Enfrentar o olhar de Marcelo não era coisa fácil, como já comentei. Aquela concentração que ele parecia ter em mergulhar no fundo da alma da gente, mesmo quando estava numa situação das mais pueris, desconcertava qualquer um – e lhe dava um imenso poder sobre o outro. Seu tom de voz, geralmente muito sereno, mesmo quando o que dizia tinha alguma gravidade, só realçava esse poder.
E foi assim que ele me olhou, mas sem nada dizer além de um simpático e trivial bom dia.
– Algum problema, Zeca? – acabou perguntando, após alguns segundos me encarando.
– Não, eu só não sei se... – e calei.
Ele sorriu. Não cabia a mim abordar o assunto, procurar saber o que ele achava do que vira ao me flagrar pelado enquanto dormia.
Aguardou que eu completasse a frase, sem que eu o fizesse, e disse, já se encaminhando para a mesa posta para o café da manhã:
– Não sabe o que, rapaz?
– Não sei... Quer dizer, – emendei – não sei se você vai curtir torradas. Eu fiquei com preguiça de ir comprar o pão hoje...
– Por mim, tudo bem. Gosto de torradas também. Você sabe.
Pus as fatias de pão na torradeira – outro presente do pai dele –, mas não me conformei com aquela tática de fingir que não tinha visto o que vira. Para mim, essa era mesmo a melhor saída. Mas não era a mais sincera. E, no fundo, talvez eu tivesse a esperança de que ele acabasse revelando que havia gostado do que havia visto. Seria absurdo, mas nunca se sabe, afinal. Então, quis puxar um assunto que talvez levasse à questão do celular esquecido e, daí, ao ponto principal. Não deveria querer isso, mas tive uma vontade avassaladora de ele falasse sobre o que vira. E talvez escutá-lo me ridicularizar, que fosse.
– Você, ontem, acabou vendo o resto do filme?
– Depois que o frouxinho foi embora só por causa de um vinhozinho...? – e riu.
Eu ri também, escondendo o nervosismo.
– Vi, sim. Ainda tinha vinho, e gosto daquele filme. Mas vou ver com você hoje a parte que faltou. Não dá nem meia-hora.
– Ah, cara... Não precisa disso, não. Não vai ver de novo só por minha causa.
– Eu gosto do filme; já falei. Não vai ser sacrifício algum. A gente vê juntos.
Eu sorri, me sentando frente a ele.
– A gente podia até fazer isso logo agora de manhã. Quer?
Sua entonação foi animada. Talvez eu estivesse doido, mas tive a clara sensação de que ele estava querendo facilitar as coisas para mim. E me embromar com um agrado, como se faz com uma criança quando ela está chorosa. E realmente me embromou: logo, eu não me lembrava mais que meu objetivo era o de provocá-lo para que falasse do que presenciara. Dali fomos para o quarto, e assistimos a parte que faltava do último dos cinco filmes noir da maratona que ele havia planejado.
Não demoraria muito para que seu olhar voltasse a me deixar tenso. Na verdade, quase me destruísse. E isso aconteceu logo no dia seguinte, em meio a uma conversa que, inicialmente, em nada indicava o caminho que acabaria tomando. Pela primeira vez, senti Marcelo sendo invasivo. E tive a certeza de que ele sabia que estava sendo; que sabia exatamente o que estava fazendo e do efeito que causaria em mim.
Estávamos já nos últimos dias daquela nossa convivência, e realmente muito próximos. Eu, cada vez mais radiante. E deslumbrado, porque não apenas se confirmava a expectativa que tinha sobre ele, como eu estava descobrindo que era ainda muito mais interessante – e até falante – do que eu supunha. Creio que, naqueles dias, conversei mais com Marcelo do que já havia feito com Otávio ou com Rodrigo – inclusive porque, no fim das contas, passávamos quase literalmente o dia todo um com o outro.
Nossa intimidade, embora eu não saiba se este é o termo mais correto, estava cada dia maior. Pode ser que por isso ele tenha se sentido à vontade para avançá-la daquele jeito como acabou fazendo comigo. Talvez tenha errado na mão, mas no fim das contas foi bom; não sei. Mas o fato é que ficávamos a maior parte do tempo um ao lado do outro, e isso contribuiu para derrubar algumas barreiras – e eu perceberia que muito mais as barreiras dele em relação a mim do que as minhas com ele. Não apenas dividíamos seu quarto, para ver filmes, como ele também aumentou ainda mais sua frequência na sala, que era o principal cômodo do apartamento comum a todos. É claro que, ficando ali, estava querendo minha companhia, mesmo quando estava lendo, absorto.
