Até quando?”.
Voltei para o meu quarto e me joguei na cama por mais cinco minutos, tempo suficiente para ficar agarrado ao cobertor sentindo o cheirinho dele.
Quando chego na cozinha meus pais estão preparando o café. Paro na frente deles e mamãe me olha com cara de quem vai dar um puta sermão. Mas ela não faz o tipo durona, só tem a cara de preocupada mesmo.
-O que o Cauã fazia por aqui essa noite?
-Como? - Perguntei, não acreditando que ela tinha visto tudo.
-Meu filho, mesmo que você já tenha idade suficiente para ser dono do próprio nariz eu ainda tenho crises de insônia quando você sai. Acompanhei tudo pela janela, escutei os passos na casa, estava acordada agora pouco e vi o abraço de vocês dois.
-Ele está com um probleminha de superlotação na casa dele e resolveu passar a noite aqui. -Justifiquei, sendo avaliado pela cara de descrença que ela fez.
-Meu filho, nós sempre iremos apoiá-lo no que for necessário e bom para você. Mas é nosso dever advertir o quanto essa relação com o seu primo pode ser prejudicial. - Falou papai, colocando três xícaras na mesa e preenchendo-as com café. -Lembre-se de quando nós te vimos definhar por causa da ausência do Cauã logo após a partida dele para o Rio. Tivemos que procurar ajuda profissional para fornecer suporte emocional a você. E não é do nosso agrado ver que a história pode se repetir. Cauã está à beira de um casamento orquestrado pelo pai, tem uma casa, esposa, a reputação “Audebert" a zelar. Não estou somando os obstáculos, mas é pouco provável ele abrir mão de tudo isso a troco de uma relação com você. Se ele fizer isso, automaticamente ficará a ver navios, Sérgio com certeza o deixará com as mãos abanando, e, como Cauã chegou a pouco tempo, sequer possui um emprego para se sustentar.
- Sem contar que infelizmente Eliane e o marido fariam qualquer coisa para atrapalhar a vida de vocês. -Complementou mamãe. -Infelizmente não sei de onde minha irmã herdou sangue tão cruel.
-Sou grato pela preocupação de vocês. Isso é muito significativo, e acreditem, estou ciente de tudo: dos riscos que corro e os percalços. Talvez vocês não saibam, mas no dia de ontem Cauã descobriu que Milenna está grávida, ou seja, devo incluir isso no abismo que me separa dele.
Gregório e Marisa arregalaram os olhos.
-E, apesar de haver várias coisas nos colocando para baixo, eu não consigo arrancar de mim todos os meus sentimentos por ele. É arriscado alimentar esse amor, mas não há nada a fazer: vou passar por cima do meu orgulho e continuar me rendendo, até o momento dele entrar na igreja e dizer “sim" à Milenna, só à partir desse instante ele morrerá para mim. Me perdoem por ser esperançoso, imbecil ou utópico demais, mas acredito em milagres. Posso me sacrificar e colocar minha sanidade em risco, mesmo assim continuarei amando-o.
Os dois se sacudiram e entreolharam-se, contudo não contra argumentaram minhas colocações. Comemos calados durante três minutos.
-Sua tia Heloisa ligou. Parece que mamãe quer uma visita de Cauã na fazenda antes do casamento. -Marisa falou com cuidado, espalhando manteiga em uma fatia de pão. -Estamos todos convidados para ir lá no domingo. À princípio pensei em não ir, mas sabe como fica a sua avó quando a gente recusa um convite dela, não é mesmo? Além do mais precisamos fazer mais visitas a ela pois segundo meus irmãos, mamãe está com uma saúde frágil. Não é pensando no pior mas sabe-se lá até quando ela estará entre nós. Por isso seu pai e eu iremos à Lagoinha, caso esteja disposto e preparado para aturar a família do seu primo, junte-se a nós.
- Eu irei. - Respondi sem titubear. - Apesar dos pesares, gosto da fazenda.
