Marcelo não usava aquele seu olhar quase inquisidor apenas comigo. Era habitual nele, e eu já tinha percebido como era eficaz sua maneira de conversar: sem nem por um segundo desviar os olhos do fundo dos olhos do interlocutor, mantendo a presa sob controle, tal como um animal. Naquele momento diante dele, ambos em pé na sala, a última coisa que eu devia era o que todos acabavam fazendo: desviar o olhar.
– Não. Por que? – disse com toda desenvoltura, respondendo a sua pergunta se eu e Rodrigo havíamos brigado.
– Ele está estranho com você. Não percebeu?
– Deve ser por causa das provas – respondi, num tom risonho. – O Rodrigo está sempre encalacrado com as matérias. Imagino que esteja preocupado.
Não disse nada; apenas continuou a me olhar. Mas que olhar danado tinha aquele cara! Não era ameaçador, muito menos agressivo: era apenas excessivamente atento. Não desviava; ficava lá, concentrado nos olhos à sua frente, até que alcançasse o objetivo que traçara para o diálogo.
Até com a síndica que vinha cobrar o condomínio ele agia assim; eu vi uma vez. Ela era daquelas muito simpáticas, simpaticíssimas, que falam sem parar e infernizam qualquer um. Em vez de apenas ir concordando e demonstrando uma impaciência gentil, que é como todo mundo reagia, ele a afastou de modo inverso. Olhava-a atentamente, analisando-a sem tirar os olhos dos dela. Creio que ela se atemorizou com aqueles olhos de lince que contrastavam com os modos calmos e a expressão serena dele. Com Marcelo, ela não passou da tentativa do segundo assunto.
– O Otávio não pode perder nenhuma disciplina, senão não vai conseguir se formar no próximo semestre – detalhei, diante da espera muda dele, para ver se a conversa tomava outro rumo. – Não é o caso do Rodrigo, mas ele tem muitas reprovações no histórico, você sabe.
– Se fosse isso, ele estaria diferente com todos. Mas parece que é só com você – insistiu, sem alterar a voz. – Fica calado quando você está presente; taciturno. Mal te olha. Parece que reprime uma raiva. É impressão minha?
Ele usou a palavra “raiva”, talvez porque tenha se sentido constrangido em pronunciar a mais correta: desprezo. Era esse sentimento que eu notava Rodrigo querer gradativamente demonstrar para mim. Mas eu não contava que fosse observado por Marcelo. Tentei fazer uma expressão de estranhamento, como se tivesse acabado de ouvir algo absolutamente sem sentido.
– Talvez vocês não tenham resolvido totalmente o problema que tiveram. Ele realmente parece aborrecido com você – completou.
– Não, não... Isso é passado. Nem eu nem ele nos lembramos mais disso, Marcelo. É a tensão do fim do semestre mesmo... Tem pelo menos uma matéria que ele corre o risco de ser reprovado pela segunda vez.
Replicou com o costumeiro sorriso contido. Inclinou levemente a cabeça para o lado e depois a aprumou na mesma cadência. Eu adorava ver esse seu gesto. Mesmo quando o fez, manteve aqueles olhos em mim. Tive a nítida impressão que, sem precisar dizer nada, me desmascarava.
Marcelo se referia a uma rixa que eu e Rodrigo havíamos tido uns seis meses antes. Do nada, quando estávamos sozinhos na sala, ele me acusou de puxa-saco.
– Não precisa ficar babando o ovo dele, bro. Não parece, mas o Marcelo é da geral. Nunca que te vai mandar pra fora daqui; só se tu continuar fazendo merda.
– Cara, do que você está falando?
– Dessa merda que tu tá fazendo. Você tá é fazendo merda, achando que está agradando. Ele vai acabar enchendo o saco de tanta bajulação e aí sim tu vai ter que se mudar daqui.
Fiquei realmente ofendido, e tivemos uma discussão feia. Eu sabia que Rodrigo não partiria para a porrada, mas quase chegou a isso. Para minha sorte, ele se conteve. Era mais forte do que eu e me destroçaria em dois tempos. Otávio chegou já ao fim da briga, mas sem necessidade de nos apartar.
Foi apenas alguns dias depois que Marcelo fez menção ao ocorrido, numa manhã, na cozinha:
– Eu não acho que você seja interesseiro, não, viu?!