Estávamos nela, depois do almoço, quando começamos a conversar sobre como ficariam as coisas após ele se formar, dali a seis meses. Eu e ele tínhamos pela frente um semestre letivo bastante parecido: com poucas matérias a serem cumpridas e tendo como principal tarefa a execução de um projeto final – embora eu tivesse a disposição, se necessário, um semestre adicional para concluí-lo sem que fosse reprovado, e ele não. Otávio, ainda que um pouco aos trancos e barrancos, também deveria conseguir a formatura. O problemático era mesmo Rodrigo, que talvez nem no semestre seguinte teria como concluir todos os créditos, ficando na faculdade um ano a mais do que nós.
Ele ainda não estava certo se pediria para Rodrigo deixar o apartamento, já que eu e Otávio sairíamos mesmo, com o fim dos estudos. Marcelo tinha emprego certo após a colação de grau, e seria bem remunerado. Não precisaria mais dividir despesas com ninguém. Bom, em realidade, nunca precisou: o problema todo era seu orgulho com relação ao pai. A contragosto, ele dependia da grana da família para fazer a faculdade com o empenho que julgava necessário, e que no fim das contas efetivamente deu resultado: após sucessivas participações em projetos de pesquisa, ele construíra uma imagem na comunidade acadêmica que não só lhe garantiria um imediato bom emprego como virtualmente uma vaga para emendar a graduação com o mestrado.
Antes de nós, haviam morado no apê dois veteranos, que retornaram para suas cidades após a formatura. Mesmo contrariando o pai, Marcelo havia optado por aquela solução como forma de reduzir pela metade a grana que lhe era enviada. Nos primeiros meses, conforme contou, o pai insistiu na mesma quantia, o que fazia com que ele depositasse o adicional de volta.
Quando os outros dois saíram, Otávio entrou imediatamente em seguida, recomendado por uma amiga da família de Marcelo, que por sua vez tinha uma amiga que era justamente a mãe de Otávio. E foi Otávio quem chamou Rodrigo, a quem conhecera logo no início das aulas do primeiro período. Eles acabaram se aproximando pela solidão que ambos sentiram em estar tanto numa cidade estranha e bem maior do que a deles quanto em uma universidade daquele porte, o que os levou a uma amizade muito forte. Daí aquele clima todo de “parças”.
Eu fui o último a entrar nesta história, e nem era para sê-lo. Na época, eu alugava um quarto numa casa de família, que acabou precisando do cômodo para o retorno de um filho recém-separado da mulher. Estava em busca de um lugar para morar quando, indo numa copiadora no prédio onde funcionava a faculdade de Marcelo, vi num mural o seu anúncio, que por sorte ele ainda não havia retirado. Tentei ligar para o celular, mas ele não atendia e, pelas indicações do anúncio, deduzi qual devia ser a rua onde estava o prédio, relativamente próxima e, pelas qualidades descritas, sem igual naquela área. De portaria em portaria, fui perguntando se sabiam de algum estudante que queria dividir um apê. Não foi difícil chegar até ele.
As duas vagas já estavam ocupadas por Otávio e Rodrigo. Ou por ter simpatizado comigo, ou porque afinal eu seria mais um para reduzir as despesas, Marcelo acabou sugerindo que, se eu não me importasse, poderia ficar com o quarto de empregada. Era, obviamente, um cômodo desvalorizado diante dos outros dois quartos. Marcelo demonstrou certo constrangimento por causa disso, mas para mim esse detalhe não tinha qualquer importância.
Havia desvantagens, como ser pequeno e abafado, mas também vantagens, como a entrada independente, pela porta de serviço, e a existência de um pequeno banheiro que poderia ser de meu uso exclusivo. Bom, a primeira vantagem não durou muito: alguns meses depois, chegou, de surpresa, a lavadora e secadora presenteada pelo pai de Marcelo. Por ser enorme, a máquina só coube na área de serviço bloqueando a minha tal entrada independente. Mas não me importei; eu nunca havia usado aquela porta mesmo, e não tinha planos de usá-la. E havia descoberto outras vantagens: a área de serviço me servia como um refúgio arejado quando queria ficar sozinho, e a própria localização do quarto me levava a uma privacidade garantida.
Esses presentes do pai eram constantes, sempre dados de surpresa. Pareciam ser uma forma de ele tentar compensar a difícil relação que tinha com o filho, demonstrando-lhe atenção. Mas Marcelo não interpretava assim, e na verdade a cada presente mais se distanciava, irritado – e isso eu só soube naqueles dias juntos.