…
E assim as coisas aconteceram. No domingo entrei no carro de papai rumo à pequena cidade de interior. Dormi o percurso inteiro, era manhã e chovia vagarosamente, automaticamente esse clima obrigava-me a ficar sonolento. Acordei beirando o fim do trajeto.
A fazenda mudara pouco no espaço de oito anos, existia certa resistência em reformar ou trocar as coisas de lugar porque cada detalhe daquele espaço remetia ao meu falecido avô.
João Clemente, o fiel ajudante de tio Miguel, desempenhava seu serviço impecavelmente da mesma maneira que fazia aos dezessete anos. Montado em seu cavalo, recebeu-nos com um sorriso no rosto. A chuva cessava quando o encontrei na fachada do casarão.
-Gostou do meu bichão novo? - Perguntou, alisando a pelugem do animal.
-Perfeito. -Falei encostando a mão no cavalo, maravilhado.
Saímos para um passeio. Nos últimos tempos, além de Mariana, um pouco ausente devido a compromissos relacionados ao trabalho e formação, João Clemente demonstrava ser um excelente amigo conselheiro. Sua capacidade dedutiva o permitia adivinhar tudo o que eu sentia ou pensava apenas fazendo um simples diagnóstico situacional.
-Imagino como deve estar sendo ruim para você. -Ele disse, ajeitando o chapéu de cowboy. - O rapaz Cauã chegou há meia hora aproximadamente. Eu estava vendo o pai dele contar sobre o casamento e a gravidez da nora.
-Tudo aconteceu muito rápido, até alguns dias atrás existia o Cauã obrigado a morar em outra cidade devido às ordens do pai, e, de uma hora para outra ele reaparece, noivo e depois pai. São loucuras com as quais não consigo lidar muito bem.
-Mas eu não vejo esse casório indo longe. O seu primo estava com uma cara péssima hoje, passou por mim e discretamente perguntou se você viria. Eu respondi “provavelmente" e então eu vi o rosto dele se iluminar. -João contou em um meio sorriso.
-Eu gostaria de ser otimista e acreditar que as coisas vão se acertar, mas não é bem assim…
Ficamos os dois em silêncio um bocado de tempo, olhando o vento bater sob as árvores ao redor. Aos vinte e seis anos, João havia evoluído muito, tornado-se íntimo e de muita estima na família, tanto que possuía um quartinho no casarão para quando quisesse posar em seu local de trabalho. Conforme o passar do tempo e tentando desvendar a personalidade desse rapaz fui levado a crer que, na verdade, João Clemente nutria uma fervorosa paixão por meu tio, um homem maduro e experiente, cheio de virtudes as quais João tentava emular. Isso nunca me foi dito em palavras, mas deduzi a partir de evidências. Ele compreendia meus dilemas e paixões, talvez juntando a experiência própria dava conselhos de como agir ou reagir, e a capacidade empática assustava-me. Vivia à sombra do chefe, servindo-o de segunda à segunda numa escravidão consensual. Sentia explícito prazer em realizar as atividades a ele designadas pelo patrão.
-Johnny, como está? - Perguntou Cauã, surgindo atrás de nós.
-Indo... -Respondi com sinceridade.
-Vou alimentar minha cria. - João Clemente disse, montando no cavalo e retirando-se.
Cauã e eu nos fitamos por um bom tempo. Começamos a andar lentamente sem um sentido fixo.
-Eu estava ansioso para vê-lo. - Ele disse, colocando as mãos no bolso.
Silêncio. Não reagi à sua fala.
-Você não? -Perguntou, apreensivo.
-De certa forma.
Minutos atrás me deparava julgando a relação João Clemente+ Miguel, a marginalidade de um amor contido, escravidão consensual. Essa reflexão abrira questionamentos acerca da minha própria situação.
-Sinceramente, estou descrente quanto ao nosso envolvimento. É algo que vai nos levar a lugar nenhum.
Ele suspirou.
-Estou sendo um perfeito filho da puta. Traio minha esposa, fico com você e te coloco para baixo. - Admite. - Eu não quero te prender, se você não quiser mais eu me afasto, vai doer, mas devo ser homem e aprender a resistir.