Eu estava passando a manteiga no pão quando ele disse isso. Não entendi como tinha sabido da razão da briga, porque Rodrigo certamente não teria dado os detalhes. Se o fizesse, seria como batalhar pela minha expulsão do apê, e ele não tinha nada contra mim que pudesse motivá-lo a criar intrigas. Atribui tudo a um ciúme bobo, fruto de imaturidade mesmo. Apesar do jeito de moleque de Otávio, Rodrigo parecia ser o mais imaturo de nós quatro. Aliás, quanto a Otávio, não teria sido ele quem contaria. Era um cara leal, era evidente, e Rodrigo era seu “parça”.
Passei o pão para Marcelo, fazendo-me de desentendido. E, então, ele disse:
– Não acho que você faça as coisas pra mim por bajulação. Você faz porque gosta; porque se sente bem. É da sua natureza.
Não entendi ao que se referia, e tive a suspeita de que talvez eu devesse me ofender com o comentário. Mas ele continuou agindo com a tranqüilidade de quem dissera o óbvio; não parecia ter sentido tomar como ofensa. Olhou muito detidamente para o nada, como era seu costume, enquanto eu lhe servia o café com leite.
Aquela era uma das manhãs nas quais eu acordava mais cedo apenas para que tomássemos o café da manhã juntos, antes de ele sair. Eu cruzava os horários das aulas de nós quatro, que aprendia pela própria rotina do apê e, nos dias nos quais Otávio e Rodrigo entravam mais tarde, aproveitava para que tomássemos o café nós dois, sozinhos, sem pressa, pois eu já o recebia na cozinha com o aroma do café quentinho.
Comecei com esse hábito, sem planejamento, poucas semanas depois que fui morar lá. Eu gostava da companhia dele; desde que nos conhecemos, senti uma empatia espontânea. Não tinha nada a ver com sexo. Ninguém poderia ser mais hétero do que Marcelo. Eu não o via como homem, mas como amigo, ou futuro amigo. Queria conhecê-lo melhor, e isso não era fácil, já que ele não falava muito.
Naquele semestre, havia dois dias nos quais eu podia fazer isso, as terças e as sextas. Para ser discreto, aproveitava apenas um destes dias para o café; no outro, não me levantava cedo. Lamentava, mas era o jeito. Mesmo não sabendo que eu era gay, poderia pegar mal, então eu disfarçava, para que ele não percebesse. De qualquer forma, tomávamos o café juntos semanalmente, o que era melhor do que no semestre anterior, quando só fazia isso a cada quinze dias, pois só tinha a oportunidade uma vez na semana e, nessa de não dar na vista, alternava uma sim e outra não.
Também conversávamos à noite, ou num lanche à tarde. Mas não contava muito com isso. Os lanches eram raríssimos, porque em geral ele passava o dia todo na universidade. E à noite era comum um dos outros dois estar presente no pouco tempo em que ele ficava conosco antes de se recolher ao seu quarto e fechar a porta.
– Você não precisa dar pretexto pra tomar o café comigo – ele disse uma vez, quando eu repetia, como quem não quer nada, a velha desculpa de que tinha acordado cedo porque precisava estudar.
Eu estava de costas, lavando a louça que tínhamos acabado de usar, e senti um frio na espinha com aquela frase, mesmo ele tendo usado uma entonação de quem apenas comenta sobre o tempo. Retardei ao máximo voltar a olhar para ele, lavando duas vezes o mesmo prato, três vezes a mesma caneca...!
Estava envergonhado, porque me senti desmascarado e não sabia o que aquilo queria dizer. Ele permaneceu em silêncio, como era o mais comum, terminando de beber o café com leite que tanto gostava, e que eu mesmo tinha misturado e adoçado para ele. Servi-lo era já um hábito entre nós, inicialmente recebido por ele com discretos sorrisos de agradecimento. Depois, se tornara rotineiro, e apenas aguardava que eu pusesse a caneca à sua frente. Ele jamais tinha comentado nada a respeito – nem mesmo na primeira vez –, e eu muito menos.
Permaneci em silêncio. O que eu responderia? Ouvi o arrastar da cadeira atrás de mim. Em seguida ele pôs a caneca na pia. Eu a peguei sem pestanejar. Ele disse algo como “cacete, já estou na minha hora!” quando eu começava a lavá-la.