Ele interpretava como uma forma de demonstração de poder do pai, para enfatizar sua situação de dependência e, por conseguinte, humilhá-lo. Se estava sendo justo ou não ao ver a coisa dessa forma, eu não sei, já que eu não conhecia o pai e muito menos havia presenciado o modo como se relacionavam. Mas tinha algum sentido: os presentes eram sempre exagerados, das marcas mais caras e de modelos e tamanhos excessivos. Parecia mesmo haver uma propósito de pura ostentação. E, afinal, toda ostentação é uma forma de agressão.
Marcelo, assim, havia retardado a viagem para sua cidade de origem por uma razão semelhante à minha: não queria passar muito tempo com a família e, no caso dele, mais especificamente com o pai.
– Somos muito parecidos. Homens como nós não podem ocupar o mesmo espaço – tentou resumir.
– Por que não? – insisti.
– Porque somos muito parecidos.
– Parecidos em quê?
– Se ficarmos muito tempo no mesmo espaço, acabamos disputando.
– Mas disputando o quê?
– O poder sobre o espaço.
A resposta me espantou, pois não combinava com ele. Não tinha ainda presenciado momento algum no qual Marcelo tivesse demonstrado competitividade, luta por poder. Não me parecia uma preocupação que ele tivesse.
– Mas você não parece ser assim.
Ele me respondeu com seu tradicional meio-sorriso. Logo em seguida, quis saber de mim. Disse que também não me dava bem com meus pais.
– Não, não é que a gente brigue. É falta de afinidades mesmo. Com meu irmão também. Não me sinto à vontade com eles; me sinto um estranho.
Ele havia me respondido com um meio-sorriso, e eu com uma meia-verdade. Porque se eu me sentia um estranho em casa, isso era verdade. Mas faltou dizer que eles é que tinham me tornado esse estranho, como reação à minha homossexualidade. Quando a revelei, no auge da paixão pelo meu primeiro namorado, aos 16 anos, eles passaram a me tratar com distância, mas uma distância muito particular: não exatamente fria, mas gentilmente formal. Como uma visita.
Não me impuseram castigos nem censuras, não me tiraram nada, não me abandonaram. Mas foi meio como se, da noite pro dia, deixassem de gostar de mim, de sentir alguma coisa por mim. Meu pai, que desde que éramos pequenos tinha como hábito levar a mim e meu irmão a tudo o que podia – desde seu local de trabalho até encontros com amigos, passando por pescarias e simples passeios –, nunca mais me convidou. Minha mãe, por sua vez, abandonou as conversas que tinha comigo, sobre minha vida, meus estudos, meus objetivos, minha vida amorosa. Ela era quase que uma confidente, e só não o era mesmo porque eu tinha de omitir minha atração pelos garotos – o que, afinal, não é exatamente um mero detalhe, quando se pensa em dividir confidências. Com meu irmão, nunca me identifiquei muito. Depois da minha revelação, ele me deixou totalmente de lado.
Não foi muito fácil para um garoto de 16 anos ter de enfrentar uma situação como essa. Mas eu tinha me acostumado. Afinal, podia ser bem pior, como muitas vezes ocorre com outros garotos gays. E, passados tantos anos, já tinha a certeza de que nunca mais as coisas haveriam de voltar a ser como antes. Não era uma fase; era uma sentença.
Ser o viado da família não os fez me renegar como filho, mas me reduzir a mais simples condição de filho: aquele a quem é dever dos pais prover de boas condições para que cresça e saia de casa. Tanto que estavam me sustentando enquanto fazia a faculdade, e eu não tinha muito que reclamar quanto a isso. Não me davam luxos, mas eles também não eram ricos. Estavam me oferecendo o que podiam oferecer. E eu sabia que, quando eu me formasse e tomasse meu rumo, nunca mais os veria; eles nunca iriam me procurar.
Eu não poderia contar nada disso a Marcelo. Então, reduzi a questão toda àquela história, talvez pouco convincente, de “falta de afinidades”.
– Bom, Zeca, o Otávio a gente já sabe, né... Ele não está se formando para exercer a profissão. Quer ter o diploma e voltar para a cidade dele para acabar assumindo a loja do pai. Vai levar uma vida medíocre, sem grandes incertezas mas também sem maiores prazeres. O Rodrigo... esse vai viver mesmo sustentado pela família.
Eu ri, achando curioso como mantinha aquele ar tranqüilo mesmo proferindo julgamentos tão duros. Ele me olhou por alguns segundos; semicerrou vagarosamente os olhos.
– E você, Zeca?
Sua voz agora era mais baixa, mais grave, como se estivesse preocupado que alguém nos ouvisse. E, ao mesmo tempo, me incitando a assumir a mesma seriedade que ele.