-Parte da culpa é minha, estou permitindo. - Assumi. - Cauã, isso está acabando comigo. Eu juro por Deus, te faria o homem mais feliz da terra se largasse tudo e ficasse comigo. Não sei se a casa ofertada pelo seu pai já está no seu nome, mas caso isso não acontecesse, você poderia morar comigo. Meus pais não iriam se importar e depois eu alugaria uma casa para nós dois. Eu não ganho muito mas todo começo é difícil. -Falo essas coisas e me dou conta que viajei demais.
-Se fosse um tempo atrás, antes de saber da minha paternidade, eu consideraria a sua proposta. No entanto, preciso dar um futuro digno ao meu filho e sequer tenho um emprego. Dependo do meu pai, ele me ajudará a criar a criança com todos os confortos que tive.
Eu entendia suas razões, portanto me calei.
-Johnny, eu vou te deixar em paz. Desejo o melhor para você sempre, e não duvide um instante sequer do quanto gostei de ti. -Ele ergueu o colar com a estrela de Davi. - Isso ficará para sempre comigo.
Tocou meu rosto com a mão direita, achei que fosse me beijar, mas não o fez, não era ousado o suficiente.
-Você tem uma semana até o dia da cerimônia, ainda dá tempo de voltar atrás.
Cauã me deixou, com os olhos aguados e tristes.
Entrei no casarão em seguida, tivemos de suportar estar no mesmo ambiente. Vovó Isaura, debilitada, me identificou com dificuldade depois de eu gritar meu nome algumas vezes para ela ouvir. Beijou meu rosto e abraçou-me, no entanto parecia concentrada em Milenna, a nova integrante da família. A casa estava cheia, a presença extra de Sônia e André colaborava para a super-lotação na cozinha. Sérgio e Eliane exibiam-se com os detalhes da produção da cerimônia e Renan e Maria Eduarda escutavam o discurso que um dia tiveram de ouvir, calados.
A chuva voltou a cair, dessa vez mais agressiva, quase um temporal. Almoçamos escutando o ranger das janelas. Retraído, mantive os olhos no prato, evitando encontrar os de Cauã. De outro lado, percebi André observando-me, atento, como se me estudasse, de um jeito frio e misterioso.
…
Tia Heloisa retirou vovó Isaura da mesa ao fim da refeição para levá-la ao quarto, pois a anciã precisava de descanso. Fomos todos à sala de estar, satisfeitos. Lamentei não poder sair daquele ambiente devido às condições climáticas, no entanto, para amenizar a tensão, logo depois, comecei a passear pelos cômodos do casarão, parando em um quarto para olhar a fazenda através de uma janela molhada, com gotinhas de água impedindo a visão detalhada.
-Garoto? -Uma voz grossa me chamou à porta.
Sérgio, parado de braços cruzados passeou pelo quarto. Odiava sua insistência em chamar-me de “garoto”, era sua forma de me diminuir, como se eu ainda fosse um jovem imaturo ou inferior.
-Sim? -Perguntei.
André veio atrás. Um sorriso de deboche.
-Sei que não sou muito próximo de você, e, devido a isso, nunca tivemos a oportunidade de conversar sério. -Ele arqueou a sobrancelha. -Gostaria de te dizer algumas coisas, a primeira delas é uma pergunta: Por que esse prazer em destruir a vida do meu filho?
- Não estou entendendo, eu nunca tive essa pretensão. -Defendi-me, franzido o cenho.
- Ah imagina… Um rapaz santinho como você jamais faria uma coisa dessa. -Caçoou. -Veja bem, uma vez tive de me distanciar do meu filho por culpa sua. Agora, depois do retorno dele, não vou permitir que você venha e estrague tudo! Procure outra pessoa como você! Pare de desvirtuar Cauã. -Dirigia-se a mim em tom baixo para não chamar a atenção de quem estava nos cômodos próximos.