Marcelo era assim, sem verbalizar muito as coisas. Mas, como é previsível na maior parte dos calados, era observador. Certamente notava que eu fazia dessas gentilezas apenas com ele, e não com os outros. Bom, não era bem isso. Às vezes eu também fazia com os outros, mesmo antes de começar as transas entre nós. Mas com ele era sempre – ao menos quando estávamos apenas nós dois.
Como não me censurava, fui continuando a fazer, e tornou-se normal que as tarefas coubessem a mim, e nunca a ele. Eu via aquilo como uma forma de aproximação, de tentar forjar uma relação particular entre nós que acabasse por fazer com que ele conversasse mais comigo do que com os outros. Assim eu poderia saber mais a respeito dele, matando minha curiosidade pelo que havia por trás daqueles olhos, ao mesmo tempo em que conquistaria sua amizade.
No objetivo da amizade, eu avançava muito pouco, mas ía conseguindo estabelecer um modo de nos relacionar diferente do que ambos tínhamos tanto com Otávio quanto com Rodrigo. Naqueles momentos juntos, havia regras próprias que nenhum dos dois compartilhava com os demais. Ele sentava e ficava à espera, muito naturalmente, que eu pusesse a mesa para ele, quando já não estava posta, e com a mesma serenidade me via servindo seu café, o leite, e adoçasse e misturasse. Ou que eu trouxesse o pão, quentinho após deixá-lo um pouco no forno. Também gostava de esquentar a comida no microondas para ele jantar, mas essa oportunidade era bem rara.
Essa nossa rotina muito própria foi se estabelecendo aos poucos, e eu evitava que fosse testemunhada por Otávio ou por Rodrigo. Marcelo não estranhava; habituou-se a ela sem qualquer questionamento. E era cúmplice daquela minha discrição, o que me sinalizava que gostava do modo de eu agir com ele. Notava que, na frente deles, era comum que se antecipasse a mim, sem aguardar pelas minhas gentilezas, como que reafirmando que tínhamos uma maneira a dois que só pertencia a nós mesmos.
Esse acordo tácito indicava uma óbvia intimidade que ambos queriam desfrutar. Mas não significava que conversássemos muito. Ou talvez pudesse até dizer, de certa forma, que sim. Os silêncios dele não significavam que me ignorava. Muitas vezes, eu o pegava me olhando, com uma expressão muito tranquila, e correspondia com um sorriso, ou falando qualquer coisa para puxar assunto. Ele sorria de volta, como se tivéssemos dialogando. Nessas horas, aquele seu olhar profundo não me ameaçava. Eu me sentia observado, claramente sendo analisado. Mas não me constrangia; em vez disso, me lisonjeava.
Marcelo trocava a fala pelas expressões do rosto, por movimentos da cabeça, e isso lhe dava um charme irresistível. Eu adorava ver, mas infelizmente não era toda hora. Diante de alguma dificuldade besta – abrir um pão que havia ressecado demais por eu ter deixado no forno além da conta, por exemplo –, ele geralmente franzia as sobrancelhas e semicerrava os olhos, sem exclamar nada, sem nada dizer. Eu apenas acompanhava, com o rabo de olho, aquela mise-en-scène que lhe era tão espontânea.
Os movimentos não eram vigorosos, bem ao contrário: eram vagarosos; talvez contidos. Ou, o que eu preferia, ponderados: não como reações irrefletidas, mas como parte de um processo de análise de como dar fim àquela dificuldade, desenvolver um raciocínio ou encarar algo inesperado. Agia assim com o pão, ou num diálogo com alguém, ou quando se deparava com um texto mais intrincado nas raras vezes em que lia na sala.
Às vezes, parecia olhar pro nada, pensativo, mesmo comigo à sua frente, na mesa. E, então, piscava muito devagar, deixando as pálpebras repousarem milímetros de segundos fechadas além do usual, para então levantá-las também com uma certa lentidão. Era, ao fim, um movimento muito rápido, e que me deixava com vontade que fizesse de novo – mesmo sendo algo tão rápido, e também justamente porque era tão rápido. De vez em quando, ao falar, meneava a cabeça para o lado, dando ênfase a alguma palavra, sem despregar os olhos de mim. Ele tinha esses modos ao falar também com outros, mas eu preferia considerar que fosse especialmente comigo.