– O que vai ser da sua vida? Você não pensa nisso?
– Claro que eu...
– Não, Zeca, você não pensa. De nós quatro, você é o que está na pior situação. E parece que não se dá conta disso.
– Eu?
– Zeca, você não estagiou, não...
– Eu fiz um estágio.
– Sim, de três meses, quando estava no quarto período. Não conta. Não estagiou. Não tem o menor interesse na sua futura profissão. Ou tem?
Eu baixei os olhos.
– Eu só escolhi porque sabia que não tinha chance de não conseguir a vaga.
– Porque queria sair de casa. Mas, e agora? Você vai se formar e vai fazer o que? Vai voltar para a casa, de onde quis sair?
Seu tom não era enfático; era calmo, impassível, como se não estivesse dizendo o que estava dizendo para mim.
– Não, eu não posso – eu retruquei muito rapidamente, e creio que minha voz saiu um pouco trêmula.
– Então, vai fazer o quê? Quem te vai dar emprego, recém formado e sem experiência nenhuma? Um currículo que provavelmente não tem mais de uma página... Quem vai dar, Zeca? Você vai se formar numa das melhores universidades do país para que? Para ser balconista?
Ele falava numa entonação que nada tinha de acusatória, mas que eu recebia como tal. Eu estava me sentindo acuado, nervoso com aquele jeito dele.
– Eu... – tentei falar, baixinho.
Ele se calou. Soltou o ar, como quem se prepara para tomar fôlego.
– Zeca, cada um é de um jeito. Cada um tem sua forma de se posicionar diante do mundo. Tem suas capacidades e suas incapacidades. Alguns são mais fortes; outros são mais fracos.
Fez uma pausa.
– Você é desses mais fracos.
Eu o olhei, um pouco assustado.
– Você tem qualidades; claro que tem. É um cara inteligente, um cara sensível. Que faz o que quer fazer, sem se importar com o que os outros acham, com o que vão dizer. Você é corajoso na tua fraqueza.
– Por que você está falando assim comigo?
Ele se aproximou mais de mim, sentando na cadeira ao meu lado.
– Porque você é um cara legal; um cara bacana. Eu percebi isso assim que te conheci.
– Por isso você me deixou morar aqui?
Ele sorriu, e não entendi bem o porquê.
– Você precisa de ajuda, Zeca. E não estou falando isso por agora, pelo que você está passando agora. Estou falando é da tua vida inteira. Você vai precisar de ajuda a sua vida inteira. Sozinho, você não consegue. Não vai conseguir nunca.
– Isso não é verdade... – murmurei, sem muita convicção.
– A primeira condição para que se resolva um problema é reconhecer o problema. A segunda é ter consciência dos próprios limites; das capacidades, mas das incapacidades também.
Eu nada disse.
– Você não tem rumo; não consegue determinar seu próprio rumo – falou, como se aquilo não me agredisse, mas me confortasse. – Precisa de alguém que determine para você. Que tome a sua frente e decida por você. Isso não é necessariamente ruim, desde que você reconheça que precisa disso, se aceite como você é.
Ele estava me humilhando, e com uma voz quase doce. Eu não entendia o porquê de estar fazendo aquilo comigo.
– A sua carência, a dependência que você cria para si mesmo... Nada disso é ruim em você, Zeca. É apenas o teu modo de ser. Mas se você reconhecer isso, se você aceitar o quanto você é fraco, o quanto é dependente, você vai ter muito mais condições de buscar esse alguém que possa te conduzir, que possa te ajudar decidindo por você e te pondo para batalhar essas diretrizes que são melhores para você e que você é incapaz de traçar. Você está entendendo o que quero dizer?
Eu aquiesci, apenas com a cabeça.
– Se você não se aceita como incapaz, aí mesmo é que você se torna incapaz de buscar alguém que possa te ajudar, que possa te comandar como você precisa. Em contrapartida, se você tem consciência da sua dimensão, do quão pequeno você é, você tem como fazer essa busca de uma maneira mais consciente, mais eficaz. É disso que eu estou falando: de eficácia. Você não é nada eficaz; você é fraco. Mas pode ser eficaz para procurar quem possa te dar o norte que você nunca vai conseguir ter sozinho. Eficácia.
Olhei para ele sem tentar esconder que meus olhos estavam marejados. Eu estava pedindo que ele parasse. Por favor, que ele parasse. Mas ele apenas me encarou em silêncio, com aquele olhar que antes me fascinava, e que agora eu não sabia se deveria odiar ou admirar ainda mais.
...
[continua]
[PS: Abaixo, pus umas respostas aos comentários que os leitores fizeram às partes anteriores da história]