-Sérgio, sinceramente, suas palavras equivocadas não mudam em nada a situação. Fique despreocupado, Cauã seguirá com o casamento, pois infelizmente não posso obrigá-lo a fazer o contrário. Quanto ao meu envolvimento com ele: nós cortamos todas as relações que tínhamos. Ponto pra você! -Fui sarcástico na última sentença.
-Duvido muito, tu e ele estavam se acariciando lá fora. - Interviu André. - Eu vi ele pondo a mão no teu rosto.
-Escute bem, não vou aturar esse tipo de comportamento de braços cruzados, ou você some da vida dele ou então…
-Vai bater no meu filho, Sérgio? - Gregório entrou no quarto. -Já esperava essa atitude da sua parte, sempre determinado a fazer as coisas funcionarem exatamente do jeitinho que você planeja.
-Estou apenas dizendo a ele algumas verdades que você deveria ter dito muito antes. -Sérgio virou-se para encarar papai. - Cabe ao pai educar e pôr seus descendentes no caminho certo, e não dar crédito à essa perversão.
-Pare de dizer besteiras. Os tempos são outros, hoje a sexualidade é tratada de uma forma mais complexa.
-Me poupe desse seu blá blá médico. Na minha época um bom castigo resolvia qualquer problema.
Revirei os olhos.
-Já tenho idade suficiente para saber o que é bom para mim. E palavras como as suas tornam o mundo pior. Você não é Deus para consertar as pessoas, Sérgio. -Rebati.
-Garoto, não entrarei nesse mérito, concordo que educação se discute em casa, mas se eu vê-lo mais uma vez se insinuando para o meu filho juro que o mando junto com a esposa para outro país e corto a relação de vocês de uma vez por todas.
- Insinuando? Veja bem como coloca as coisas! Seu filho veio me procurar por vontade própria, nunca o obriguei a fazer nada e sequer o induzi.
-Conheço o comportamento de vocês gays, nunca agem com intenção né. -Ironizou. -Na primeira oportunidade dão o bote.
-Respeite o meu filho! - Repreendeu Gregório erguendo a voz.
André sorriu, feliz em ver o circo pegando fogo.
-Só quando ele respeitar o meu. -Esbravejou Sérgio. -Cauã vai ser marido e pai, agora mais do que nunca vai precisar de concentração para desempenhar seu papel de homem. Gregório, acho que no fundo você morre de inveja, nunca terá um neto, vai ser obrigado a ver o filho beijando um barbudo e ser a mocinha submissa...
- Cale essa boca estúpida! - Papai berrou, chamando a atenção das pessoas na sala de estar. -Você não vai dirigir nenhuma ofensa a Johnny, nunca mais.
Sérgio andou até papai para enfrentá-lo frente a frente, com medo de rolar alguma agressão, tentei colocar-me entre os dois.
-O que você falou? Calar a boca é o caralho!
A confusão se fez. Por sorte Renan e Cauã chegaram no quarto a tempo de manter Sérgio afastado do meu pai. Gregório nunca fora agressivo, portanto manteve-se no lugar.
Sérgio começou a tremer, como se o ataque de nervos tivesse mexido com seu sistema nervoso. Eliane o levou até a cama e o auxiliou a sentar e encostar a coluna na cabeceira. Desabotoou a gola da camisa do marido e o abanou com um papel esquecido na escrivaninha.
-Busque o remédio dele na minha bolsa, Cauã. -Gritou a mulher.
Sérgio ficou pálido, respirava pela boca e mantinha os olhos fechados, talvez concentrado em uma dor.
-Vamos embora, foi um erro ter vindo aqui hoje. -Papai disse a mim.
Ele tinha razão.
...
Agradeço aos leitores que vierem a dedicar um tempo para realizar a leitura, e gosto de receber críticas de toda natureza (me refiro as construtivas), então, não deixe de comentar o texto, isso é muito importante para mim.
Também disponibilizei o texto no Wattpad, que proporciona uma leitura mais confortável, não deixarei o link pois o site Casa dos Contos Eróticos pode o censurar. Busquem no GOOGLE por "Os Primos (Romance Gay)" e cliquem no primeiro link.
Obrigado a todos!