Da maneira que descrevo, parece que eu cultivava um interesse por ele além da amizade. Mas não, não pensava em nada além. Claro, sou gay, gosto de homens, e Marcelo era um homem de 1,92m de altura num corpo proporcional e, de certa forma, trabalhado. Mais tarde, nos dez dias em que ficamos a sós no apê durante as férias, eu soube por ele que correr não era uma prática ocasional, mas uma rotina que ele desenvolvia quase diariamente nos tempos livres no campus. E que as atividades físicas faziam parte de sua vida desde criança.
Uma vez, muito rapidamente e com ele praticamente de costas, vi seu corpo descoberto. Ele achava que estava sozinho e se barbeava em frente ao espelho, após o banho, com a porta entreaberta. Foi muito rápido, porque temi que me visse pelo reflexo, mas o suficiente para notar o relevo suave dos músculos de suas costas, o tronco trapezoidal, a bunda com aparência rija, as coxas e panturrilhas torneadas, embora não muito grossas. Não vou negar que me excitou, mas foi algo muito passageiro. O que me atraía em Marcelo era o charme, a amizade, não o sexo.
Desde que tudo começou, morria de medo que ele pudesse ter sequer um fio de suspeita do que rolava entre mim e Otávio. Eu era mais cauteloso ainda quando estava na presença de ambos, porque a observação arguta que eu notava em Marcelo poderia desvendar um mínimo gesto, um olhar meu que cirurgicamente ele tomasse como indício do que ocorria. Depois, quando Rodrigo também passou a me pegar, tive momentos de completa paranoia, mas que consegui manter sob controle.
Eu me preocupava comigo, em cair em algum ato falho, mas não com Otávio. Para ele, o que fazíamos só tinha importância quando me avisava quando iria me comer e quando estava me comendo. No resto do tempo, era como se ele mesmo não soubesse o que acontecia; como se fosse uma outra vida. A chance de ele fazer besteira e denunciar nossa situação era nula: o Otávio que convivia com os outros ignorava completamente o Otávio que se saciava com o viado enrustido da casa.
Mas a indagação de Marcelo confirmou minha suspeita de que Rodrigo, sem perceber, estava entregando o ouro ao bandido. Logo ele, que tinha experiência com gays e, portanto, provavelmente já havia vivido situações clandestinas como essa.
Rodrigo improvisava oportunidades para me comer a sós. Otávio não era assim; as coisas eram mais planejadas, mesmo que combinadas para o mesmo dia. Com Rodrigo, tudo parecia muito impulsivo. O arriscado mesmo era nas noites em que não fazíamos os três, em geral porque tínhamos aproveitado a tarde.
A testosterona dele parecia se potencializar justamente às noites, talvez até pelo perigo que representavam, dada a presença de Marcelo a alguns metros de nós, no seu quarto. Eu tentava (sem muita dedicação, confesso) dissuadi-lo, mas volta e meia era justamente à noite que ele resolvia me meter o cacete, numa história de “rapidinha” que, em grande parte das vezes, acabava não sendo rapidinha coisa alguma.
Otávio não estava nem aí, mas Marcelo e a vizinhança sim. Mesmo sussurrando, com aquela voz grossa que me enfeitiçava, ele mantinha o tom selvagem. Todas as vezes que aconteceu – não foram muitas –, eu acabava me entregando. Terminava molhado de suor, porque ele me pegava em meu quarto, e quase tendo uma tremedeira após ele me deixar sozinho, pensando na irresponsabilidade para a qual ele tinha me arrastado.
Faltavam poucos dias para que viajassem e, portanto, poucas chances para que ele piorasse as coisas. Eu podia ter deixado rolar, mas fiquei tão tenso que no dia seguinte à indagação de Marcelo retardei minha saída de casa, matando uma aula, para que descêssemos juntos para a rua e pudéssemos falar a sós. No apartamento, ele certamente aproveitaria para me seduzir e acabar me fudendo, sem que eu conseguisse falar o que queria.
– Zeca, te liga, não tem nada a ver. O Marcelo perguntou por causa daquela treta, nada além disso. Fica frio. Ele não sabe de nada.
– Estou preocupado.
Ele parou de andar e virou-se pra mim.
– Deixa eu te falar... – olhou o relógio rapidamente. – Isso que tá rolando... Não só as surubas, mas essas transas da gente, eu e você, eu não quero que acabe.
Estranhei seu tom.
– Eu não sou viado, mas vou te falar, eu to gostando.
Devo ter feito uma cara de espanto. Não por ele gostar, o que nem precisava me dizer, mas por estar me dizendo. E ainda com uma entonação quase confessional.
– Pode ser que eu esteja boiolando... – riu. – Mas eu to gostando. Já comi muito cara, não tanto assim, mas já comi, sim. Tu sabe disso. Mas dessa forma não.
– Que forma?
– Brother, não sei...
Ele olhou em torno, como se procurasse as palavras.
– Você é muito puto, muito putão... Tu sabe que às vezes sou meio pesado contigo, mas isso é o que... É meio ruim – riu – porque tu é broxa, então fica difícil de dizer assim, mas eu sei que tu fica galudão com isso; sei que é isso que te dá tesão. Galudão sem ficar galudão, né... E isso me deixa doido contigo.
Fez uma pausa.
– Sério mesmo.
E ficou me olhando.
– Entende o que eu quero dizer? – perguntou, finalmente.
– Acho que não.
– Se liga, então. Quando eu te vejo todo macho, quando a gente tá com o Marcelo e o Otávio, me dá um pouco de raiva nisso, tá ligado?
– Todo macho? Eu ajo como eu sempre a...
– Eu sei, to sabendo. Mas me dá raiva; fico boladão na hora. Dá vontade de te pegar, na frente da galera mesmo, de te pôr pra mamar, de te enfiar a pica... – olhou para o lado, e depois novamente pra mim. – Tu é meu, essa é a sensação que me dá; tu é meu e nessas paradas parece que não é.
– Eu não sou seu...
Eu não iria completar, mas mesmo assim fui novamente interrompido:
– Não é, nem é pra ser. Não tenho nada contigo. Você tem aí a tua parada, e a minha é outra. Mas quando a gente está na sacanagem, você se entrega total. Então, é como se fosse... Deu pra entender? Então, se eu ando entregando o jogo, é por isso. Mas eu to ligado; to ligado. Se maluco tá prestando atenção, beleza, vou ficar mais na minha.
Eu falei algo, mostrando satisfação, mas nem me lembro. O que me lembro foi o modo como me olhou. Estávamos ainda a dois quarteirões de casa.
Mal entramos no apê e ele me agarrou. Não me beijou, mas investiu em meu pescoço, arrancou minha camisa e atacou meus mamilos; o caralho crescendo. Mesmo de banho recém-tomado, eu senti seu cheiro, e seu cheiro me deixava doido. Não era um cheiro de suor, nada disso que chamam de “cheiro de macho”; era da pele mesmo dele. Rodrigo não usava perfume – creio que mesmo o desodorante fosse daqueles sem cheiro – e com isso aquele aroma que ele tinha me vinha inteiro nas narinas quando ele se movimentava para se aproveitar mais do meu corpo.
Era como se eu sentisse sendo envolvido, como que cercado por aquela fumacinha que desenham em histórias em quadrinhos. Eram as palavras, suas mãos em mim, aquele cacete maciço e compacto com uma veia saltada, aqueles coxões, mas era também o cheiro dele. “Cheiro de macho”, eu poderia dizer, sim, mas não no sentido que, creio, costumam dizer.
Fudemos ali mesmo na sala. “Viado, tu me deixa maluco”, ele sussurrou, acho que meio sem saber. Eu gostava de sentir os pelos do tórax dele roçando em mim, o calor que ele sempre emanava e que umedecia minha pele, aquela voz grave que, dessa vez, não me fez tantas ofensas.
Quer dizer, não fez explicitamente. Como em outras vezes, mas nessa com maior ênfase, ele usava diminutivos para se referir a mim. E, no contexto com que fazia, havia um tom de humilhação naquilo: eram sempre como uma extensão de “viadinho”. Eu tinha “perninha”, “bundinha”. Ele me punha “sentadinho”, “deitadinho”, mas sempre com movimentos muito vigorosos. Eu sabia que todos esses “inhos” eram primos de “viadinho”. Ele era homem, ele era digno; eu não: era, no máximo, um menininho nas mãos dele. E “menininho” não é digno do termo “homem”.
Aquela foi a última foda que tivemos a sós antes das férias. Quando terminou, eu sabia que me lembraria dela por todo o mês de julho. Três dias depois, tanto ele quanto Otávio viajaram para suas cidades de origem.
Ficamos sozinhos, eu e Marcelo, por dez dias.
...
[continua]